30 de jun. de 2011

Caçador de obras fantasmas.


Administrar – no sentido pequeno, a la português de padaria - é difícil. Mais difícil ainda será – claro levando a sério - se se fala em missão, visão, estratégia e gestão de pessoas. Não basta o resumo de Peter Drucker, às vezes não “cai” na prova. Mas, ora vamos, vestir o velho estilo com estas miçangas sob luz dicroica, convenho, é só brilho. Há problemas que parecem, por crônico, insolúveis, com tendencia a piorar. Exemplo é o transporte coletivo. Peter Drucker – diga-se já ultrapassado - aproximou os vários setores e hierarquias da empresa, acabando com os vazios de mando e distribuição de poderes e responsabilidades nessa geografia. Por aqui, aponta-se justo o contrário, a criação de vazios, só por um acaso, aumentando o custo do transporte, não só coletivo, mas a logística urbana. Ficam os terrenos baldios, criando “de um tudo” mesmo pequenos bosques. Mas, se se entende que lutar com unhas e dentes para perpetuar um evento é o máximo. Sabe-me mui amaro, ágrio show.
Falar mais é coisa para Ghostbusters. Ou Ghostobrasbusters.    

28 de jun. de 2011

Fumo: Serra e FHC.

Unidos e separados pelo Fumo, Serra e FHC vêm-no, um como inimigo dos homens, portanto aliado politico, via saúde; este o toma por aliado pensando no voto do maconheiro pasmado das décadas de 80-90 do século passado, ao que parece ter se tornado Classe C, e se esquece que maconheiro é mais traíra que a própria e ele próprio, fuma mas não traga. Serra não entende que tudo que passou, não volta; FHC, que é próprio do fumo ser a não solidez de uma fogueira que se apaga.  

26 de jun. de 2011

ODE AO FUMO.





ODE AO FUMO.
Oh, Fumo redentor, que alegrais os meus pecados.
Fumo do meu passado.
Fumo da primeira luz, filho de toda a honra e glória, aquele Fumo que do pé de um havano e lentamente alastrastes os seus fios dançantes de Fumo interminável, subistes ao céu da câmara que eu habitava, habitação, quarto amigo, restaurante, bar ou onde outras almas perdidas repousavam nas altas horas, nos baixos círculos.
Oh, Fumo de claridade, Fumo de tempo elementar, quando entre os meus dedos consumíeis e queimáveis os minutos que faltavam para acender a fogueira eterna, onde crepita o canto dos deuses inalcançados, que se escondem para não me perdoar.
Fumo do meu passado. Fumo do meu primeiro sopro cinzento e espesso. Fumo que me deu sentido e gosto ao sabor de todas as coisas. Fumo que me livrastes do mal, do bem e da insípida alface.
Oh Fumo do meu presente, que é o Fumo do Fumo dos meus passados e dos passados de todos aqueles Fumos que me acompanharam na glória de todas as solidões de fumantes que se buscam e se encontram e se dissipam pela leveza da essência.
Oh, Fumo de hoje que velais por mim, que chegais lá onde minha profunda ignorância, não chega. Vades e percorrais os caminhos, os abismos por mim. Oh, Fumo do instante que carregais o pecado do mundo, sinuoso e quente, na boca aberta dos homens boquiabertos.
Fumo fugaz e eterno Fumo.
Fumo sincero.
Fumo que na tua morte e ressurreição vivestes e morrestes para me salvar. Fumo meu de cada dia, te confesso, oh Fumo todo-poderoso, que pequei por minha culpa: eu traguei.
Tenhais piedade. Fumo que ascendeis ao além de todos os olhos, nos altares das coberturas conjugadas, do milagre dos anéis de depois de amanhã, que escondeis entre os dedos que apontam o caminho, que asfalteis os caminhos entre palavras pronunciadas.
Fumo, Verbo que em ti cada manhã fostes e sois o primeiro, pura revelação, mistério e santidade.
Oh Fumo do meu futuro, te exilaram, estais proscrito, te abjuraram, e agora clamais no deserto, Vós, Fumo do amanhã e de toda esperança e fé. Fumo que subis o Calvário, crucificado pelos pregos dos ignorantes, tenhais piedade.
Agora que és fumaça, recordação longínqua, sacrifício meu, apiedai-vos de mim. Oh Fumo onipresente, guardai a tua ira, o gosto da minha alma pecadora, e esperai-me no teu paraíso infernal; enquanto espreito com minha língua, isenta de sua impureza, a triste paisagem granjeira; a hora de botar o ovo, de bicar a ração, de virar pasto. Eu, seu consorte e comparsa, a cometer o pecado, saneado, desnatado, esterilizado, pasteurizado, bombado e lubrificado e infalível, como se falhar não fizesse parte da própria infâmia.

Picho e trepo.

Picho e trepo, era uma frase pichada, que via a cada dia no muro em frente de casa. Frase curta, memorável e contundente. Digna de ser esculpida em pedra para epitáfio. Alguém, não sei o motivo, apagou-a, depois de anos, ali, e sua incontestável presença no bairro, este falto de genialidades, nem inúteis candidatos a apagaram. Pode ter sido um rompante súbito de civismo, assaltado pela consciência desvelada.
Mas ainda assim com o passar dos anos, lá está ela, aqui está, no cabeçalho dessa blogada, e em tantas outras linhas, nestas linhas, entrelinhas, recordando-me a paisagem urbana que habito, e creio que me pertence, sentimentalmente.
Não era bem um grafite, tampouco, uma ególatra declaração de intenções, mas sim, uma simples constatação sem assinatura com os verbos na primeira pessoa e a conjunção que a ninguém exclui. Capaz de unir realidades e botá-las à mesma altura e criar, de certo modo, uma
realidade nova. Pixar e trepar , este, pode certamente, ter uma importância capital na vida de uma pessoa, tanta e bastante para ficar imortalizada em uma parede pelo recurso da primeira, a pichação, e não sei se praticada concomitantemente, nem que fosse de pensamento.
Picho e trepo. A pintura como uma necessidade de expressar o inefável que nos povoa, e o sexo como cenário alternativo a esta, ou vice-versa, em perfeita harmonia.
Pichar e trepar, que alegria. Excelsa realidade, não se espante, plausível, veemente. Mais que um epitáfio, uma constituição.
Sem duvida, aquela frase naquela parede suja, à parte sua gloriosa semântica, significava um motivo de satisfação à vista, uma recordação de alguém que se move e que pode fazer que os outros se movam, intimamente.
A maioria dos muros do mundo caem, se espatifam, com o peso das assinaturas e garranchos de toda sorte de energúmenos, com vontade de aparecer a qualquer preço, pela via fácil da imbecilidade. Picho e trepo. Este não, por filiação apaixonada, paixão anônima, a verdadeira inteligencia emocional, inédita, nos muros de uma cidade erotizada por cartazes e propagandas, por isso triste. Espero que o “artista”, onde estiver, siga praticando.

25 de jun. de 2011

Sem Utopia.

A leveza, o simples, o sensível – domínio dos sentidos - são aquelas coisas que pelo dia nos alegram a vida. Entidades pequenas, elementares, que por óbvio, funcionam, sem falhar, nem nunca decepcionam, sempre dispostas a fazer as honras a qualquer tempo, prenda que a nossa condição de bichos complexos devemos agasalhar com a delicadeza duma orquídea e a vagarosidade bovina: o espesso silêncio antes de sair da cama, o cheiro do café e do pão torrado na mesma manhã, a redondeza de um café com açúcar, a primeira luz do dia para um dia todo de sol, a toa, e seguiria uma longa fila de cotidianidades, que por isso, monótonas, mas diferentes, sempre são diferentes, se não, é por uma fé perdida.
Miudezas, que sem crescer se enraízam em outras rotinas, as ruins, que sendo diferentes são sempre as mesmas; as mixórdias próprias, as dúvidas que nos fazem tropeçar, tropicar – feitos cavalgaduras - as fraquezas que vêm do mesmo lugar, o outro, aquele que esconde-se detrás de uma revolta, disposto a te amargar o dia, e aqui mais uma fila, extensa fila de coisas lamentáveis.
Podemos reinventar a solidão, a própria e a dos outros. Explorar o mito da nossa consciência, até obter pó de mico e então gozar, e de passagem fazer com que outros gozem. Se, não nos amarguremos, não amargamos.
Se descobrimos as partículas infinitesimais da felicidade, nossa, estaremos dispostos a dar umas quantas ou compensar a falta de umas poucas. Mas se buscamos a densidade dessa alegria, e a desparramamos e enchemos de contentamento aquela bolha que nos sustenta desde a mesma manhã naquele silêncio espesso, até a noite, no ruido das ideias, que depois da jornada se amontoam no cérebro, antes de dissolverem-se no branco do lençol.
A arte da leveza, da beleza rara, por outro lado. da superficialidade, é difícil. Caminho comprido e ignoto. É preciso queimar lágrimas, papéis, palavras e imbecis.

23 de jun. de 2011

Neymar, o Príncipe herdeiro.

Entrincheirado na sua área porque é assim que se sente cômodo, o Penharol planejou um duelo a contra-ataques, como fez anteriormente em outros jogos eliminatórios, sempre como “zebra”, e saiu vitorioso. Até então não tivera como rivais a Ganso e Neymar. Ganso é o talento, o virtuoso da redonda, quebra as cadeiras e encontra espaços para traçar uma reta entre os adversários e seu companheiro. Neymar é gol, regateia, penteia, esquiva, arranca e quando pensam que está brincando, fala sério, Gol! Arouca leva a gorda colada. Elano é conservador. Todos, somados, escalpelaram o Penharol, mais Esparta que Atenas. Arouca esquiou entre uruguaios esperou o zagueiro refugar, empacar e atendeu a uma piscadela de Neymar, que andava saindo da área, assim recebe mais bolas, e dali focaliza melhor os três paus. Passe, foco, chinelada e gol. Depois o Danilo foi muito respeitoso com o ala esquerda uruguaio, pois se esperasse, um milésimo, para dar o corte, para dentro, causava uma crise ciática no cisplatino, trocou de pé bicou pela hipotenusa. Dois zero , os orientais brio e garra fizeram um. Ganso é só Didi, tão moderno quanto e Neymar o príncipe herdeiro e claro, Santos Tri.   

22 de jun. de 2011

República. Episódio II. Direito de Ir e Vir.

 Acordei com tanto desejo de contar, mais, do teatro dos seres-brinquedos na calçada do ir, quanto o rei Xariar tinha de ouvir Sherazade. Aqueles marionetes estavam tão cansados de irem-se quanto eu entediado de vê-los ociosos de interesses. Bastaria com afixar cartazes rente um dos lados da calçada por que desarrumasse aquela monotonia. Não o fiz. Há temas mais urgentes, como o sagrado vir.
Praticante do ir, ir e não voltar, sempre ir, sem saber onde, pois o onde está além dele mesmo, e onde, por longínquo, não retornável, como aquele rio, ou qualquer rio, como essa calçada, ou qualquer calçada. Mas ir-se, largar-se, é também coisa que acaba por ser tão inútil ou ociosa quanto não ir, ou se preferirdes, ir e vir. Assim que sem monumentos ideológicos e sem base no real que impeçam o vir e como quem não quer a coisa:
Emendo a constituição. Aonde havia direito de ir, leia-se ir e vir.
Se pudesse defenderia o ir, por mero depositário do positivo, perante aparente negação da ação vir, como quem na fábula ficava grãos a fazer caminho para então voltar, para ir não é necessário saber caminho ou para onde ou aonde anda o onde, essa coisa é ir, ato solitário, estar-se a ir. Mas basta reconhecer o outro, e esse outro ser levado em conta, que o ato banal, vir, ganha outra dimensão. De todas, uma: eu digo: aquele vai à casa do outro e da casa do outro vai à própria casa. Mas ele, e se ele disser, ele dirá: venho da casa do outro.
Há significados profundos no sempre ir. Uma ideia de movimento largo, demorado, a percorrer certa dimensão. Enquanto ir e vir, apesar do aparente frenesi, revela-se algo estático, que não é o repouso, mas a anulação de deslocamentos iguais com sentidos opostos, por certo é muito triste, ir de casa e voltar a ela, e nisso só haver o registro da nulidade e a contabilidade do dia consumido. Mas não povoarei de bandeirolas essa ópera.
Os seres-brinquedos fruem do ir e vir. Vão e voltam. Repetem-se, multiplicam-se pela calçada, de tal maneira que não se pode discriminá-los. Zanzam e flanam, desviam-se e seguem, e nenhum destaque há, senão de um que outro aparentarem certa loucura, num ir i vir; que não cessa , cansativo e aborrecido feito robozinhos em parafuso, a girar, sem objetivo, sem estancação. E girar é, não poder distinguir do início o fim, é perder-se, sem encontrar saída, inda que tangencial.  

21 de jun. de 2011

República. Episódio I. Direito de Ir.

              Suponho que é possível abstrair todo o demais e deixar o indivíduo que caminha numa calçada apenas com a sina: caminhar pela calçada. Então faço o mesmo com outros indivíduos. Todos à calçada.           Outorgo a constituição que diz: É de todos o direito de ir pela calçada na velocidade de seus padrões de caminhar.  Ponho-os todos na mesma calçada e na mesma direção. A lei diz que cada um tem a liberdade de ir pela calçada na velocidade ou morosidade segundo à natureza fisiológica própria. 
              Descubro, antes cedo que tarde, que pela calçada podem caminhar ao mesmo tempo, um número finito desses indivíduos, quando um ao lado do outro. As diferentes velocidades com que fazem o percurso, provoca em determinados momentos, segundo uma demografia, alguns problemas de impedimento. Sendo as velocidades diferentes e involuntárias, como hei de resolver o problema dos choques? Antes; dou relevo ao fato de não haver prioridades, mesmo valores, nem valorização do ato de andar lenta ou velozmente, que agasalhe uns e descubra outros. 
              Há a hiperocupação. Há o esbarrão. Há o impedimento. Esbarrões e impedimentos são problemas. Para resolvê-los haverei de fundar uma ordem. Para instituí-la, por criterioso, busco um conserto conveniente.
             Ora vamos, estou a brincar, com regras de menino, ilusão, sonho, fantasia e mesmo os bonequinhos de chumbo, acatam, em absoluto, ordem-unida descabida. Noto e faço notar que existe tão-somente diferenças de velocidades, entre meus seres-brinquedos manietados. Saliento não existirem, ainda, valores subjetivos; somente o valor objetivo da capacidade que um tem de imprimir mais passos à calçada que outro.
              O interesse não é criar um problema, sim espiar a realidade, por ele, nele, uma vez que o problema proposto sempre será menos real e menor. Assim não pespegarei rendinhas da realidade neste tecido, ainda bruto, de tal sorte que posso dar como resolvido, o problema anterior, com o arranjo da minha boa administração. Acordado com a conveniência do proceder, e sem esquecer que é de crianças o maquinar, e dessarte troco o certo pelo incerto, em por a passear, na mesma calçada, outra categoria de gentes; com os mesmos problemas daqueles transeuntes lá antes instalados, esses serão senhores da mesma constituição e dotados da mesma regulação daquele organismo; porém se deslocarão no sentido contrário daqueles. Deixo claro, o fato de estes haverem sido postos posteriormente não implicará amiudar prerrogativas. São a mesmas. Direito de ir.
              Imediatamente, produz-se uma profusão de encontrões, assentado e por escrito já disse que as populações, e supondo poder diferenciá-las, têm autonomia, e se queres, soberania, de ir dentro dos parâmetros estabelecidos, livremente, conquanto todos vão.
             Ocorre que segundo o prisma dos que vão, outros vêm, e vice-versa, mas isso ainda não está previsto, seja, neste tempo não posso lhes permitir este segundo ponto de vista. Devo consciencizar as diferentes populações, que os outros também vão. E, inda que indo em sentido oposto, trata-se de ir. Dirimo a impressão que o outro vem, pois o outro também está e faz seu movimento de ir. Assim não é necessário emendar a constituição. Basta com estabelecer outra ordem, diferente da ordem anterior, uma ordem que preveja a melhor maneira de ir. Por exemplo: uns vão por um lado e os outros que vão em sentido oposto, o façam pelo outro. Resolvido.
               É proveitoso salientar que os dois lados dessa calçada ainda não têm as peculiaridades próprias das calçadas da vida real. Dá que, em determinado momento, aquele que tanto foi naquele sentido, preme-lhe a necessidade de ir opostamente. Cria-se o voltar. Inclusivamente o dar a volta, o circular. Não aceite, todavia, a ótica do outro; coisa implicante na ideia do vir. Não mudo a constituição. Não permito, alfim e ao cabo, a subjetividade. Mas ela não tarda, e enquanto estas superficialidades não aparecem vou tratando de resolver os problemas dessa calçada. Que sequer tem um lado diferente do outro. E cada indivíduo, lento ou rápido, num sentido e noutro aceitam bem as regulamentações que venturosamente vêm lhes amenizando a árdua tarefa de ir.
              Mas como dizia, não tardará, a subjetividade, como criança me tomo a coisa a sério, e cada peça a ganhará ou disporá em vida, e se não tolhida, e em plenitude, que é o único adjetivo que a acompanha bem e gera este substantivo tão distinto e elegante. Vida plena.

República de Cidão, Episódio I.

19 de jun. de 2011

Maler Edson.


Ele pintava casas; muitas; umas juntinhas às outras, fossem bandeirinhas de São João. As cores todas como vieram ao mundo. Vermelho, vermelho. Amarelo, amarelo. Azul, azul. Branco, branco. As telas também reduzidas. Telas de bolso. Ficava zanzando do Mercado Modelo à Barroquinha. Certa vez passou uma alemã por ali, esbarrou com Edson, gostou da pintura, arrastou-o para Tubinga. Lá em Tubinga, Edson virou Maler. Mas não se entendia com ninguém. Eu era Ich. Tu era Du e mim era mich, mas meu era mir e por instinto e a sua pintura já famosa, Ich liebe dich. Assim a alemã o foi perdendo para outras: Pardon! Esbarrava. Ich liebe dich! Da pintura crescia a fama. Aquelas telinhas, a miúde, miúdas de casinholas como bandeirinhas de São João. Pintor era Maler. E para ler Maler em voz alta: er é â assim Maler é mala. E assim foi ficando o Maler Edson mala. E que Maler havia em mala Edson, as tedescas, ui! Pardon! Tout de suit, Ich liebe dich.

Suje-se, Gordo! Conto Machado de Assis. é rapidinho!!

Contos, de Machado de Assis - Suje-se Gordo!
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Contos
Machado de Assis



Suje-se, Gordo!



UMA NOITE, há muitos anos, passeava eu com um amigo no terraço
do Teatro de S. Pedro de Alcântara. Era entre o segundo e o terceiro
ato da peça A Sentença ou o Tribunal do Júri. Só me ficou o título,
e foi justamente o título que nos levou a falar da instituição e de um
fato que nunca mais me esqueceu.
-- Fui sempre contrário ao júri, -- disse-me aquele amigo, -- não
pela instituição em si, que é liberal, mas porque me repugna condenar
alguém, e por aquele preceito do Evangelho; "Não queirais
julgar para que não sejais julgados". Não obstante, servi duas vezes.
O tribunal era então no antigo Aljube, fim da Rua dos Ourives, princípio
da Ladeira da Conceição.
Tal era o meu escrúpulo que, salvo dous, absolvi todos os réus.
Com efeito, os crimes não me pareceram provados; um ou dous processos
eram mal feitos. O primeiro réu que condenei, era um moço
limpo, acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena,
com falsificação de um papel. Não negou o fato, nem podia
fazê-lo, contestou que lhe coubesse a iniciativa ou inspiração do
crime. Alguém, que não citava, foi que lhe lembrou esse modo de
acudir a uma necessidade urgente; mas Deus, que via os corações,
daria ao criminoso verdadeiro o merecido castigo. Disse isso sem
ênfase, triste, a palavra surda. os olhos mortos, com tal palidez que
metia pena; o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a
confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento
e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada.
Poucas vezes terei assistido a debate tão brilhante. O discurso do
promotor foi curto, mas forte, indignado, com um tom que parecia
ódio, e não era. A defesa, além do talento do advogado, tinha a
circunstância de ser a estréia dele na tribuna. Parentes, colegas e
amigos esperavam o primeiro discurso do rapaz, e não perderam na
espera. O discurso foi admirável, e teria salvo o réu, se ele pudesse
ser salvo, mas o crime metia-se pelos olhos dentro. O advogado morreu
dous anos depois, em 1865. Quem sabe o que se perdeu nele!
Eu, acredite, quando vejo morrer um moço de talento, sinto mais
que quando morre um velho... Mas vamos ao que ia contando.
Houve réplica do promotor e tréplica do defensor. O presidente do
tribunal resumiu os debates, e, lidos os quesitos, foram entregues ao
presidente do Conselho, que era eu.
Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais
que lá se passou, não interessa ao caso particular, que era melhor
ficasse também calado, confesso. Cantarei depressa; o terceiro ato
não tarda.
Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais
que ninguém convencido do delito e do delinqüente. O processo foi
examinado, os quesitos lidos, e as respostas dadas (onze votos contra
um); só o jurado ruivo estava inquieto. No fim, como os votos
assegurassem a condenação, ficou satisfeito, disse que seria um ato
de fraqueza, ou cousa pior, a absolvição que lhe déssemos. Um dos
jurados, certamente o que votara pela negativa, -- proferiu algumas
palavras de defesa do moço. O ruivo, -- chamava-se Lopes, -- replicou
com aborrecimento:
-- Como, senhor? Mas o crime do réu está mais que provado.
-- Deixemos de debate, disse eu, e todos concordaram comigo.
-- Não estou debatendo, estou defendendo o meu voto, continuou
Lopes. O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo
o réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade!
Tudo por uma miséria, duzentos mil-réis! Suje-se gordo! Quer
Sujar-se? Suje-se gordo!
"Suje-se gordo!" Confesso-lhe que fiquei de boca aberta, não que
entendesse a frase, ao contrário; nem a entendi nem a achei limpa,
e foi por isso mesmo que fiquei de boca aberta. Afinal caminhei e
bati à porta, abriram-nos, fui à mesa do juiz, dei as respostas do
Conselho e o réu saiu condenado. O advogado apelou; se a sentença
foi confirmada ou a apelação aceita, não sei; perdi o negócio de vista.
Quando saí do tribunal, vim pensando na frase do Lopes, e pareceu-
me entende-la. "Suje-se gordo!" era como se dissesse que o condenado
era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada.
Achei esta explicação na esquina da Rua de S. Pedro; vinha ainda
pela dos Ourives. Cheguei a desandar um pouco, a ver se descobria
o Lopes para lhe apertar a mão; nem sombra de Lopes. No dia
seguinte, lendo nos jornais os nossos nomes, dei com o nome todo
dele; não valia a pena procurá-lo, nem me ficou de cor. Assim são
as páginas da vida, como dizia meu filho quando fazia versos, e
acrescentava que as páginas vão passando umas sobre outras, esquecidas
apenas lidas. Rimava assim, mas não me lembra a forma dos
versos.
Em prosa disse-me ele, muito tempo depois, que eu não devia
faltar ao júri, para o qual acabava de ser designado. Respondi-lhe
que não compareceria, e citei o preceito evangélico; ele teimou, dizendo
ser um dever de cidadão, um serviço gratuito, que ninguém
que se prezasse podia negar ao seu país. Fui e julguei três processos.
Um destes era de um empregado do Banco do Trabalho Honrado,
o caixa, acusado de um desvio de dinheiro. Ouvira falar no caso,
que os jornais deram sem grande minúcia, e aliás eu lia pouco as
notícias de crimes. O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso
banco dos réus, Era um homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci;
pareceu-me ver o meu colega daquele julgamento de anos
antes. Não poderia reconhecê-lo logo por estar agora magro, mas
era a mesma cor dos cabelos e das barbas, o mesmo ar, e por fim
a mesma voz e o mesmo nome: Lopes.
-- Como se chama? perguntou o presidente.
-- Antônio do Carmo Ribeiro Lopes.
Já me não lembravam os três primeiros nomes, o quarto era o
mesmo, e os outros sinais vieram confirmando as reminiscências;
não me tardou reconhecer a pessoa exata daquele dia remoto. Digolhe
aqui com verdade que todas essas circunstâncias me impediram
de acompanhar atentamente o interrogatório, e muitas cousas me
escaparam. Quando me dispus a ouvi-lo bem, estava quase no fim.
Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia
de maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava
os olhos sem medo nem ansiedade; não sei até se com um pontinha
de riso nos cantos da boca.
Seguiu-se a leitura do processo. Era um falsidade e um desvio
de cento e dez contos de réis. Não lhe digo como se descobriu o
crime nem o criminoso, por já ser tarde; a orquestra está afinando
os instrumentos. O que lhe digo com certeza é que a leitura dos
autos me impressionou muito, o inquérito. os documentos, a tentativa
de fuga do caixa e uma série de circunstâncias agravantes; por fim
o depoimento das testemunhas. Eu ouvia ler ou falar e olhava para
o Lopes. Também ele ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão,
o presidente, o tecto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu.
Quando olhou para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo
e sorriu, como fazia aos outros.
Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal
como serviram, tempos antes. os gestos contrários do outro acusado.
O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado
mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer
aquela paz de espírito.
Enquanto os dous oradores falavam, vim pensando na fatalidade
de estar ali, no mesmo banco do outro, este homem que votara a
condenação dele, e naturalmente repeti comigo o texto evangélico:
"Não queirais julgar, para que não sejais julgados". Confesso-lhe
que mais de uma vez me senti frio. Não é que eu mesmo viesse a
cometer algum desvio de dinheiro, mas podia, em ocasião de raiva,
matar alguém ou ser caluniado de desfalque. Aquele que julgava
outrora, era agora julgado também.
Ao pé da palavra bíblica lembrou-me de repente a do mesmo
Lopes: "Suje-se gordo!" Não imagina o sacudimento que me deu
esta lembrança. Evoquei tudo o que contei agora, o discursinho que
lhe ouvi na sala secreta, até àquelas palavras: "Suje-se gordo!" Vi
que não era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim de grande
valor. O verbo é que definia duramente a ação. "Suje-se gordo!"
Queria dizer que o homem não se devia levar a um ato daquela
espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro
patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!
Idéias e palavras iam assim rolando na minha cabeça, sem eu dar
pelo resumo dos debates que o presidente do tribunal fazia. Tinha
acabado, leu os quesitos e recolhemo-nos à sala secreta. Posso dizerlhe
aqui em particular que votei afirmativamente, tão certo me pareceu
o desvio dos cento e dez contos. Havia, entre outros documentos,
uma carta de Lopes que fazia evidente o crime. Mas parece que nem
todos leram com os mesmos olhos que eu. Votaram comigo dous
jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de
absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua. A diferença
da votação era tamanha, que cheguei a duvidar comigo se teria
acertado. Podia ser que não. Agora mesmo sinto uns repelões de
consciência. Felizmente, se o Lopes não cometeu deveras o crime,
não recebeu a pena do meu voto, e esta consideração acaba por me
consolar do erro, mas os repelões voltam. O melhor de tudo é não
julgar ninguém para não vir a ser julgado. Suje-se gordo! suje-se
magro! suje-se como lhe parecer! o mais seguro é não julgar ninguém...
Acabou a música, vamos para as nossas cadeiras.

A Carta de Pero Vaz de Caminha

Esta, é a primeira narrativa "escrita" no Brasil.


A Carta, de Pero Vaz de Caminha
Fonte:
Carta a El Rei D. Manuel, Dominus : São Paulo, 1963.
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A Carta
Pero Vaz de Caminha
Senhor,
posto que o Capitão-mor desta Vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa
Alteza a notícia do achamento desta Vossa terra nova, que se agora nesta navegação achou,
não deixarei de também dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder,
ainda que -- para o bem contar e falar -- o saiba pior que todos fazer!
Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade, a qual bem certo creia que,
para aformosentar nem afear, aqui não há de pôr mais do que aquilo que vi e me pareceu.
Da marinhagem e das singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza -- porque o
não saberei fazer -- e os pilotos devem ter este cuidado.
E portanto, Senhor, do que hei de falar começo:
E digo quê:
A partida de Belém foi -- como Vossa Alteza sabe, segunda-feira 9 de março. E sábado, 14 do
dito mês, entre as 8 e 9 horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grande Canária.
E ali andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E
domingo, 22 do dito mês, às dez horas mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo
Verde, a saber da ilha de São Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto.
Na noite seguinte à segunda-feira amanheceu, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com a sua
nau, sem haver tempo forte ou contrário para poder ser !
Fez o capitão suas diligências para o achar, em umas e outras partes. Mas... não apareceu mais
!
E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira das Oitavas de
Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra, estando da dita Ilha --
segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas -- os quais eram muita quantidade de
ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, e assim mesmo outras a que dão o
nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam
furabuchos.
Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber, primeiramente de um
grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã,
com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra
A Terra de Vera Cruz!
Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças. E ao sol-posto umas seis léguas da
terra, lançamos ancoras, em dezenove braças -- ancoragem limpa. Ali ficamo-nos toda aquela
noite. E quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos em direitura à terra, indo os navios
pequenos diante -- por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, doze, nove braças -- até meia
légua da terra, onde todos lançamos ancoras, em frente da boca de um rio. E chegaríamos a
esta ancoragem às dez horas, pouco mais ou menos.
E dali avistamos homens que andavam pela praia, uns sete ou oito, segundo disseram os
navios pequenos que chegaram primeiro.
Então lançamos fora os batéis e esquifes. E logo vieram todos os capitães das naus a esta nau
do Capitão-mor. E ali falaram. E o Capitão mandou em terra a Nicolau Coelho para ver
aquele rio. E tanto que ele começou a ir-se para lá, acudiram pela praia homens aos dois e aos
três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, já lá estavam dezoito ou vinte.
Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e
suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que
pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem entendimento
que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente arremessou-lhe um barrete vermelho e
uma carapuça de linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe
arremessou um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas
vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas
brancas, miúdas que querem parecer de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a
Vossa Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala,
por causa do mar.
À noite seguinte ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus. E especialmente
a Capitaina. E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos
pilotos, mandou o Capitão levantar ancoras e fazer vela. E fomos de longo da costa, com os
batéis e esquifes amarrados na popa, em direção norte, para ver se achávamos alguma
abrigada e bom pouso, onde nós ficássemos, para tomar água e lenha. Não por nos já minguar,
mas por nos prevenirmos aqui. E quando fizemos vela estariam já na praia assentados perto
do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali aos poucos. Fomos ao
longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos que fossem mais chegados à terra e, se
achassem pouso seguro para as naus, que amainassem.
E velejando nós pela costa, na distância de dez léguas do sítio onde tínhamos levantado ferro,
acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro,
com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. E as naus foram-se chegando,
atrás deles. E um pouco antes de sol-pôsto amainaram também, talvez a uma légua do recife, e
ancoraram a onze braças.
E estando Afonso Lopez, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, foi, por mandado do
Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meter-se logo no esquife a sondar o porto
dentro. E tomou dois daqueles homens da terra que estavam numa almadia: mancebos e de
bons corpos. Um deles trazia um arco, e seis ou sete setas. E na praia andavam muitos com
seus arcos e setas; mas não os aproveitou. Logo, já de noite, levou-os à Capitaina, onde foram
recebidos com muito prazer e festa.
A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem
feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de
encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência.
Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de
uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador.
Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é
feita a modo de roque de xadrez. E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem
lhes põe estorvo no falar, nem no comer e beber.
Os cabelos deles são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta antes do que sobrepente,
de boa grandeza, rapados todavia por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da
solapa, de fonte a fonte, na parte detrás, uma espécie de cabeleira, de penas de ave amarela,
que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as
orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena por pena, com uma confeição branda como, de
maneira tal que a cabeleira era mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais
lavagem para a levantar.
O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, aos pés uma alcatifa por
estrado; e bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao pescoço. E Sancho de Tovar, e
Simão de Miranda, e Nicolau Coelho, e Aires Corrêa, e nós outros que aqui na nau com ele
íamos, sentados no chão, nessa alcatifa. Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas nem sinal
de cortesia fizeram, nem de falar ao Capitão; nem a alguém. Todavia um deles fitou o colar do
Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois para o colar, como
se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também olhou para um castiçal de prata e
assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse
prata!
Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e
acenaram para a terra, como se os houvesse ali.
Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dele.
Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão. Depois
lhe pegaram, mas como espantados.
Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel, figos passados. Não
quiseram comer daquilo quase nada; e se provavam alguma coisa, logo a lançavam fora.
Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram dele nada, nem
quiseram mais.
Trouxeram-lhes água em uma albarrada, provaram cada um o seu bochecho, mas não
beberam; apenas lavaram as bocas e lançaram-na fora.
Viu um deles umas contas de rosário, brancas; fez sinal que lhas dessem, e folgou muito com
elas, e lançou-as ao pescoço; e depois tirou-as e meteu-as em volta do braço, e acenava para a
terra e novamente para as contas e para o colar do Capitão, como se dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós nesse sentido, por assim o desejarmos! Mas se ele queria dizer que
levaria as contas e mais o colar, isto não queríamos nós entender, por que lho não havíamos
de dar! E depois tornou as contas a quem lhas dera. E então estiraram-se de costas na alcatifa,
a dormir sem procurarem maneiras de encobrir suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e
as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas.
O Capitão mandou pôr por baixo da cabeça de cada um seu coxim; e o da cabeleira esforçavase
por não a estragar. E deitaram um manto por cima deles; e consentindo, aconchegaram-se e
adormeceram.
Sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, fomos demandar a entrada, a qual era mui
larga e tinha seis a sete braças de fundo. E entraram todas as naus dentro, e ancoraram em
cinco ou seis braças -- ancoradouro que é tão grande e tão formoso de dentro, e tão seguro que
podem ficar nele mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus foram distribuídas e
ancoradas, vieram os capitães todos a esta nau do Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão
que Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias fossem em terra e levassem aqueles dois homens, e os
deixassem ir com seu arco e setas, aos quais mandou dar a cada um uma camisa nova e uma
carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que foram levando nos braços, e
um cascavel e uma campainha. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado,
criado de dom João Telo, de nome Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu
viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho. Fomos assim de frecha
direitos à praia. Ali acudiram logo perto de duzentos homens, todos nus, com arcos e setas nas
mãos. Aqueles que nós levamos acenaram-lhes que se afastassem e depusessem os arcos. E
eles os depuseram. Mas não se afastaram muito. E mal tinham pousado seus arcos quando
saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não pararam mais;
nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais correria. E passaram um rio
que aí corre, de água doce, de muita água que lhes dava pela braga. E muitos outros com eles.
E foram assim correndo para além do rio entre umas moitas de palmeiras onde estavam
outros. E ali pararam. E naquilo tinha ido o degredado com um homem que, logo ao sair do
batel, o agasalhou e levou até lá. Mas logo o tornaram a nós. E com ele vieram os outros que
nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças.
E então se começaram de chegar muitos; e entravam pela beira do mar para os batéis, até que
mais não podiam. E traziam cabaças d'água, e tomavam alguns barris que nós levávamos e
enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todo chegassem a bordo do
batel. Mas junto a ele, lançavam-nos da mão. E nós tomávamo-los. E pediam que lhes dessem
alguma coisa.
Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, e a outros uma
manilha, de maneira que com aquela encarna quase que nos queriam dar a mão. Davam-nos
daqueles arcos e setas em troca de sombreiros e carapuças de linho, e de qualquer coisa que a
gente lhes queria dar.
Dali se partiram os outros, dois mancebos, que não os vimos mais.
Dos que ali andavam, muitos -- quase a maior parte --traziam aqueles bicos de osso nos
beiços.
E alguns, que andavam sem eles, traziam os beiços furados e nos buracos traziam uns
espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha. E alguns deles traziam três daqueles
bicos, a saber um no meio, e os dois nos cabos.
E andavam lá outros, quartejados de cores, a saber metade deles da sua própria cor, e metade
de tintura preta, um tanto azulada; e outros quartejados d'escaques.
Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito
pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das
cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam.
Ali por então não houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbana deles ser tamanha
que se não entendia nem ouvia ninguém. Acenamos-lhes que se fossem. E assim o fizeram e
passaram-se para além do rio. E saíram três ou quatro homens nossos dos batéis, e encheram
não sei quantos barris d'água que nós levávamos. E tornamo-nos às naus. E quando assim
vínhamos, acenaram-nos que voltássemos. Voltamos, e eles mandaram o degredado e não
quiseram que ficasse lá com eles, o qual levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças
vermelhas para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não trataram de lhe tirar coisa alguma,
antes mandaram-no com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, que lhe
desse aquilo. E ele tornou e deu aquilo, em vista de nós, a aquele que o da primeira
agasalhara. E então veio-se, e nós levamo-lo.
Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por galanteria, cheio de penas, pegadas pelo
corpo, que parecia seteado como São Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas;
e outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a
cima, daquela tintura e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que
a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas
como ela. Nenhum deles era fanado, mas todos assim como nós.
E com isto nos tornamos, e eles foram-se.
À tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todos nós outros capitães das naus em seus
batéis a folgar pela baía, perto da praia. Mas ninguém saiu em terra, por o Capitão o não
querer, apesar de ninguém estar nela. Apenas saiu -- ele com todos nós -- em um ilhéu grande
que está na baía, o qual, aquando baixamar, fica mui vazio. Com tudo está de todas as partes
cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir, a não ser de barco ou a nado. Ali folgou ele,
e todos nós, bem uma hora e meia. E pescaram lá, andando alguns marinheiros com um
chinchorro; e mataram peixe miúdo, não muito. E depois volvemo-nos às naus, já bem noite.
Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão ir ouvir missa e sermão naquele
ilhéu. E mandou a todos os capitães que se arranjassem nos batéis e fossem com ele. E assim
foi feito. Mandou armar um pavilhão naquele ilhéu, e dentro levantar um altar mui bem
arranjado. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual disse o padre frei Henrique, em
voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que todos
assistiram, a qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e
devoção.
Ali estava com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saíra de Belém, a qual esteve sempre
bem alta, da parte do Evangelho.
Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por
essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação, da história evangélica; e no fim tratou
da nossa vida, e do achamento desta terra, referindo-se à Cruz, sob cuja obediência viemos,
que veio muito a propósito, e fez muita devoção.
Enquanto assistimos à missa e ao sermão, estaria na praia outra tanta gente, pouco mais ou
menos, como a de ontem, com seus arcos e setas, e andava folgando. E olhando-nos,
sentaram. E depois de acabada a missa, quando nós sentados atendíamos a pregação,
levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e dançar um
pedaço. E alguns deles se metiam em almadias -- duas ou três que lá tinham -- as quais não
são feitas como as que eu vi; apenas são três traves, atadas juntas. E ali se metiam quatro ou
cinco, ou esses que queriam, não se afastando quase nada da terra, só até onde podiam tomar
pé.
Acabada a pregação encaminhou-se o Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa
bandeira alta. Embarcamos e fomos indo todos em direção à terra para passarmos ao longo
por onde eles estavam, indo na dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias em seu
esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para o entregar a eles. E nós
todos trás dele, a distância de um tiro de pedra.
Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela
até onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos e muitos deles os iam logo pôr
em terra; e outros não os punham.
Andava lá um que falava muito aos outros, que se afastassem. Mas não já que a mim me
parecesse que lhe tinham respeito ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu
arco e setas. Estava tinto de tintura vermelha pelos peitos e costas e pelos quadris, coxas e
pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura
era tão vermelha que a água lha não comia nem desfazia. Antes, quando saía da água, era
mais vermelho. Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava no meio deles, sem
implicarem nada com ele, e muito menos ainda pensavam em fazer-lhe mal. Apenas lhe
davam cabaças d'água; e acenavam aos do esquife que saíssem em terra. Com isto se volveu
Bartolomeu Dias ao Capitão. E viemo-nos às naus, a comer, tangendo trombetas e gaitas, sem
os mais constranger. E eles tornaram-se a sentar na praia, e assim por então ficaram.
Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e sermão, espraia muito a água e descobre muita areia e
muito cascalho. Enquanto lá estávamos foram alguns buscar marisco e não no acharam. Mas
acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um muito grande e muito
grosso; que em nenhum tempo o vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e de
amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira. E depois de termos comido vieram
logo todos os capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se aportou; e
eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta
terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor mandar descobrir e saber dela
mais do que nós podíamos saber, por irmos na nossa viagem.
E entre muitas falas que sobre o caso se fizeram foi dito, por todos ou a maior parte, que seria
muito bem. E nisto concordaram. E logo que a resolução foi tomada, perguntou mais, se seria
bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando
aqui em lugar deles outros dois destes degredados.
E concordaram em que não era necessário tomar por força homens, porque costume era dos
que assim à força levavam para alguma parte dizerem que há de tudo quanto lhes perguntam;
e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens desses degredados que
aqui deixássemos do que eles dariam se os levassem por ser gente que ninguém entende. Nem
eles cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não
digam quando cá Vossa Alteza mandar.
E que portanto não cuidássemos de aqui por força tomar ninguém, nem fazer escândalo; mas
sim, para os de todo amansar e apaziguar, unicamente de deixar aqui os dois degredados
quando daqui partíssemos.
E assim ficou determinado por parecer melhor a todos.
Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra. E ver-se-ia bem, quejando era
o rio. Mas também para folgarmos.
Fomos todos nos batéis em terra, armados; e a bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, à
boca do rio, para onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham,
puseram todos os arcos, e acenaram que saíssemos. Mas, tanto que os batéis puseram as proas
em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais ancho que um jogo de
mancal. E tanto que desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se
entre eles. E alguns aguardavam; e outros se afastavam. Com tudo, a coisa era de maneira que
todos andavam misturados. Eles davam desses arcos com suas setas por sombreiros e
carapuças de linho, e por qualquer coisa que lhes davam. Passaram além tantos dos nossos e
andaram assim misturados com eles, que eles se esquivavam, e afastavam-se; e iam alguns
para cima, onde outros estavam. E então o Capitão fez que o tomassem ao colo dois homens e
passou o rio, e fez tornar a todos. A gente que ali estava não seria mais que aquela do
costume. Mas logo que o Capitão chamou todos para trás, alguns se chegaram a ele, não por o
reconhecerem por Senhor, mas porque a gente, nossa, já passava para aquém do rio. Ali
falavam e traziam muitos arcos e continhas, daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer
coisa, de tal maneira que os nossos levavam dali para as naus muitos arcos, e setas e contas.
E então tornou-se o Capitão para aquém do rio. E logo acudiram muitos à beira dele.
Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim pelos corpos como
pelas pernas, que, certo, assim pareciam bem. Também andavam entre eles quatro ou cinco
mulheres, novas, que assim nuas, não pareciam mal. Entre elas andava uma, com uma coxa,
do joelho até o quadril e a nádega, toda tingida daquela tintura preta; e todo o resto da sua cor
natural. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés;
e suas vergonhas tão nuas, e com tanta inocência assim descobertas, que não havia nisso
desvergonha nenhuma.
Também andava lá outra mulher, nova, com um menino ou menina, atado com um pano aos
peitos, de modo que não se lhe viam senão as perninhas. Mas nas pernas da mãe, e no resto,
não havia pano algum.
Em seguida o Capitão foi subindo ao longo do rio, que corre rente à praia. E ali esperou por
um velho que trazia na mão uma pá de almadia. Falou, enquanto o Capitão estava com ele, na
presença de todos nós; mas ninguém o entendia, nem ele a nós, por mais coisas que a gente
lhe perguntava com respeito a ouro, porque desejávamos saber se o havia na terra.
Trazia este velho o beiço tão furado que lhe cabia pelo buraco um grosso dedo polegar. E
trazia metido no buraco uma pedra verde, de nenhum valor, que fechava por fora aquele
buraco. E o Capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela para a boca do
Capitão para lha meter. Estivemos rindo um pouco e dizendo chalaças sobre isso. E então
enfadou-se o Capitão, e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho;
não por ela valer alguma coisa, mas para amostra. E depois houve-a o Capitão, creio, para
mandar com as outras coisas a Vossa Alteza.
Andamos por aí vendo o ribeiro, o qual é de muita água e muito boa. Ao longo dele há muitas
palmeiras, não muito altas; e muito bons palmitos. Colhemos e comemos muitos deles.
Depois tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio, onde tínhamos desembarcado.
E além do rio andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante os outros, sem se
tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então para a outra banda do rio Diogo Dias,
que fora almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer. E levou consigo um
gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles
folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem fez ali
muitas voltas ligeiras, andando no chão, e salto real, de que se eles espantavam e riam e
folgavam muito. E conquanto com aquilo os segurou e afagou muito, tomavam logo uma
esquiveza como de animais montezes, e foram-se para cima.
E então passou o rio o Capitão com todos nós, e fomos pela praia, de longo, ao passo que os
batéis iam rentes à terra. E chegamos a uma grande lagoa de água doce que está perto da
praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai a água por muitos lugares.
E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles meter-se entre os marinheiros que se
recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão que Bartolomeu Dias matou. E levavam-lho;
e lançou-o na praia.
Bastará que até aqui, como quer que se lhes em alguma parte amansassem, logo de uma mão
para outra se esquivavam, como pardais do cevadouro. Ninguém não lhes ousa falar de rijo
para não se esquivarem mais. E tudo se passa como eles querem -- para os bem amansarmos !
Ao velho com quem o Capitão havia falado, deu-lhe uma carapuça vermelha. E com toda a
conversa que com ele houve, e com a carapuça que lhe deu tanto que se despediu e começou a
passar o rio, foi-se logo recatando. E não quis mais tornar do rio para aquém. Os outros dois o
Capitão teve nas naus, aos quais deu o que já ficou dito, nunca mais aqui apareceram -- fatos
de que deduzo que é gente bestial e de pouco saber, e por isso tão esquiva. Mas apesar de tudo
isso andam bem curados, e muito limpos. E naquilo ainda mais me convenço que são como
aves, ou alimárias montezinhas, as quais o ar faz melhores penas e melhor cabelo que às
mansas, porque os seus corpos são tão limpos e tão gordos e tão formosos que não pode ser
mais! E isto me faz presumir que não tem casas nem moradias em que se recolham; e o ar em
que se criam os faz tais. Nós pelo menos não vimos até agora nenhumas casas, nem coisa que
se pareça com elas.
Mandou o Capitão aquele degredado, Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. E foi;
e andou lá um bom pedaço, mas a tarde regressou, que o fizeram eles vir: e não o quiseram lá
consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nada do seu. Antes, disse ele, que lhe
tomara um deles umas continhas amarelas que levava e fugia com elas, e ele se queixou e os
outros foram logo após ele, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir.
Disse que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de feteiras muito
grandes, como as de Entre Douro e Minho. E assim nos tornamos às naus, já quase noite, a
dormir.
Segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos;
mas não tantos como as outras vezes. E traziam já muito poucos arcos. E estiveram um pouco
afastados de nós; mas depois pouco a pouco misturaram-se conosco; e abraçavam-nos e
folgavam; mas alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e
por alguma carapucinha velha e por qualquer coisa. E de tal maneira se passou a coisa que
bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles para onde outros muitos deles
estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves,
uns verdes, outros amarelos, dos quais creio que o Capitão há de mandar uma amostra a
Vossa Alteza.
E segundo diziam esses que lá tinham ido, brincaram com eles. Neste dia os vimos mais de
perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados: uns andavam quartejados
daquelas tinturas, outros de metades, outros de tanta feição como em pano de ras, e todos com
os beiços furados, muitos com os ossos neles, e bastantes sem ossos. Alguns traziam uns
ouriços verdes, de árvores, que na cor queriam parecer de castanheiras, embora fossem muito
mais pequenos. E estavam cheios de uns grãos vermelhos, pequeninos que, esmagando-se
entre os dedos, se desfaziam na tinta muito vermelha de que andavam tingidos. E quanto mais
se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.
Todos andam rapados até por cima das orelhas; assim mesmo de sobrancelhas e pestanas.
Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas de tintura preta, que parece uma fita preta da
largura de dois dedos.
E o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados que fossem
meter-se entre eles; e assim mesmo a Diogo Dias, por ser homem alegre, com que eles
folgavam. E aos degredados ordenou que ficassem lá esta noite.
Foram-se lá todos; e andaram entre eles. E segundo depois diziam, foram bem uma légua e
meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais diziam que eram tão
compridas, cada uma, como esta nau capitaina. E eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e
cobertas de palha, de razoável altura; e todas de um só espaço, sem repartição alguma, tinham
de dentro muitos esteios; e de esteio a esteio uma rede atada com cabos em cada esteio, altas,
em que dormiam. E de baixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas
portas pequenas, uma numa extremidade, e outra na oposta. E diziam que em cada casa se
recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os encontraram; e que lhes deram de comer
dos alimentos que tinham, a saber muito inhame, e outras sementes que na terra dá, que eles
comem. E como se fazia tarde fizeram-nos logo todos tornar; e não quiseram que lá ficasse
nenhum. E ainda, segundo diziam, queriam vir com eles. Resgataram lá por cascavéis e outras
coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e
dois verdes pequeninos, e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores,
espécie de tecido assaz belo, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o Capitão
vo-las há de mandar, segundo ele disse. E com isto vieram; e nós tornamo-nos às naus.
Terça-feira, depois de comer, fomos em terra, fazer lenha, e para lavar roupa. Estavam na
praia, quando chegamos, uns sessenta ou setenta, sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos,
vieram logo para nós, sem se esquivarem. E depois acudiram muitos, que seriam bem
duzentos, todos sem arcos. E misturaram-se todos tanto conosco que uns nos ajudavam a
acarretar lenha e metê-las nos batéis. E lutavam com os nossos, e tomavam com prazer. E
enquanto fazíamos a lenha, construíam dois carpinteiros uma grande cruz de um pau que se
ontem para isso cortara. Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o
faziam mais para verem a ferramenta de ferro com que a faziam do que para verem a cruz,
porque eles não tem coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas
como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que
andam fortes, porque lhas viram lá. Era já a conversação deles conosco tanta que quase nos
estorvavam no que havíamos de fazer.
E o Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia e que de modo
algum viessem a dormir às naus, ainda que os mandassem embora. E assim se foram.
Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios essas árvores;
verdes uns, e pardos, outros, grandes e pequenos, de sorte que me parece que haverá muitos
nesta terra. Todavia os que vi não seriam mais que nove ou dez, quando muito. Outras aves
não vimos então, a não ser algumas pombas-seixeiras, e pareceram-me maiores bastante do
que as de Portugal. Vários diziam que viram rolas, mas eu não as vi. Todavia segundo os
arvoredos são mui muitos e grandes, e de infinitas espécies, não duvido que por esse sertão
haja muitas aves!
E cerca da noite nós volvemos para as naus com nossa lenha.
Eu creio, Senhor, que não dei ainda conta aqui a Vossa Alteza do feitio de seus arcos e setas.
Os arcos são pretos e compridos, e as setas compridas; e os ferros delas são canas aparadas,
conforme Vossa Alteza verá alguns que creio que o Capitão a Ela há de enviar.
Quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos
mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada um podia levar. Eles acudiram à
praia, muitos, segundo das naus vimos. Seriam perto de trezentos, segundo Sancho de Tovar
que para lá foi. Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o Capitão ontem
ordenara que de toda maneira lá dormissem, tinham voltado já de noite, por eles não quererem
que lá ficassem. E traziam papagaios verdes; e outras aves pretas, quase como pegas, com a
diferença de terem o bico branco e rabos curtos. E quando Sancho de Tovar recolheu à nau,
queriam vir com ele, alguns; mas ele não admitiu senão dois mancebos, bem dispostos e
homens de prol. Mandou pensar e curá-los mui bem essa noite. E comeram toda a ração que
lhes deram, e mandou dar-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. E dormiram e folgaram
aquela noite. E não houve mais este dia que para escrever seja.
Quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais
lenha e água. E em querendo o Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois
hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas, e veio-lhe comida. E comeu.
Os hóspedes, sentaram-no cada um em sua cadeira. E de tudo quanto lhes deram, comeram
mui bem, especialmente lacão cozido frio, e arroz. Não lhes deram vinho por Sancho de
Tovar dizer que o não bebiam bem.
Acabado o comer, metemo-nos todos no batel, e eles conosco. Deu um grumete a um deles
uma armadura grande de porco montês, bem revolta. E logo que a tomou meteu-a no beiço; e
porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pouca de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe
seu adereço da parte de trás de sorte que segurasse, e meteu-a no beiço, assim revolta para
cima; e ia tão contente com ela, como se tivesse uma grande jóia. E tanto que saímos em terra,
foi-se logo com ela. E não tornou a aparecer lá.
Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir. E
parece-me que viriam este dia a praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta. Alguns deles
traziam arcos e setas; e deram tudo em troca de carapuças e por qualquer coisa que lhes
davam. Comiam conosco do que lhes dávamos, e alguns deles bebiam vinho, ao passo que
outros o não podiam beber. Mas quer-me parecer que, se os acostumarem, o hão de beber de
boa vontade! Andavam todos tão bem dispostos e tão bem feitos e galantes com suas pinturas
que agradavam. Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com mil boas vontades, e levavamna
aos batéis. E estavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós estávamos entre eles.
Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até um ribeiro grande, e de
muita água, que ao nosso parecer é o mesmo que vem ter à praia, em que nós tomamos água.
Ali descansamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dele, entre esse arvoredo que é
tanto e tamanho e tão basto e de tanta qualidade de folhagem que não se pode calcular. Há lá
muitas palmeiras, de que colhemos muitos e bons palmitos.
Ao sairmos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos em direitura à cruz que estava
encostada a uma árvore, junto ao rio, a fim de ser colocada amanhã, sexta-feira, e que nos
puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos.
E assim fizemos. E a esses dez ou doze que lá estavam, acenaram-lhes que fizessem o mesmo;
e logo foram todos beijá-la.
Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam
logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E
portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem,
não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer
na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é
boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem
dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o
Ele nos para aqui trazer creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto
deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que
com pouco trabalho seja assim!
Eles não lavram nem criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer
outro animal que esteja acostumado ao viver do homem. E não comem senão deste inhame, de
que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam. E com isto
andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes
comemos.
Nesse dia, enquanto ali andavam, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som de um
tamboril nosso, como se fossem mais amigos nossos do que nós seus. Se lhes a gente acenava,
se queriam vir às naus, aprontavam-se logo para isso, de modo tal, que se os convidáramos a
todos, todos vieram. Porém não levamos esta noite às naus senão quatro ou cinco; a saber, o
Capitão-mor, dois; e Simão de Miranda, um que já trazia por pagem; e Aires Gomes a outro,
pagem também. Os que o Capitão trazia, era um deles um dos seus hóspedes que lhe haviam
trazido a primeira vez quando aqui chegamos -- o qual veio hoje aqui vestido na sua camisa, e
com ele um seu irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados tanto de comida como de
cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar.
E hoje que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra com nossa
bandeira; e fomos desembarcar acima do rio, contra o sul onde nos pareceu que seria melhor
arvorar a cruz, para melhor ser vista. E ali marcou o Capitão o sítio onde haviam de fazer a
cova para a fincar. E enquanto a iam abrindo, ele com todos nós outros fomos pela cruz, rio
abaixo onde ela estava. E com os religiosos e sacerdotes que cantavam, à frente, fomos
trazendo-a dali, a modo de procissão. Eram já aí quantidade deles, uns setenta ou oitenta; e
quando nos assim viram chegar, alguns se foram meter debaixo dela, ajudar-nos. Passamos o
rio, ao longo da praia; e fomos colocá-la onde havia de ficar, que será obra de dois tiros de
besta do rio. Andando-se ali nisto, viriam bem cento cinqüenta, ou mais. Plantada a cruz, com
as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiro lhe haviam pregado, armaram altar ao pé
dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali
estiveram conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelho
assim como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as
mãos levantadas, eles se levantaram conosco, e alçaram as mãos, estando assim até se chegar
ao fim; e então tornaram-se a assentar, como nós. E quando levantaram a Deus, que nos
pusemos de joelhos, eles se puseram assim como nós estávamos, com as mãos levantadas, e
em tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção.
Estiveram assim conosco até acabada a comunhão; e depois da comunhão, comungaram esses
religiosos e sacerdotes; e o Capitão com alguns de nós outros. E alguns deles, por o Sol ser
grande, levantaram-se enquanto estávamos comungando, e outros estiveram e ficaram. Um
deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, se conservou ali com aqueles que
ficaram. Esse, enquanto assim estávamos, juntava aqueles que ali tinham ficado, e ainda
chamava outros. E andando assim entre eles, falando-lhes, acenou com o dedo para o altar, e
depois mostrou com o dedo para o céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós
assim o tomamos!
Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima, e ficou na alva; e assim se subiu, junto
ao altar, em uma cadeira; e ali nos pregou o Evangelho e dos Apóstolos cujo é o dia, tratando
no fim da pregação desse vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, que nos causou mais
devoção.
Esses que estiveram sempre à pregação estavam assim como nós olhando para ele. E aquele
que digo, chamava alguns, que viessem ali. Alguns vinham e outros iam-se; e acabada a
pregação, trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram
ainda da outra vinda. E houveram por bem que lançassem a cada um sua ao pescoço. Por essa
causa se assentou o padre frei Henrique ao pé da cruz; e ali lançava a sua a todos -- um a um -
- ao pescoço, atada em um fio, fazendo-lha primeiro beijar e levantar as mãos. Vinham a isso
muitos; e lançavam-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta. E isto acabado -- era
já bem uma hora depois do meio dia -- viemos às naus a comer, onde o Capitão trouxe
consigo aquele mesmo que fez aos outros aquele gesto para o altar e para o céu, (e um seu
irmão com ele). A aquele fez muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca; e ao outro uma
camisa destoutras.
E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, não lhes falece outra coisa para ser toda
cristã, do que entenderem-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós
mesmos; por onde pareceu a todos que nenhuma idolatria nem adoração têm. E bem creio
que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão
tornados e convertidos ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo
de vir clérigo para os batizar; porque já então terão mais conhecimentos de nossa fé, pelos
dois degredados que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram.
Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma mulher, moça, a qual esteve sempre
à missa, à qual deram um pano com que se cobrisse; e puseram-lho em volta dela. Todavia, ao
sentar-se, não se lembrava de o estender muito para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência
desta gente é tal que a de Adão não seria maior -- com respeito ao pudor.
Ora veja Vossa Alteza quem em tal inocência vive se se convertera, ou não, se lhe ensinarem
o que pertence à sua salvação.
Acabado isto, fomos perante eles beijar a cruz. E despedimo-nos e fomos comer.
Creio, Senhor, que, com estes dois degredados que aqui ficam, ficarão mais dois grumetes,
que esta noite se saíram em terra, desta nau, no esquife, fugidos, os quais não vieram mais. E
cremos que ficarão aqui porque de manhã, prazendo a Deus fazemos nossa partida daqui.
Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos, até à outra ponta que
contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem
vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Traz ao longo do mar em algumas partes grandes
barreiras, umas vermelhas, e outras brancas; e a terra de cima toda chã e muito cheia de
grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia... muito chã e muito formosa. Pelo sertão
nos pareceu, vista do mar, muito grande; porque a estender olhos, não podíamos ver senão
terra e arvoredos -- terra que nos parecia muito extensa.
Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem
lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-
Douro-e-Minho, porque neste tempo d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são
muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo;
por causa das águas que tem!
Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta
deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que não houvesse mais
do que ter Vossa Alteza aqui esta pousada para essa navegação de Calicute bastava. Quanto
mais, disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber,
acrescentamento da nossa fé!
E desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta Vossa terra vi. E se a um pouco
alonguei, Ela me perdoe. Porque o desejo que tinha de Vos tudo dizer, mo fez pôr assim pelo
miúdo.
E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que
de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por
me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro -- o
que d'Ela receberei em muita mercê.
Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de
1500.
Pero Vaz de Caminha.

LÓGICA. INTRODUÇÃO.

Curso de lógica. Lição I.

Lição de Introdução.

Que coisa é a lógica ?

Scienza del ragionamento.

A ciência da razão.
São dois termos do discurso: ciência e razão.

Do termo Razão.
O que interessa aqui é saber como o homem pensa, arrazoa, razona!
Não interessa de que forma é feito o mundo, o cérebro, o ovo.
Do termo Ciência. Nos interessa o como, o método.

Ou seja, qual será o argumento do discurso? A resposta é a razão, il raggionamento,
e qual será o método? O método cientifico.
E se tratando de lógica matemática, que poderia ser dito somente matemática, o método será o método matemático.

Mas o que é a lógica matemática?
Se a lógica é a ciência do pensamento, razão.

Por analogia. Si puó dire:

Numa palavra, é a ciência do pensamento da razão matemática.
Scienza del ragionamento matematico.
E desta maneira, além de método, o pensamento matemático passa a ser também objeto do pensamento da lógica. Claro! Sem fazer grandes castelos filosóficos de retórica.

O método matemático é axiomático. Um axioma é uma proposição tão evidente que não precisa ser demonstrada e então, partir para definições mais complexas derivadas de tal proposição.
Ou seja, pensar matematicamente a lógica matemática. Sem grandes floreios.

Começando por um titulo um tanto fantasioso, para chamar a atenção:

Le tre vie della logica.

. Dialettica.
. Paradossi.
.Dimostrazioni.

Nesta lição introdutória faremos uma breve apresentação que nas próximas lições nos aprofundaremos.

Então:

DIALETTICA.

A dialética foi iniciada, pelo menos no ocidente, pelos sofistas, a Escola dos Sofistas.
Assim em e no principio a dialética é sinônimo de sofisma.
Hoje quando se usa o adjetivo sofista ele tem significado pejorativo.
(discursos capciosos, jogar sobre o equivoco i cose via)

Os sofistas eram, em parte, isso. Mas não é o caso dei Sofisti (Protagora, Gorgia) aos quais Platão dedicou um grande estudo, dois diálogos famosos: Protágoras e Gorgias _. Claro que Platão se posicionava em contra dos sofistas.

Os sofistas estavam interessados na arte della parole, a la arte del discorso.
E então para se acercarem, capturarem o discurso, a palavra, para fazer o discurso mais incisivo possível, começaram a estudar quais eram as regras que sustentavam o discurso para usarem com esse fim em si. Convencer.
Não vamos mais além pois está é uma via que vai, em boa matemática, pela tangente.
Mas que hoje em dia é usada nos tribunais, parlamentos, nas mídias em geral, como meio de convencimento, a arte do discurso.
A arte do discurso, por antonomásia é a dialética, e para usar a arte do discurso é necessário conhecer as regras. Esse é o primeiro motivo porque começou-se a estudar a lógica.

PARADOSSI. PARADOXO.

Com o paradoxo há o que fazer no núcleo deste estudo, deste discurso.

Vejamos dois paradoxos.

Mentitore. Mentidor. ( Epimenedes)
Epimenide diceva: Tutti i Cretesi sono mentitori"
Epimenide, che era Cretese, diceva la verità?




Achille e la tartaruga. ( Zenone)


que coisa é o paradoxo? (opinião contrária à comum).
O paradoxo é um razonamento, pensamento, aparentemente correto. Mas em algo se equivoca e sua conclusão é paradoxal.

O paradoxo do mentiroso: Eu estou mentindo.
Aparentemente é coerente. Mas se refletimos, se olhamos de perto, “da vicino” vamos ver
se diz a verdade, o que diz é verdadeiro, mas como se diz que mente?
Se o que diz é mentira, então o que diz é mentira, logo se mente que mente uma verdade, não pode ser verdade, posto que diz que mente. De tal maneira que entramos em um círculo vicioso. Que fa girare la testa.

Outro paradoxo:
Aquiles é veloz. Simbolo da velocidade
A tartaruga é “zampa” lenta. Simbolo da lentidão.

Bota-se Aquiles para correr contra a tartaruga. A tartaruga parte em um ponto adiante, para ter alguma chance. Quando Aquiles chega de onde partiu a tartaruga, esta percorreu alguma coisa e está num ponto adiante, assim quando Aquiles ali chega, ela se moveu um pouquinho mais e assim por diante, de tal maneira que Aquiles não lhe alcança.
Assim a lógica deve buscar onde está o erro do razonamento e tratar de reformulá-lo.

A terceira maneira de estudar a lógica é com o uso da DEMONSTRAÇÃO.

DEMONSTRAÇÃO.

Teorema de Pitagoras. E a irracionalidade da rais quadrada de dois.
Irrazionalità di radice di 2.

Dois mil anos A.C. Não se fazia demonstrações. Se apresentava o resultado. ex. O pápiro de Rhind.

Sem justificações. Resultados Intuídos.
Os gregos inventaram as demonstrações.

Pitágoras é o principio da ciência ocidental.

A irracionalidade da raiz quadrada de dois.
Demonstração pelo absurdo.


VITA DA LOGICO, COMO vita da cane.
Antichità.
-Platão.
-Aristóteles.
-Crisipo.

Platão. FUNDADOR DA ACADEMIA.

PRINCIPIO DI NON CONTRADDIZIONE.
Platão presenteou a lógica com este princípio, que os sofistas não usavam. Ou não o conheciam ou faziam “finta” ou de tontos.

O princípio da não contradição impede que se diga uma coisa e impunemente se contradiga.
Oggi piove, oggi non piove e pretender que se acredite nas duas coisas.

Aristóteles. LICEU.
Quantificadores. ( nessuno, qualcuno, tutti)

É o fundador, pai da lógica moderna. A introdução dos quantificadores, estas partículas, nenhum, algum, todos.

CRISIPPO. FUNDOU A STOA. ESTOICOS.

Lógica proposicional.

Não, e, ou, se, então) non, e, o, se allora.
Assim Crisipo estudou os conectivos que são estas partículas. Não, e, ou, se e então, com as quais se constroem as proposições.
A negação: não.
A conjunção: e.
A disjunção: ou.

E o mais importante do ponto de vista da lógica a implicação: se – então.

NÃO.

Hoje chove.
Hoje não chove. Não é verdade que hoje chove.
E.

Hoje chove.
io a l´umbrela.

Hoje chove e eu ao guarda-chuva.

O

Oggi fave ho va da manggiare. Como pastacciuta ou bisteca.

SE

se questo è vero,
ENTÃO
isso também é verdadeiro.
Este ENTÃO é a conjunção a conexão.


ERA MODERNA.
  • Leibniz.
  • Boole
  • Frege.
Leibniz 1676: Características Universais. (sonho de Leibniz) A procura por uma língua capaz de exprimir todo o conteúdo da ciência. Uma língua perfeita. Sem as antinomias, tais como os paradoxos como do mentiroso. Nada mais é que a linguagem de programação dos computadores.

Boole 1849. Inaugura a lógica matemática. Com sua Álgebra. A álgebra booleana.

É verdadeiramente um ovo de Colombo. Onde o zero e o um representam a afirmação e a negação. O que mais tarde se tornou a linguagem de máquina, sistema binário etc. Pois descobriu que as leis que regem a lógica do um e do zero como verdadeiro e falso, respectivamente, são praticamente as mesmas que os regem matematicamente. E é aplicada tanto aos quantificadores de Aristóteles como aos conectivos de CRISIPPO.

FREGE. Cria a lógica predicativa.

Uma lógica que envolve mais que um objeto, e relações tais como de maior ou menor.


ERA CONTEMPORANEA.

  • POST – WITTGENSTEIN.
  • GOEDEL
  • TURING.
POST. A logica de Crisipo estava completa. A completude da lógica proposicional.
Não se podia andar outra. Conclusiva.

WITTGENSTEIN 1921


TAVOLE DI VERITÀ. Tabela da verdade.

GOEDEL ( 1931)
Completude da lógica predicativa e a incompletude da aritmética.
De alguma maneira chega-se ao fim da história da lógica, que não pode andar outra.
De outro modo a aritmética jamais se completará, por mais axiomas que se construam.
TURING 1936

DECIDIBILITÀ. A MAQUINA DE TURING. O computador.

Filosofia, matemática e informática.
Arrivederci.