23 de mai. de 2011

Fábula de Anfion. João Cabral de Melo Neto.



Fábula de Anfion


  1. O deserto.
( Anfion chega ao deserto)

No deserto, entre a
paisagem de seu
vocabulário, Anfion,

ao ar mineral isento
mesmo da alada
vegetação, no deserto

que fogem as nuvens
trazendo no bojo
as gordas estações

Anfion, entre pedras
como frutos esquecidos
que não quiseram

amadurecer, Anfion,
como se preciso círculo
estivesse riscando

na areia, gesto puro
de resíduos, respira
o deserto, Anfion.

* O deserto

(Ali, é um tempo claro
como a fonte
e na fábula.

Ali, nada sobrou da noite
como ervas
entre pedras.

Ali, é uma terra branca
e ávida
como a cal.

Ali, não há como pôr vossa tristeza
como a um livro
na estante).

*
Sua flauta seca

Ao sol do deserto e
no silêncio atingido
como a uma amêndoa,
sua flauta seca:

sem a terra doce
de água e de sono;
sem os grãos do amor
trazidos na brisa,

sua flauta seca:
como alguma pedra
ainda branda, ou lábios
ao vento marinho.
*
O sol do deserto

(O sol do deserto
não intumesce a vida
como a um pão.

O sol do deserto
não choca os velhos
ovos do mistério.

Mesmo os esguios,
discretos trigais
não resistem a

o sol do deserto,
lúcido, que preside
a essa fome vazia)

*
Anfion pensa ter encontrado a esterilidade que procurava.
Sua mudez está assegurada
se a flauta seca:
será de mudo cimento,
não será um búzio

a concha que é o resto
de dia de seu dia:
exato, passará pelo relógio,
como de uma faca o fio
2 O acaso
O encontro com o acaso

No deserto, entre os
esqueletos do antigo
vocabulário, Anfion,

no deserto, cinza
e areia como um
lençol, há dez dias

da última erva
que ainda o tentou
acompanhar, Anfion,

no deserto, mais, no
castiço linho do
meio-dia, Anfion,

agora que lavado
de todo canto,
em silêncio, silêncio

desperto e ativo como
uma lâmina, depara
o acaso, Anfion.


*
o acaso ataca e faz soar a flauta.

Ò acaso, raro
animal, força
de cavalo, cabeça
que ninguém viu;
ó acaso, vespa
oculta nas vagas
dobras da alva
distração; inseto
vencendo o silêncio
como um camelo
sobrevive à sede
ó acaso! O acaso
súbito condensou;
em esfinge, na
cachorra de esfinge
que lhe mordia
a mão escassa;
que lhe roía
o osso antigo
logo florescido
da flauta extinta:
áridas do exercício
puro do nada.

*
Tebas se faz

Diz a mitologia
(arejadas salas, de
nítidos enigmas
povoadas, mariscos
ou simples nozes
cuja noite guardada
à luz e ao ar livre
persiste, sem se dissolver
diz, do aéreo
parto daquele milagre:

Quando a flauta soou
um tempo se desdobrou
do tempo, como uma caixa
de dentro de outra caixa.

  1. Anfion em tebas
Anfion busca em tebas o deserto perdido

Entre tebas, entre
a injusta sintaxe
que fundou, Anfion,

entre Tebas, entre
mãos frutíferas, entre
a copada folhagem

de gestos, no verão
que, único, lhe resta
e cujas rodas

quisera fixar
nas, ainda possíveis,
secas planícies

da alma, Anfion,
ante Tebas, como
a um tecido que

buscasse adivinhar
pelo avesso, procura
o deserto, Anfion.
*






Lamento diante de sua obra.

“Esta cidade, Tebas,
não a quisera assim
de tijolos plantada,

que a terra e a flora
procuram reaver
a sua origem menor:

com já distinguir
onde começa a hera, a argila,
ou a terra acaba?

Desejei longamente
liso muro, e branco,
puro sol em si

como qualquer laranja;
leve laje sonhei
largada no espaço.

Onde a cidade
volante, a nuvem
civil sonhada?
*
Anfion e a flauta.

Uma flauta: como
dominá-la, cavalo
solto, que é louco?

Como antecipar
a árvore de som
de tal semente?

Daquele grão de vento
recebido no açude
a flauta cana ainda?

Uma flauta: como prever
suas modulações,
cavalo solto e louco?

Como traçar suas ondas
antecipadamente, como faz,
no tempo, o mar?

A flauta, eu a joguei
aos peixes surdo-
mudos do mar.

Poema de João Cabral de Melo Neto. A Fábula de Anfion, publicado junto com Psicologia da Composição e a Fábula de Antiode, em “ O Livro Inconsútil”, Barcelona, 1947.

Anfion, de acordo com a mitologia grega, era filho de Júpiter e Antíopa. Dotado de talento para a música, Anfion recebeu uma lira de Apolo. Ao som dessa lira, construiu a muralha de Tebas; as pedras iam-se colocando umas sobre as outras, sem qualquer esforço. João Cabral substituiu a lira por uma flauta rústica e interpretou o mito com liberdade de criação, associando os motivos temáticos “pedra”|”palavra”.

A Fábula de Anfion é um poema narrativo onde o herói procura despojar a poesia de sua afetividade. O poeta persegue a objetividade da palavra escrita. “... ar mineral isento mesmo da alada vegetação” “... entre pedras... frutos esquecidos... gesto puro de resíduos, respira o deserto...”



e não “estados de alma”. “ Ali, não há como pôr vossa tristeza como a um livro na estante”. O sol do deserto não faz crescer o pão, nem faz a vida vaidosa. O sol do deserto não gera mistérios onde não os há. O sol do deserto vê, compreende, ilumina, por fim preside ele próprio a fome. O sol do deserto é o poema pedra, diz aos românticos.

Anfion se depara com esqueletos no deserto, são esqueletos do velho vocabulário, esqueletos de um vocabulário que tentou seguir Anfion pelo deserto, mas Anfion sabe que é inútil fugir, mesmo ativo como uma lâmina, ele se depara com o acaso. O acaso é o instinto, a vida biológica inescapável, ineludível é a velha sintaxe do mundo, posta no poema como o acaso.


Ó acaso, raro...”
O acaso frustrou o projeto de Anfion ( depuração, mineralização dos objetos), por aparecer inexplicavelmente com toda vitalidade biológica.
O acaso é uma força instintiva. Anárquica. O acaso instintivo e anárquico rompe com a aridez da vida ascética ( deserto) perseguida pelo poeta.

A flauta, eu a joguei aos peixes surdo-mudos do mar”

A flauta como casualidade, fluidez descontrolada, é recusada pelo poeta, pois continuará a persecução ao rigor criativo. Só o poeta disciplina as palavras, palavras-coisas, palavra-pedra. Rigor e formalidade.
A busca pelo poema|parede|muro de inexpugnável aridez é frustrada. A flora|sentimento acaba por ocupar o muro|poema|cidade e nele já não se pode divisar onde começa a hera e termina mineralização objetivada.
O Herói lamenta-se diante da obra, recusa o sentimento|flauta, pois este sentimento colhido ainda em semente|cana|bambu enlouquece e se transforma numa poderosa árvore sonora, e por não poder dominá-la atira-a ao mar para os que não falam e não ouvem.

Há uma busca por libertar-se da sintaxe do mundo. Da injustiça mesma, da ordem das coisas, da vida. Sintaxe injusta “Entre Tebas, entre a injusta sintaxe que fundou...”, mas o poeta é lúcido e percebe a impossibilidade de construir com uma sintaxe outra, isenta e depurada e mineralizada. Afinal construímos partindo do “vocábulo esqueleto” que rebrota como a hera e toma a obra.  

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