O astuto e ardiloso
Ulisses flagrado, em sua excitação, por Nausicaa e suas
secretárias, a lavar roupa à beira do riacho, foi levado à cidade,
onde, se tornou narrador, da história que narrava Homero.
Voltar para casa,
queria, não sem antes, complicar-se em no negro mar, e descomplicar
com um truque, um lampejo de sabedoria e contingência. Sua astúcia
e seus ardis foram reverenciados.
Dante não via a coisa
da mesma maneira que Homero. Ou melhor, os mil-e-trezentos “Trecento”
florentino não o viram como em tempos de civilização grega. Dante
era católico. Foi ordenado por Santo Tomás de Aquino, estudando
Aristóteles que era a maior senão única referência com sua Ética.
Isso dito, para me situar, prossigo, a dizer que o inferno de Dante
não deve ser visto tão somente como uma doutrinação, antes uma
visão, uma figura poética. Ulisses também visitara o Hades, na
Odisseia.
Agora Dante o coloca
no inferno. Certo é que não se trata do inferno dos traidores, que
é a profundeza da coisa e por sinal gelada. Ulisses está no
Malebolge, que é o oitavo círculo, onde se encontram os que
abusaram da capacidade intelectual, e ai vivem em chama errante.
Ulisses é o titã do saber, sempre a estimular, o desejo de sempre,
novas aventuras, nos companheiros, já velhos, tardios, tão só com
vontade de voltarem para Ítaca, mas veja como Ulisses é um
vira-latas:
Ó frati – disse –
che per cento milia
perigli siete giunti a
occidente,
a questa tanto piccola
vigilia.
Dei nostri sensi ch´è
del rimanente,
non vogliate negar
l´esperienza
diretro al sol, del
mondo senza gente,
considerate la vostra
semenza:
fatti non foste a viver
come bruti,
ma per seguir virtute e
conoscenza. (XXVI, 112-120)
( ó irmãos – disse
– que por cem mil\ perigos estão juntos nesse ocidente\, nessa
rápida vigília\\ dos sentidos que nos sobra\ vocês não vão
impedir outra experiência\ no caminho do sol, mundo de ninguém\\
considerem que semente sois,\ não foram feitos para viver como
brutos,\ mas para perseguir a virtude e o conhecimento. )
Ulisses precisa de
companheiros, e com essa astúcia os consegue inflamar. E saem a
cantar:
volta nostra poppa nel
mattino
dei remi facemmo ala al
folle volo.
(voltaram a popa para o
oriente, e os remos foram asas do louco voo.)
O que vem a seguir no poema é
maravilhoso, mas o terror é também magnificado assim:
che de la nova terra un
turbo nacque
e percosse del legno
il primo canto.
Tre volte il fe´girar
com tutte l´acque,
a la quarta levar la
poppa in suso
a prora irre in giù
come altrui piacque,
in fin ch´il mar fu
sopra noi rinchiuso
( O turbilhão nasceu
na terra nova\ o barco(o lenho) soou o primeiro canto a quina\ e a
água toda o fez girar três vezes\\ na quarta a popa levantou\ e a
proa mergulhou com outro, outrem, alguém quis,\ e o mar fechou-se
sobre nós)
Dante também dá a
palavra a Ulisses, aliás a última palavra, a palavra que põe fim
às fraudes e astúcias do grego. É assim que Dante, na sombra das
doutrinas medievais, faz sumir do mapa os tais ardis, são as duras
penas. Mas a culpa é do grego, que prestes a descansar nos braços
de Penélope, se deixa enredar pelo risco de conhecer o escuro das
profundezas do oceano.
Já em Joyce, Ulisses é
um despistado judeu, um saco de enganos, talvez um chifrudo, talvez
pois a única certeza que teve, foi de sentir algo como restos de
sêmen entre as nádegas de sua Molly, que em vez dos braços de
Afrodite, tem por alcova um prostíbulo fedorento de Dublin, onde
toda a astucia e ardis são empregados para vender um retângulo
publicitário de um canto de jornal para um chaveiro. E pela manhã
ler um jornal antigo enquanto defeca, rapidamente, para não ter
hemorroidas, esta é uma de suas sabedorias.
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