5 de dez. de 2014

A Mulher e o Mar.

A mulher e o mar.
Sempre olho pelo retrovisor e vejo essa mulher, sempre num papel secundário, quase figuração. Assim que esse texto é uma mudança de spin, aonde explico a história de uma mulher valente, com caráter, triste, porque nada é mais triste que a gestão da miséria. “Que tem pra comer mãe?” Suas crianças voltando para casa e ela batendo roupa, com as mãos se dissolvendo de tanto ficar mexendo na água. Um suspiro, um espirro da alma: “Pão com miolo e ovo frito!” Em algumas versões acrescentava “a moda da casa!” . Toda a impotência condensada num renego curto e sonoro. Que mais queriam que tivesse pão, ovo, nem que fosse pão-duro, e leite em pó que a igreja andava distribuindo. Havia enviuvado prematuramente e tudo mudara. Ainda mais. Não por causa da ditadura, porque esta não lhe afetava em nada. Havia decidido manter intacto um velho sonho de juventude, para sobreviver. Um anseio de liberdade que nem a ditadura nem a fome não podiam borrar. Ela queria ver o mar. Desde sempre. Desde que era uma jovem que havia se cansado de rio, porque a cada dia lá estava para carregar uns quantos baldes de água. Um na cabeça e outros a cada mão. Uma cena de dura cotidianidade que se repetia. O caminho de volta era sempre mais longo, mas cantavam e se explicavam alguma confidência. As vezes suas amigas riam de sua teimosia, mas ela não renunciava àquele azul infinito. Doía que a vida fosse tão ingrata, que não lhe concedesse o desejo de abraçar com o olhar aquela imensidão. Os anos passam, e já não era tão jovem. Tivera três filhos. Perdido o marido. Havia sofrido muito. Mas manteve-se fiel àquela rebeldia com gosto de sal. Era a sua pequena vingança contra quem lhe havia escrito um destino tão penoso e desagradecido. Um dia, um dos rapazes, teve que fazer as malas porque o trabalho o levava longe daquele lugar esquecido. Uma mudança de roteiro inesperada. Com a desculpa de ir ver o filho, por fim, veria o mar. “Cheguei a pensar que morreria sem te ver”, ouviram-na dizer. E o viu. Não sei que impressão lhe causou o mar, porque não retornou. Morreu, subitamente, numa vila de pescadores que não havia ouvido falar o nome antes. Uma vitória pírrica sobre a época miserável que lhe coube viver.     

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