8 de nov. de 2012

NEGRINHA - texto integral - Monteiro Lobato.



NEGRINHA

Monteiro Lobato

Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta?? Não. Fusca, mulatinha escura, de cabelos
ruços e olhos assustados.
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos de vida, vivera-os pelos cantos escuros
da cozinha, sobre farrapos de esteira e panos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava
de crianças.
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada pelos padres, com lugar
certo na igreja e camarote de luxo no céu. Entaladas as banhas no trono uma cadeira de balanço na sala
de jantar, — ali bordava, recebendo as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma
virtuosa senhora, em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”,
dizia o padre.
Ótima, a D. Inácia.
Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos,
não a calejara o choro da sua carne, e por isso não suportava o choro da carne escrava. Assim, mal vagia,
longe na cozinha, a triste criança, gritava logo, nervosa:
Quem é a peste que está chorando aí?
Quem havia de ser? A pia de lavar pratos?? O pilão?? A mãe da criminosa abafava a boquinha
da filha e corria com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões desesperados:
Cale a boca, peste do diabo!!
No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que
entanguem pés e mãos e fazem-nos doer...
Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com olhos eternamente assustados. Órfã aos
quatro anos, ficou por ali, feita gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a idéia dos grandes.
Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava
ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas não andava, quase. Com pretexto de que, às
soltas, reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num
desvão de porta.
Sentadinha aí, e bico!! Hem??
Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas. — Braços cruzados, já, diabo!!
Cruzava os bracinhos, a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. O relógio batia
uma, duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir
a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se, então, feliz um momento.
Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim.
Que idéia faria de si essa criança, que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo,
coruja, barata descascada, bruxa, pata choca, pinto gorado, mosca morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha,
coisa ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve
em que foi — bubônica. A epidemia andava à berra, como novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada
assim — por sinal, achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que
não teria um gostinho só na vida, nem esse de personalizar a peste...
O corpo de Negrinha era tatuado de sinais roxos, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa,
todos os dias, houvesse ou não motivo. A sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões
a mesma atração que o ímã exerce para o aço.
Mão em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos
em sua cabeça, de passagem. Coisa de rir, e ver a careta...
A excelente D. Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora
de escravos e daquelas ferozes, amigas de ouvir contar o bolo e estalar o bacalhau.

Nunca se afizera ao regímen novo — essa indecência de negro igual a branco; e qualquer coisinha, a polícia!!
Qualquer coisinha”; uma mucama assada ao forno, porque se engraçou dela o senhor; uma novena de
relho, porque disse: — “Como é ruim, a sinhá!”....
O 13 de maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava,
pois, Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Simples derivativo.
Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...
Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade: cocres, mão fechada
com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a
concha (bom! bom! bom! gostoso de dar!) e o a duas mãos, o sacudido. A gama dos beliscões: do miudinho,
com a ponta da unha, a torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda
de tapas, cascudos, pontapés e safanões à uma — divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante:
para doer fino, nada melhor.
Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um castigo maior para
desobstruir o fígado e matar saudades do bom tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente.
Não sabem?? Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha — coisa de rir — um pedacinho
de carne que ela guardava para o fim. A criança não sofreou a revolta e atirou-lhe um dos nomes
com que a mimoseavam, todos os dias.
— “Peste”?? Espere aí!! Você vai ver quem é peste. E foi contar o caso à patroa.
D. Inácia estava azeda, e necessitadíssima de derivativo. Sua cara iluminou-se.
Eu curo ela! disse, desentalando as banhas do trono e indo para a cozinha, qual uma perua
choca, a rufar as saias. — Traga um ovo!!
Veio o ovo. D. Inácia mesma pô-lo na chaleira de água a ferver e, de mãos à cinta, gozando-se
na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera
criança que, encolhidinha a um canto, trêmula, olhar esgazeado, aguardava alguma coisa de nunca visto.
Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora exclamou:
Venha cá!! Negrinha aproximou-se. — Abra a boca!!
Negrinha abriu a boca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa então, com uma colher, tirou
da água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, prática que era
D. Inácia nesse castigo, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente,
pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:
Diga nomes feios aos mais velhos outra vez!! Ouviu, peste??
E voltou contente da vida para o trono, a virtuosa dama, a fim de receber o vigário que chegava.
Ah! Monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha de
Cesária; mas que trabalheira me dá!
A caridade é a mais bela das virtudes! exclamou o padre.
Sim, mas cansa...
Quem dá aos pobres, empresta a Deus! A virtuosa senhora suspirou piedosamente: — Inda
é o que vale...
Certo dezembro vieram passar as férias com “Santa” Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas,
lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas.
Negrinha, do seu canto, na sala do trono, viu-as irromperem pela casa adentro como dois anjos
do céu, alegres, pulando e rindo numa vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente
para a senhora, certa de vê-la armada para desferir sobre os anjos invasores o raio dum castigo
tremendo.
Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era um crime brincar?? Estaria tudo
mudado e findo o seu inferno — e aberto o céu??!
No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria
dos anjos.
3
Mas logo a dura lição da desigualdade humana chicoteou sua alma. Beliscão no umbigo e nos
ouvidos o som cruel de todos os dias:
Já, para o seu lugar, pestinha!! Não se enxerga?? Com lágrimas dolorosas, menos de dor
física que de angústia moral — sofrimento novo que se vinha somar aos já conhecidos, a triste criança
encorujou-se no cantinho de sempre.
Quem é, titia? perguntou uma das meninas, curiosa. — Quem há de ser?! disse a tia num
suspiro de vítima. — Uma caridade minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus.. Uma
órfã... Mas, brinquem, filhinhas!! A casa é grande. Brinquem por aí a fora!!
Brinquem!!” Brincar! Como seria bom brincar! refletiu com suas lágrimas, no canto, a dolorosa
martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco!
Chegaram as malas; e logo:
Meus brinquedos!! reclamaram as duas meninas. Uma criada abriu-as e tirou-os fora.
Que maravilha! Um cavalo de rodas!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa
assim, tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que
fala “papá”... que dorme...
Era de êxtase, o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse
brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial.
- É feita??... perguntou extasiada.
E, dominada pelo enlevo, um momento em que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a
arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão, o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criaturinha
de louça. Olhou-a com assombro e encanto, sem jeito sem ânimo de pegá-la.
As meninas admiraram-se daquilo. — Nunca viu boneca??
Boneca?? repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca?? Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.
Como é boba! disseram. — E você, como se chama?
Negrinha.
As meninas, novamente, torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha perdurava,
disseram, estendendo-lhe a boneca:
Pegue!!
Negrinha olhou para os lados, ressabiada, com o coração aos pinotes. Que aventura, santo
Deus! Seria possível?? Depois, pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor
Menino, sorria para ela e para as meninas, com relances de olhos assustados para a porta. Fora de si,
literalmente... Era como se penetrara o céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe viesse
adormecer ao colo. Tamanho foi o enlevo que não viu chegar a patroa, já de volta. D. Inácia entreparou,
feroz, e esteve uns instantes assim, imóvel, presenciando a cena.
Mas era tal a alegria das sobrinhas ante a surpresa estática de Negrinha, e tão grande a força
irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez na vida
soube ser mulher. Apiedou-se.
Ao percebê-la na sala, Negrinha tremera, passando-lhe num relance pela cabeça a imagem do
ovo quente, e hipóteses de castigos piores ainda. E incoercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos
olhos.
Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo: estas palavras,
as primeiras que ouviu, doces, na vida:
Vão todas brincar no jardim!! e vá você também!! mas veja lá!! Hem??
Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu nela a fera
antiga. Compreendeu e sorriu-se.
Se a gratidão sorriu na vida, alguma vez, foi naquela surrada carinha...
Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma — na princesinha e na mendiga. E
para ambas é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o
momento da boneca — preparatório, e momento dos filhos, — definitivo. Depois disso está extinta a
mulher.
Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha alma.
Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que ela trazia em si, e que desabrochava, afinal,
como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ser humano. Cessara de ser coisa e de
ora avante lhe seria impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!...
Assim foi, e essa consciência a matou.
Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa reentrou no ramerrão
habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada.
D. Inácia, pensativa, já a não atenazava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de coração,
amenizava-lhe a vida. Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita.
Mal comia e perdera a expressão de susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos,
cismarentos.
Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro de seu doloroso inferno,
envenenara-a. Brincara ao sol, no jardim. Brincara!...
Acalentara dias seguidos, a linda boneca loura, tão boa, tão quieta, a dizer papá e a cerrar os
olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação. Desabrochara-se de alma.
A repentina retirada de tudo isso fora forte demais para a débil resistência de uma alma, com
um mês de vida apenas. Enfraqueceu, definhou, como roída de invisível doença consuntora. E uma
febre veio e a levou.
Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Ninguém, entretanto,
morreu jamais com maior beleza. O delírio rodeou-se de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de
anjos... E bonecas e anjos rodamoinhavam em torno dela, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada
por aquelas mãozinhas de louça, abraçada, rodopiada.
Veio a tontura, e uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num
disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e o cuco pela última vez lhe apareceu, de boca aberta.
Mas, imóvel, sem rufar as asas.
Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou... E tudo se esvaiu em trevas.
Depois, vala comum. A terra papou com indiferença sua carnezinha de terceira — uma miséria,
quinze quilos mal pesados...
E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das
meninas ricas:
Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca??
Outra de saudade, no nó dos dedos de D. Inácia: — Como era boa para um cocre!...
Monteiro Lobato – 1927




Negrinha, tese para uma analise critica.

O texto é árido, por monotônico, e monótono, por desértico, a tal ponto e modo que cansa em suas quatro páginas. Causa o primeiro estranhamento ao deixar a impressão, desde as primeiras linhas, que a personagem principal não ficava de pé. Como se tratasse de um animal, um réptil, tombado sobre algo podre, sendo ele mesmo podre. Estranha-se o fato de o conto se ambientar em casa de senhora rica,  o que proíbe a verossimilhança intratextual requerida; qui o texto fura, faz água, porque uma casa rica cheia de trapos imundos onde se pousa o invertebrado, ser sem alma, não é verossimilhante! principalmente o trapo imundo!
Negrinha, como não ficava sobre as pernas, desde os começos, o movimento, ou tal imaginação está interdita, está interdito também perceber, no texto, se esse ser\bicho se locomove. Como se traslada?? por mágica?? magia??
 - ah a pontapés!
Movimenta-se desde a escura cozinha até o canto da sala. Sem alma e sem movimentos próprios, ainda que o narrador tenha permitido ao cuco, ao menos o movimento, de hora em hora. Assim Negrinha não apresenta qualquer ato que a assemelhe aos  animais, domésticos ou selvagens, ausente a rebeldia, aparente ou interior, pois sua presença seria sinal de vida, mas nem sequer  há interior.
Sendo personagem principal, fala muito pouco, entretanto fala muitíssimo menos que personagens fugazes como as visitas de novembro, mas estas nas poucas linhas que as descrevem, angelicais, nos permitem saber de suas sensibilidades. A própria mãe esquece do afago, do carinho e castiga. Negrinha não é nem um verme.
Me parece leviano dizer: a esperança transmitida é a de que: a questão social estaria resolvida com o desaparecimento dos negros, definhando os seus filhos.
A personagem sem alma e sem movimentos, que se descobre gente e se anima ao se deparar com o inanimado, uma boneca. Mas, estranhamente a descoberta da própria alma não transporta a personagem a compartilhar o mundo dos vivos, ainda que maus estes e mal o mundo, porque a única opção permitida é a morte, incrível, lenta, por definhamento. Não há sequer a grandeza de um enforcamento, coisa de pobres, ou envenenamento, suicídio de médios etc.
Novamente, pergunto se seria opção de Negrinha, incapacitada de abrigar a alma, sabe-se lá o porquê, preferir a morte lenta.
É incrível que Negrinha – com seus sete anos de idade – não tivesse alma até se deparar com a boneca. Que estranha e rara fenomenologia, já que estranhamente, dentro do texto, a simples visão do cuco fazia sua alegria, entretanto quando animada pelo toque ao inanimado, o que seria motivo suficiente para  enfrentar a empreitada da vida, porque a vida vale a pena, apesar...
É o que deveria ser uma mensagem positiva frente as maldades da escravidão que acabara, e o racismo nascente, nascendo disfarçado, apesar do sofrimento, a vida vale a pena. Ou, estou louco e deveria dizer: dado os maus-tratos do mundo me deixo morrer!
 Digamos que  o conto Negrinha não oferece nada mais que isso: não há saída ao racismo senão que pela morte, vide Negrinha.
Voltemos a literatura, a economia, ausência de descrição de aspectos físicos, alem da pretura, inexistência de aspectos psicológicos, deixa no ar mais esta pergunta: Negrinha é um objeto mínimo ?? e uma resposta: Sim, o quanto basta a se poder lançar toda a sorte de impropérios, porque não ficou achincalhe encalhado em dicionário a espera de vestir alguém, todos foram usados. Não houve maldades que se possa fazer que não foram descritas, economias mesmo somente com os quinze quilos de carne preta, fusca, ruça ou...

Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta?? Não. Fusca, mulatinha escura, de cabelos
ruços e olhos assustados”
Aqui se pode usufruir de um estilo, truque narrativo, que pretende mostrar a vaguidade em que andava o narrador, e assim deixar transparecer, que a narrativa flui naturalmente, como se não fosse premeditada, como se o narrador não tivesse claro, objeto e objetivo, no momento de tecer, e com espanto se desse conta da necessidade de pintar o quadro.
 J. L. Borges dizia  prestar muita atenção na abertura das obras, narrativas, e menciona aberturas espetaculares que aguçam o interesse pelo que virá, como Em busca do tempo perdido ou Don Quixote etc. Não é o caso da abertura de Negrinha de Monteiro Lobato. Afinal é um texto de 1927 e rica literatura nacional já havia passado por debaixo da ponte que liga o 19 e o 20, e  é bastante infantil a abertura, para ficar no âmbito literário.
Mas, afinal, quem está a narrar?? O narrador, mas o narrador é D. Inácia?? Numa frase – a primeira, o cabeçalho – descritiva encontramos: Negrinha, Preta, Fusca, Mulatinha escura.
Dos cabelos: ruços.
Dos olhos: Assustados.

  • Quem é a peste que está chorando aí? Quem pergunta é dona Inácia.


Quem havia de ser? A pia de lavar pratos?? O pilão?? Aqui o narrador pensa por D. Inácia. 
Dá ares que tenta a técnica do fluxo de consciência, que já havia sido praticada por Virginia Wolf entre outros e viria a alcançar seu apogeu em Ulisses de James Joyce, entretanto se houve tal tentativa em Negrinha, o efeito não ocorreu. É por isso que me apego a questão, senão vejamos. 
A mãe da criminosa abafava a boquinha... aqui o narrador narra, mas quem é o narrador??
...da filha e corria com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões desesperados:
  • Cale a boca, peste do diabo!! aqui fala a mãe de neguinha.
Novamente cabe a pergunta a respeito do narrador, porque o texto deixa a ideia de um único pensamento, pois o pensamento do narrador e o de Dona Inácia é uniforme, normatizado, e aplicam os mesmos marcadores da diferença. Pois senão:
Aqui D. Inácia:
“ — Quem é a peste que está chorando aí?”
e aqui o narrador:
Quem havia de ser? A pia de lavar pratos?? O pilão?? A mãe da criminosa...”
ela pergunta pela peste e ele deixa claro que a pergunta é tonta, sendo claro que se tratava da “criminosa”.

Mais adiante aquela impressão da ausência de movimentos que se tem, no principio do conto, se confirma: “ levada a pontapés...” “...Aprendeu a andar, mas não andava, quase...”


Enfim
...Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Ninguém, entretanto,
morreu jamais com maior beleza. O delírio rodeou-se de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de
anjos...
na sua parca existência 'almada' foi capaz de desenvolver a ideologia dominante, uma tragédia. A morte ...com maior beleza. O delírio rodeou-se de bonecas, todas louras, de olhos azuis... a coisa diz-se em si e por meio de si.

Aqui dou voz as vozes estranhas do narrador: Num determinado momento D. Inácia diz: Brinquem!!
então entra o narrador, primeiro falando por Negrinha : Como seria bom brincar! refletiu com suas lágrimas, no canto,... para depois se instaurar: … a dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco! Até mesmo o Manual de Redação da Folha consegue identificar essa parcialidade narrativa, veja bem, que não é proibido seu uso num conto, porque também não é isso que discuto.

Sentiu-se elevada à altura de ser humano. Cessara de ser coisa e de
ora avante lhe seria impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!...
Assim foi, e essa consciência a matou. É nisso que insisto, “a consciência de não ser coisa, a matou”. O narrador não explica o porquê sua carnezinha de terceira recheada com a 'vibração' de não coisa não pode suportar a vida 'sentida'. Não carece dizer que carne é de terceira.

Nisso reside a monotonicidade de Negrinha, como um deserto, em qualquer parte é o mesmo, constituído do mesmo. Negrinha dá nome ao conto. E tudo dentro do conto diz o mesmo: Negrinha. Toda a 'rica' sinonímia da época está presente, ora à boca de Inácia ora na pena do narrador e por vezes em ambos corações a um só tempo, porque não se distinguem ainda que se revezem. As achincalhações por muitas, por vezes aparecem amontoadas na mesma frase, misturando-se, qualificando-se entre si umas as outras. As maldades da boa mulher se repetem, mesmo a pior delas, volta aparecer como ruminação.
O conto Negrinha não tem qualidade literária. Tem contexto histórico, mas não se contextualiza, é pontual, para quem não conhece a história do Brasil, nele pouco saberá da escravidão, exceto sua violência, e a impossibilidade dos negros como Negrinha de suportarem a liberdade. É essa a noticia que nos dá o conto Negrinha. Negrinha não tem alma, e quando a ganha de uma boneca de porcelana, não suporta o peso, a carga da civilização e definha.
É uma proposta, e pode existir e existe ao lado de tantas outras. Entretanto creio que deva ser uma opção de cada indivíduo, não creio que deva ser 'curricular'. Se editores quiserem imprimi-la, que o façam, somos livres, a livre iniciativa já diz outro tanto, temos o direito de nos exprimir, porém a União não deve 'bancar' novas edições de coletâneas de tão pouca qualidade literária, para não dizer nenhuma.

8 comentários:

f disse...

boa...

cidoGalvao disse...

grato!

welli27 disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
welli27 disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
welli27 disse...

Caro Cido Galvão,
Antes de mais nada, peço que me desculpe pela extensão do meu comentário (vou responder em três partes, devido à limitação de caracteres) e de eventuais confusões, falhas ou equívocos decorrentes da pressa.
Encontrei o seu blog ao pesquisar para escrever um material para as minhas aulas acerca do conto Negrinha, de Lobato, indicado como leitura obrigatória para o vestibular da Unicamp. De tudo quanto encontrei em minhas buscas, o seu texto está entre os mais interessantes. Pareceu-me um esforço honesto de avaliar o conto, bem como de analisar a adequação da indicação do mesmo para leituras atuais e, por fim, refletir acerca da adequação de que a publicação de tal texto seja custeada com dinheiro público. Concordei com alguns de seus apontamentos
e, sobretudo, com seu juízo final: a obra não deve ser custeada com dinheiro público.
Nessa questão, em particular, eu apenas acrescentaria que endosso as posições de Antônio Gomes da Costa Neto e de Nilma Lino Gomes (pedagoga, com mestrado em Educação (UFMG), doutorado em Antropologia Social (USP) e pós-doutora pela Universidade de Coimbra), uma das grandes pesquisadoras, no Brasil, sobre a discussão racial na educação.
O 1º foi autor da denúncia da inadequação do fato da obra “Caçadas de Pedrinho” integrar o PNBE (ou seja, obras literárias compradas com dinheiro público), devido ao fato da obra conter estereótipos raciais, o que fere a legislação específica do PNBE e do MEC. Tal denúncia, feita em 2010, deflagrou a polêmica acerca do racismo em Lobato;
A 2ª, hoje é ministra Ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Brasil. No entanto, à época era integrante da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, e foi uma das responsáveis pelos dois pareceres que confirmam a existência de estereótipos raciais na referida obra.

Em 2012, o IARA (Instituto de Advocacia Racial e Ambiental) protocolou representação na Controladoria-Geral da União (CGU) pedindo que as duas obras (“Caçadas de Pedrinho” e “Negrinha”) deixem de integrar o Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), que distribui livros a bibliotecas escolares do país.

Welington Fernandes (prof. De Literatura)

welli27 disse...

continuação:
Portanto, por considerar muito importante o tema de sua postagem e também por concordar com algumas de suas ideias, permito-me fazer algumas considerações/sugestões para que você reveja (ou, eventualmente, corrija) alguns pontos:

Negrinha não pesa 15 quilos, pesa 30 quilos
O conto não tem intenção infantil. Integra uma obra destinada ao público adulto. Também não considero correta a interpretação de que a abertura possa ser considerada ‘infantil’. A propósito, não considero que ‘infantil’, em termos literários, seja um rótulo adequado para se depreciar um texto. Afinal, Lobato (em vários momentos) acerta mais em introduções (e em textos integrais) destinados a crianças do que em alguns textos destinados a adultos.
Além disso, o conto não foi publicado em 1927, mas sim em 1920. Portanto, a comparação com a Virgínia Wolf é um tanto inadequada, pois o fluxo de consciência é usado por Wirgínia Wolf nos romances Mrs. Dalloway (1925), Ao Farol (1927)
No mais, vale a pena considerar alguns detalhes acerca do ‘fluxo de consciência’:
Conforme a pesquisadora Fernanda Cardoso Nunes:
Sabemos que o conceito de ficção do fluxo da consciência surgiu no início do século XX. Podemos defini-lo, em linhas gerais, como sendo o tipo de ficção onde a atenção principal é voltada para a exploração dos níveis pré-verbais da consciência objetivando apresentar conteúdo inarticulado e, portanto, revelar o estado psíquico das personagens.
In: http://www.telunb.com.br/mulhereliteratura/anais/wp-content/uploads/2012/01/fernanda_cardoso.pdf
Ou, numa perspectiva mais pedagógica, podemos lembrar um curioso guia de produção textual (Manual de Redação), disponível no site da PUC-RS:
Escrever em / um fluxo de consciência é como instalar uma câmera na cabeça da personagem, retratando fielmente sua imaginação, seus pensamentos. Como o pensamento, a consciência não é ordenada, o texto-fluxo-de-consciência também não o é. Presente e passado, realidade e desejos, anseios e reminiscências, falas e ações se misturam na narrativa num jorro desarticulado, descontínuo, numa sintaxe caótica, apresentando as reações íntimas da personagem fluindo diretamente da consciência, livres e espontâneas.
In: http://www.pucrs.br/gpt/fluxo.php

Welington Fernandes (prof. De Literatura)

welli27 disse...

continuação:
Essas e algumas outras fontes que consultei mencionam a importância de certa ‘desordem’ nas informações, representada literariamente a partir de transgressões sintáticas/gramaticais; tal ‘desordem’ seria indicativa de certo estado mental pré-verbal. Ora, tal ‘caos’ não aparece no texto de Lobato. Penso que a intenção dele tenha sido de outra ordem.
Acho que o que o Lobato faz se parece um pouco com o discurso indireto livre (usado por Graciliano Ramos, em Vidas Secas, 1938).
No entanto, a meu ver parece muito mais com mobilidade do narrador, uma mobilidade associada à onisciência. Capaz, portanto, de descrever os pensamentos dos personagens Presente em textos como os contos-crônicas de Brás, Bexiga e Barra-Funda, (1928?), de Antonio de Alcantara Machado. No caso desse autor, percebe-se a clara influência do cinema (movimento de câmera)
Em relação a esses dois casos, se percebe que Lobato estaria antecipando as técnicas.
De qualquer maneira, também acho que seria possível aproximar tal recurso narrativo do modo como Manuel Antonio de Almeida constrói o narrador em MSMilícias – sobretudo, no trecho em que o narrador descreve o pensamento do personagem barbeiro:
“Eis aqui pouco mais ou menos o fio dos seus raciocínios. Pelo ofício do pai... (pensava ele) ganha-se, é verdade, dinheiro quando se tem jeito, porém sempre se há de dizer: - ora, é um meirinho!... Nada... por este lado não... Pelo meu ofício... verdade é que eu arranjei-me (há neste arranjei-me uma história que havemos de contar), porém não o quero fazer escravo dos quatro vinténs dos fregueses... Seria talvez bom mandá-lo ao estudo... porém para que diabo serve o estudo? Verdade é que ele parece ter boa memória, e eu podia mais para diante mandá-lo a Coimbra... Sim, é verdade... eu tenho aquelas patacas; estou já velho, não tenho filhos nem outros parentes... mas também que diabo se fará ele em Coimbra? licenciado não; é mau ofício; letrado? era bom... sim, letrado... mas não; não, tenho zanga de quem me lida com papéis e demandas... Clérigo?... um senhor clérigo é muito bom... é uma coisa muito séria... ganha-se muito... pode vir um dia a ser cura. Está dito, há de ser clérigo...”
Cap. Despedidas às travessuras, MSMilícias (1852), Manuel Antonio de Almeida.

no mais, é isso,
Welingon Fernandes (prof. de Literatura, Campinas - SP)

cidoGalvao disse...

Wellington, estou a ler seus comentários, com a mesma dedicação que você depositou nos teus, quando sedimentar algo bacana postarei. Grato