18 de nov. de 2011

Quando a música começa.

Trilha sonora de uma vida que não é a minha.


Tengo Miedo acabou sendo poeta, mas de igual maneira poderia haver triunfado como pianista. Desde jovem o solfejo o atraia tanto quanto as redondilhas. Publicou no jornal A Cidade no caderno de Resenhas de Concertos com critério e sensibilidade.
Uns quantos de seus compositores preferidos ( Handel, Zequinha de Abreu, Couperin, Villa-Lobos, Mozart e Pixinguinha) e instrumentos como a arpa, o alaúde ou a requinta aparecem nos seus poemas – em títulos como “Soireé” na Praça XV ou Serenata no Coreto - clara alusão à praça 7 de Setembro, Serenata de Câmara - onde há uma concentração quase barroca de metáforas musicais. Sem dúvida, a mais inspirada, a joia, a que equipara a morte ao silêncio : “ quando a música começa”.
Me despedi de seu irmão mais moço, Deoclécio, com o silêncio de chumbo que se seguiu ao Tico Tico no Fubá. Teria também me agradado se tocassem Trenzinho Caipira durante o funeral ou alguma balada de Edith Piaff ou Ray Charles ainda Trio los Panchos, que foram as vozes entre tantas de alguns dos chansonniers que amenizaram os anos centrais de sua vida no exílio, primeiro em Santa Cruz de la Sierra depois La Paz, por fim Barrinha mas antes Jardinópolis. Podia ser alguma melodia, alguma zabumba e um sininho que o fizeram alguma vez dançar com Raimunda, que já o espera a tempos.
Faz uma semana ou menos, recebi um telefonema de Deoclécio. Ele me dizia que lendo as minhas postagens na rede, deduziu que a música não era minha paixão, tara, e que havia uma lacuna no meu passado musical, justamente, por não haver sido dono de uma qualquer discoteca. Consenti. Então me ofereceu a coleção de discos, que Tengo Miedo foi acumulando ao longo dos anos e que não poderia levá-la para seu apartamento, onde sua mulher disse que não cabia, pois a decoração era prenhe de um outro conceito, mais moderno. Novo conceito. Pardelhas! Disse e aceitei, também pela honra de ele haver pensado em mim – inda pareceu inadequado recusar - e curiosidade, nem tanto para meter a agulha, de meu velho toca disco Gradient sobre o surco espiralado do bolachão.
Ainda pensava aonde guardar tamanho tesouro, quando ouvi que batiam palmas, era Deo com centenas de long plays amarrados entre tiras de pano, outras centenas na mala de couro, cheia, de não poder fechar o zíper completamente. Pensei em passar alguns para CD, em montar o toca discos, encher o pen drive...
Resta mesmo é a curiosidade de descobrir que música, Tengo Miedo, ouvia para acompanhá-lo nas horas de leitura, por exemplo; quando se trancava no escritório a pensar em redondilhas, em Raimunda. Agora tenho em casa a trilha sonora de uma vida, que não é a minha. Clássica, ópera, bastante jazz, crooners como Sinatra e Nat King Cole. Ray Charles todos. Trio Los Panchos, Índios Tabajaras coisas do exílio paraguaio. A “chanson” francesa representada por Edith Piaf e uma pequena joia, um álbum duplo de Rina Ketty, J´attendrai que por certo Tengo Miedo ouvia enquanto lia pela milionésima vez os versos de Fernando Pessoa: A Tabacaria.   

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