Trilha sonora de uma vida que não é a minha.
Tengo Miedo acabou
sendo poeta, mas de igual maneira poderia haver triunfado como
pianista. Desde jovem o solfejo o atraia tanto quanto as redondilhas.
Publicou no jornal A Cidade no caderno de Resenhas de Concertos com
critério e sensibilidade.
Uns quantos de seus
compositores preferidos ( Handel, Zequinha de Abreu, Couperin,
Villa-Lobos, Mozart e Pixinguinha) e instrumentos como a arpa, o
alaúde ou a requinta aparecem nos seus poemas – em títulos como
“Soireé” na Praça XV ou Serenata no Coreto - clara alusão à
praça 7 de Setembro, Serenata de Câmara - onde há uma
concentração quase barroca de metáforas musicais. Sem dúvida, a
mais inspirada, a joia, a que equipara a morte ao silêncio : “
quando a música começa”.
Me despedi de seu
irmão mais moço, Deoclécio, com o silêncio de chumbo que se
seguiu ao Tico Tico no Fubá. Teria também me agradado se tocassem
Trenzinho Caipira durante o funeral ou alguma balada de Edith Piaff
ou Ray Charles ainda Trio los Panchos, que foram as vozes entre
tantas de alguns dos chansonniers que amenizaram os anos centrais de
sua vida no exílio, primeiro em Santa Cruz de la Sierra depois La
Paz, por fim Barrinha mas antes Jardinópolis. Podia ser alguma
melodia, alguma zabumba e um sininho que o fizeram alguma vez dançar
com Raimunda, que já o espera a tempos.
Faz uma semana ou
menos, recebi um telefonema de Deoclécio. Ele me dizia que lendo as
minhas postagens na rede, deduziu que a música não era minha
paixão, tara, e que havia uma lacuna no meu passado musical,
justamente, por não haver sido dono de uma qualquer discoteca.
Consenti. Então me ofereceu a coleção de discos, que Tengo Miedo
foi acumulando ao longo dos anos e que não poderia levá-la para
seu apartamento, onde sua mulher disse que não cabia, pois a
decoração era prenhe de um outro conceito, mais moderno. Novo
conceito. Pardelhas! Disse e aceitei, também pela honra de ele
haver pensado em mim – inda pareceu inadequado recusar - e
curiosidade, nem tanto para meter a agulha, de meu velho toca
disco Gradient sobre o surco espiralado do bolachão.
Ainda pensava aonde
guardar tamanho tesouro, quando ouvi que batiam palmas, era Deo com
centenas de long plays amarrados entre tiras de pano, outras
centenas na mala de couro, cheia, de não poder fechar o zíper
completamente. Pensei em passar alguns para CD, em montar o toca
discos, encher o pen drive...
Resta mesmo é a
curiosidade de descobrir que música, Tengo Miedo, ouvia para
acompanhá-lo nas horas de leitura, por exemplo; quando se trancava
no escritório a pensar em redondilhas, em Raimunda. Agora tenho em
casa a trilha sonora de uma vida, que não é a minha. Clássica,
ópera, bastante jazz, crooners como Sinatra e Nat King Cole. Ray
Charles todos. Trio Los Panchos, Índios Tabajaras coisas do exílio
paraguaio. A “chanson” francesa representada por Edith Piaf e
uma pequena joia, um álbum duplo de Rina Ketty, J´attendrai que
por certo Tengo Miedo ouvia enquanto lia pela milionésima vez os
versos de Fernando Pessoa: A Tabacaria.
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