29 de ago. de 2014

Almas Penadas.

Almas penadas.

Há algum tempo, dois amigos depois de beberem algumas doses, resolveram se divertir no cemitério de Bonfim. Os moradores do conjunto habitacional inaugurado fazia pouco, ao lado do cemitério, guardavam ainda muito receio e respeito pelos mortos. Se assustavam com o fogo fátuo. Bêbados os dois, se cobriam com lençóis brancos e corriam entre os jazigos. Muitos se assustavam, mas o Cabo, que não tinha medo de assombrações os fez dormir no chilindró um dia e uma noite. Não sei bem porquê, mas esta recordação me trouxe outra, a de Ângela e Dalvino. Ela alta e forte, filha de italianos. Puro caráter e quadril. Dos seus dedos delicados saíam autênticas filigranas de crochê, como correspondia às senhoras, no entanto contam os que a conheciam da juventude, que sabia usar o punho fechado com maestria. Dalvino, era pequeno e calado. Um homem tranquilo que trabalhava no Departamento de Estradas e Rodagens, e seu setor alcançava Pirassununga, então uma distância, que o fazia partir na segunda-feira e voltar na sexta-feira com o por do sol. Era um mundo sem carros e poucos ônibus interurbanos. Ela se consumia. Não confessaria por nada daquele mundo, mas temia perder aqueles olhos azuis e sorriso triste. Se havia criado numa personagem que não se dava bem com as atividades próprias do seu gênero, encontros, chás, cafés, bolinho de chuva, mas era uma sentimental.
Numa sexta-feira já não se aguentava. Necessitava saber se Dalvino a amava com a mesma exasperação. Então fez. Não descuidou de nenhum detalhe. A mortalha negra, o rosário entre as mãos, as mãos entrelaçadas, um círio aceso em cada canto do quarto, uma coroa de flores aos pés da cama. Quando ele chega, o silêncio espesso reinava. Era arrepender-se ou levar o jogo até o seu limite e consequências. Era mulher de opinião. Levou adiante. Não moveu um músculo, nem os olhos sob as pálpebras. Estava morta, para todos os efeitos. Depois de uns segundos de perplexidade, Dalvino desata num choro desconsolado de criança. Se houvesse se dado conta de que àquela cena faltavam os extras, inevitáveis. Mas não tinha cabeça para tanto. A casa de um defunto sempre está animada. Mas não podia pensar. Saiu correndo, pela sala, alpendre, escadas, portão, rua e lá pedia ajuda. Ela gritava morta de surpresa, do leito de morte: “Volta, que só queria saber se me amava”. Não lembro o que aconteceu depois, hoje os encontrei, continuam a ser um estranho casal.


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