Me vem a mente, quanto
mais longe, mais perto. Se deixar de lado o mito dos anos vividos, o
presente é um obstinado. Ele me enche de razões, a me garantir que
o moleque que era, é quem tinha razão. O menino me faz lembrar de
paisagens, que de tão tangíveis poderia reconstruí-las, cada
centímetro, cheiro, cor, textura... pessoas plasmadas em vivida
concretude. Como se os cheiros, nomes e as coisas de hoje, essa
tanta informação, que supérflua, acumulada num estranho feixe, que
de pesado, o levo de rasto pelo chão, com pena e sem vontade. Dados
que não me pertencem. De pertencimento tenho minha própria
alienação de mim, invadido por informações; de minhas?
Poucas, muito poucas.
Mas da infância recrio
cenas e cenários, e para mim recriar é também recrear, criar
postais, quando já não se usa mais enviá-los.
Não sei se estes dias
frios me ajudam a evocar o tempo da pureza, com aquela multidão me
tapando a realidade ou disfarçando-a. Gente que amava, gente de quem
roubava fulgurante felicidade, de tão refulgente era impossível
não acreditar de veras, que aquele mundo que vivia, mundo à fé, e
que as pessoas, os tons de azul, o barro, o riachinho colhido na
aveludada verde folha de inhame estiveram ali diante de mim porque
eram assim... A sujeira se lavava, as desavenças dormiam
debaixo da cama, a morte que me visitou, antes que a soubesse, não me assustou mais, ou não
existe, ou me faz antípodas, barulho confuso.
Muitas coisas sibilam,
como se o deus laico da infância fizesse de seu canto repetido uma
oração, um ritual, como o ''bença mãe'', um diamante que a tudo
risca mas nada o arranha, é a natureza do cotidiano no seu melhor
vestido, a repetição.
Espelho de espelho é
espelho de outro espelho que reflete a imagem da imagem de outra
imagem onde atrás está o menino vivo que vê e sente ele próprio,
e parece esperar o fim da estação e nos fará felizes, no verão.
Consciente das
mentiras, e apesar delas, creio no altar da minha própria fé, de
sal, de calor, de amoníaco e diamantes, porque quem tem esta joia
sempre será dono das centelhas das chamas de uma fogueira na
noite dos tempos.