Tinha cinco anos de
idade e morava em Pirassununga. A uma quadra de minha casa formou-se
um ajuntamento de pessoas, porque um urubu andava tonto pelo chão,
por haver trombado, segundo diziam todos, com o fio de alta-tensão.
Especulava-se ainda que, devido sua maior massa, ele levava choque,
coisa que não acontece aos pássaros menores. Óbvio que quem dizia
isso, nem sequer tinha ideia de como ocorre o choque elétrico. Só
vim a saber, numa aula de Artes e Música no colegial. Não devido à
disciplina, mas pela indisciplina do Luiz. Luiz, japonês, segurando
dois fios de cobre, enfiava um na tomada que havia na sala, enquanto
o descuidado professor estava atento às pernas da Diva. O truque
estava justamente em não introduzir ambos os fios, um em cada furo
da tomada, mas tão somente um. Assim não formava o curto circuíto.
Dá-se o mesmo com os pássaros que pousam nos fios de energia
elétrica. A outra possibilidade é enfiar os fios em ambos os furos,
mas estar isolado da terra, que é por onde se descarregaria a
energia. Dessa maneira o urubu, ou qualquer outro pássaro leva
choque.
Naquele momento,
infantil, não estava preocupado com a história do choque; somente
olhava para a imensidão do bicho, seu bico volteado e sua capacidade
de se defender a bicadas, ainda que tonto, de todo aquele mundaréu
de gentes que ali se juntara.
O que sei é que passei
a ter sempre uma atenção especial para com os urubus. Uma admiração
muito grande pelo seu voo. Sua capacidade irretocável de tomar as
termas e subir. Esta é a parte bonita e que me interessa, ainda que
saiba da maldade dos urubus, que o primeiro que fazem ao se depararem
com sua presa, que ainda vive, por qualquer motivo imobilizada,
atacam-na justo nos olhos. Numa palavra, os urubus cegam suas presas,
quando vivas; só então começam a desfrutar do pasto, ainda que
estejam vivas. Julgo que julguem uma falta de ética, comer a quem
ainda pode vê-lo comendo-o. Li recentemente uma fábula, escrita por
Ruben Alves, que não gostei. Ruben Alves chamava os urubus de seres
naturalmente becados, fazendo analogia à beca de formatura, ou a
indivíduos graduados. Na fábula, Ruben coloca os urubus querendo e
estabelecendo cursos de canto. Penso que Ruben poderia ter escolhido
qualquer outra ave. A galinha por exemplo, por indigna, mas os urubus
não. Os urubus se isolaram deste mundo de grandezas, são
silenciosos e tímidos e sabem que a vida só tem mesmo valor em
estado putrefato. Portanto é justo o contrario do que pensamos,
quando toda a grandeza se esvai é que o bicho descobre nela o grande
valor nutritivo. Enquanto isso flana incansável. Seu voo é um jogo
de paciência e disciplina. Ele sabe que a ordem é o aumento da
entropia, a perda de informações importantes e o consequente caos
e a deterioração, a plenitude é circunstancial. Coisas
interessantes e embaraçosas acontecem, os aeroportos estão sempre
muito próximos dos pontos de concentração de urubus. Tanto que
vira e mexe há trombadas entre aviões e urubus, com perda total
pare estes e parciais para aqueles. A diferença é que vamos para
algum lugar desde o aeroporto, enquanto o urubu permanece a espreita
dos que ficaram, é inexorável, não há fuga possível. Se se
quiser traçar um paralelo, partimos como urubus e chegamos como
carniça.
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