Sua mulher ainda dormia quando ele voltava do açougue com uns bifes de rins de bode. Sua gata miava roçando contra suas pernas. Era feliz se pudesse comer vísceras como desjejum e depois defecar com critério. Derramou o leite quentinho no prato da gata. Levou para sua mulher um par de ovos moles e uma fatia de bacon junto com duas torradas, ao percebê-la desperta pelo nheque-nheque da cama. Meteu a mão em meio a sua bunda quente e úmida. Despediu-se dela com um beijo na bochecha.
Defecou com calma enquanto passava os olhos numa revista velha, quando nova a havia guardado por algum artigo que então lhe despertara interesse, hoje a folheia como se tratasse de uma revista de infinitas folhas, não encontra o artigo. Nunca tarda muito neste defecar, pois crê que o estar ali em demasia provoca hemorroidas.
No caminho para o trabalho, era um vendedor de anúncios de jornal, comprou um sabonete. Passou na sauna uns bons minutos. Saiu com o sabonete umedecido, embrulhado numa folha de revista, metido no bolso.
Não tinha pressa, pois faria somente uma visita agendada com o senhor Xaves, o chaveiro, antes de ver seu amigo pela última vez.
Passou pela quitanda para acochar o traseiro da quitandeira. Ela lhe realçou seu odor a eucaliptos. Ele estranhou que o sabonete de nada lhe havia servido. Como iria a um enterro com este aroma de lavabo asseado.
No mercadão,ancorou no bar do Ceará pelos rins de bode, lá seu amigo José comia o segundo ovo cozido, soube disso ao ver no pratinho as cascas em duas cores. Passou o sabonete para o bolso traseiro. Sentou-se no tamborete.
Na Única encontrou-se com Xaves por casualidade. Juntos foram ao escritório, onde Xaves lhe deixou três cheques pré-datados, “não sei se vão aceitar o primeiro para trinta dias”. “pegar ou largar”. Pegou.
Dali foi para a sede do jornal onde o chefe dos editores estava reunido com os editores-chefes. Estes não lhe deram a menor atenção, mas logo repararam na gola puída de sua camisa. Quem era aquele, quis saber o chefe.
Era vendedor de anúncios e antes de tudo casado com a melhor bunda de vila Bonfim, e que ela fazia favores ao editor de política. “O Jorge aquele nazista.” Sim.
Deixou os cheques com a secretária. Novamente no saguão foi interpelado pelo chefe. “Virás conosco?” “Não venho com o fotografo.” “Faço questão.” “Assim sendo.”
No carro com o redator de cultura a seu lado, fez muitos meneios de cabeça, e voltou o sabonete para o bolso da frente. “Na vida não há tempo para tudo.” Disse o redator. Meneou. “Não há tempo para rir, chorar, divertir-se e entediar-se“ Aquiesceu. “Quando nascemos já sentimos o cheiro espalhado” “Cheiro! De que?” “da morte por isso choramos” “É”!” “Depois nos acostumamos”“ A que?” “É melhor mudar de conversa, gostas de futebol?” Anuiu.
Que digo ao esteta! Que gosto de minha gata, de minha puta, do cheiro de urina que tem os rins de animais que como, para depois aliviar com sossego o meu ventre, lendo seus artiguinhos bajuladores, com o cheiro de merda misturado ao de jornal.
Tudo imaginando relatos antes de empreender um dia de trabalho, trabalho esse duvidoso, pois o que faço é andar a esmo, perambular, apachorrar, passar a mão na quitandeira, naquele cu fragrante de ventosidades matinais.
Que sou a carne, sangue e ossos do mais autêntico e desconcertado despiste. E minha alma reencarnada ou não, meu espírito, transmigrando ou donde quer que se encontre são a matéria ou o vento de uma peregrinação acorrentada à carne.
Passo em revista o universo rememorando a peripécia da minha vida, arrastando correntes feito alma penada, acolhida e rechaçada, não pelo mesmo céu de donos de jornais e de almas, se não que o céu de analfabetos e leitores, santos e canalhas, crentes e ateus, trabalhadores e preguiçosos, que assistimos ou atravessamos o drama conscientemente ou de maneira casual, pois a vida é uma enciclopédia de casualidades.
À noite voltarei para ela que é ardente e perspicaz e tenuamente puta, como todos mais ou menos o somos.
Voltarei bêbado e sem os argumentos que pereceram a luz do dia. Resta-me este que é diluído e poroso como o passar do tempo, ou mesmo o inacessível entendimento desse passar o tempo.
Sou as coisas que me sucedem, me tocam e que a mim se misturam e se alteram para separar-me delas transformado, ou como se não houvesse passado coisa nenhuma, salvo a matéria de que são feitas tais coisas, de tempo diluído, de porosidade e inacessibilidade e que por isso duram.
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