Era inofensivo.
Era parte da paisagem da nossa infância feliz. Não nos ocorria
sequer de nos perguntarmos, por que ficava ali plantado, naquele
cruzamento, que jamais cruzara. Talvez, por evidente, saudava os
caminhões que ali passavam, na vinda e ida para Araraquara. Nos o
olhávamos de soslaio, ríamos, era isso: ele se alegrava quando
algum motorista tocava a buzina ao passar. Mas nunca lhe dissemos
nada, não tivemos coragem. Centenas e centenas de crianças cruzavam
aquele lugar a cada dia. Éramos descerebrados barulhentos e
impertinentes, mas havia uma fronteira invisível que nenhum de nós
ousou atravessar. Claro que nossa educação era justa, quase
apertada. E ainda que em nossas casas não tivéssemos biblioteca,
nem nunca tivéssemos ido ao teatro, sabíamos que aquele homem era
'café com leite'. Esta expressão adoçava a crueldade do mundo
desde a nossa tenra infância. No futebol alguém do adversário
gritava: ' Mas vocês estão em doze', logo alguém de nós gritava
'Ele é 'café com leite'', é evidente que 'Ele' se sentia aquele
homem no cruzamento dando adeus a desconhecidos caminhoneiros. Era
cruel... e melhoramos?
5 de nov. de 2014
4 de nov. de 2014
Estamos equidistantes do golpe e da revolução. Há que se fazer boa escolha.
Estamos
equidistantes do golpe e da revolução. Há que se fazer boa
escolha.
Se para alguma coisa
pode servir o que está se passando desde julho 2013, seria para de
uma vez por todas, nos darmos conta, que nem a ditadura acabou; nem
o império e o escravagismo morreram e foram enterrados
definitivamente. Sempre se ressuscita algo. À caserna há sempre
alguém desperto. Porque estas estruturas estão enraizadas,
somatizadas por todo o território, mais enraizadas, que nós alegres
cidadãos pensávamos. E pensar o tanto que nos custou construir a
democracia recente, não era para se ver o que se tem visto. Já, por
agora, de uns meses cá, com rápidos movimentos, e demolidores
gestos, se nos arrastam o véu da inocência, graças sobretudo ao
impagável trabalho dos meios de comunicação. O poder podre por
natureza, se retroalimenta do seu despudor, tudo em nome do
enriquecimento desmedido dos já detentores da fortuna desde sempre,
umas quantas famílias que se repartem o botim enquanto nem sequer
aceitam que a escória mal viva. E assim sendo, querem que se
deprimam , e que se humilhem por uma quimera. Estas gentes que não
fizeram mal algum e que se dedicaram a pôr em prática os princípios
elementares da convivência e dedicação ao trabalho, agora
recompensados com a vexação social e a solidão do impotente.
Entretanto não
creia, não tornarão a ser como eram. Ainda que a tal parcela, com
princípios bem diferentes, fazem do uso e abuso da posição,
contatos, ocultação de bens e prevaricação, sempre atrás de um
discurso impoluto, pense bater à porta do céu. Estão ai os tiques
da ditadura, da falsa aristocracia, dos estratos de sangue real, de
senhores de engenho, de capangas, de novos-ricos, de nova e velha
classe média. A arquitetura deste arcabouço é largo, longo e
sólido em suas genealogias, e na sua onipresença. Isso que digo se
manifesta tanto em palavras, como em fatos, como ainda pouco na
Paulista, sem a oposição veemente e necessária, outrossim, com o
beneplácito dos meios de comunicação social, dos partidos
oposicionistas aliados. Poderia se dizer que quem cala consente,
mas é mais que
isso, na verdade contam com sua vênia, em troca de continuarem
‘insuspeitos’ a espreita, para ver que cai da mesa, para então
se apropriarem. Mas não creiam, que se não aceites os resultados
dessa falácia democrática – a que nos sujeitamos a lustros sem
conta – tampouco aceitar-se-á um governo advindo de um golpe.
Porque os tempos são outros, por todos os lados. E se olharmos por
este prisma, está tão perto um golpe, quanto uma revolução.
2 de nov. de 2014
Tumba esperando seu morto.
Túmulo vazio.
Chuviscava, mas é
difícil resistir ao cemitério. Histórias esquecidas entre nomes
repetidos, datas remotas e flores tristes de plástico. O horizonte
delimitado por condomínios, estes dos vivos, vistos dali, não
diminuem nossa insignificância, ou a claustrofobia. Um túmulo com
anjos sinistros e mármores decorativos, e tijolos que foram se
desgastando ao longo do tempo, e minha velha conhecida, a inscrição
que diz:''Aqui jaz José de Sá Rocha __ de __ 19__”. Sim, lá
estão os espaços em branco para serem ainda preenchidos, como a
própria cova. A primeira reação foi infantil: 'ainda vive'. Mas
logo me vem um detalhe moribundo, este homem não previa chegar ao
séc XXI. Vila Bonfim, é assim que os antigos moradores a chamam,
sabe o paradeiro de todos os seus filhos, mas não tem a menor
informação sobre José de Sá Rocha. Fiquei a pensar, no velhinho,
se o fosse, a desfrutar de sua futura residência definitiva, como se
fosse uma casa de campo, ou na segurança condominial. No entanto,
para aquele que constrói a própria tumba, muito antes da morte,
esta está abandonada. Pelas informações recebidas junto a
administração do cemitério, o túmulo ,não habitado pelo não
vivente, fora construído por um jovem no final dos anos 50, mais
precisamente em 1958. Foi no Google que resolvi a charada, uma única
entrada. Uma reportagem do Jornal A Cidade publicada em 1968 que me
fez descobrir que José de Sá Rocha, nascera na noite de natal do
ano de 1940, e então com 38 anos o comunista Zé de Sá, e toda sua
família desapareceu misteriosamente por mãos desconhecidas perto da
Gironda, acerca de Luiz Antônio, então estação de trens da Alta
Mogiana. José de Sá Rocha construiu com as próprias mãos sua
residência definitiva, mas para habitá-la não basta a vontade de
um morto, pois necessita da cumplicidade de um vivo. E ele não a
teve. Descanse em paz. Onde quer que esteja.
Finados
Finados.
Não importa aonde
vou, fugindo do que for, por mais que me distancie, esconda; sempre
levo na memória do coração aqueles beijos. Nada mudará o perfume
daquelas horas secretas nas quais perdi o senso que me livraram
completamente, naquele instante, do passado e do futuro. E por onde
for não poderei escapar da verdade e da beleza daquele olhar que se
fundia ao meu.
Não poderei ser
ateu de ti, se não esqueço o Pai Nosso...
Onde for, voando com
asas de barro ou fogo, levo minhas raízes... É tão bom, da mesma
forma ir e ir-se, se penso na liberdade, se é que ela faz algum
sentido, a deserção é um deles, tirar o time de campo. Não ficar
preso, atado, aferrado, enganchado, ancorado... dar no pé, ainda que
à francesa. Porque há gaiolas que em nada se parecem a gaiolas e
saídas que são entradas. Içar velas, meter o pé da estrada, estar
de passagem é o que há de definitivo para preservar a integridade
pessoal. Já que cedo ou tarde mesmo a viagem chega ao fim, ou ...
31 de out. de 2014
Lei.
Leis.
É certo que quem
fala das leis, da lei das leis, não fala da justiça. E se nos
agradam ou não, meu caro, que se fale das leis, elas são
consequência da miséria humana, quanto mais leis, mais miséria; de
todo modo, é o que há. Em contrapartida, a justiça é uma
abstração qual somente os crédulos confiam. Mesmo a representação
da Justiça é uma aberração. Balanças equilibradas! Quem decide o
que pesa? Quem é capaz
de as equilibrar? Olhos
embevecidos, cegos? Neutralidade? Imparcialidade? Não, o que falta é
compreensão, mas ao
final, não nos enganemos, o que vale é a espada.
Descartada
a abstração, falar de concretudes: legisladores, juízes,
necessariamente interpretes parciais, manipulações legislativas
e juízos etc...é uma tarefa qual me vejo incapaz de desenvolver,
que ultrapassa a minas capacidades físicas e intelectuais. No mais ,
que sentido teria?
Infinito.
O garotinho ia
recitando números de um dígito, sem nenhuma ordem evidente,
começara pelo 5. Eu, que penso que nos elevadores o diálogo é
facultativo mesmo com os conhecidos, no entanto me somei ao jogo com
o 10.
O garotinho, com
certeza molestado pela intromissão ou porque desconcertava aquela
sequência que lhe era adequada, com o rosto próximo do bolso de
minhas calças, levanta o olho e, num desafio me diz: 56.980.
Me descarrilhou! Foi
o que senti. Cai na armadilha. Sabia que viria um fim ainda pior. No
entanto, sei perder e não fujo da raia, então disse com humildade
de quem reconhece a culpa: 56.981.
Ele com um sorriso
matreiro, lentamente desembucha: INFINITO. Derrotado, pensei em
infinito ao quadrado, minha metafísica não me ajuda em nada, por
sorte o elevador parou e ele quando já fora do elevador abanou a
mão, Tchau!
29 de out. de 2014
Dois mil anos de escuridão.
Dois mil anos de
escuridão.
A bíblia em muitos
casos é explicita, noutros vaga, talvez esperando que o ouvinte ou o
leitor capte algum simbolismo. Não sei. Não entendo como Adão e
Eva não se deram conta – antes de comerem a maçã – que
estavam nus. Já tentei várias explicações, nenhuma que me fosse
relevante. Uma interessante, ao menos para mim, é que havia tanta
coisa no paraíso para se contemplar que nem se deram conta do
pelados que iam, talvez nem de se entreolharem tiveram tempo, ou que
andavam cegos, e a maçã os curou. Parece que não, mas este fato é
cheio de importância. Outra que me intriga é por que subitamente
decidem se cobrir, em concreto, o baixo-ventre. Não creio que
houvesse câmbio climático, ao menos a Bíblia só fala mesmo da grande
inundação.
Alguém, algures,
pode pensar que isso é de somenos importância, mas intuo, creio,
que boa parte dos acontecimentos mais transcendentes da história
ocidental, têm a origem e a explicação no fato simples e
misterioso: Adão e Eva cobrem-se seus entre cochas, respectivos.
Penso que o mundo seria bem diferente, se eles houvessem decidido
cobrir a cabeça, o que seria mais lógico, porque a ira divina vem
do alto.
Qualquer explicação
neste momento se reduz a mera interpretação literária, que é para
lá, para a estante da ficção literária , que o Papa Francisco
mandou a obra, depois de dois mil anos de escuridão.
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