9 de mar. de 2012

Urubus.



Tinha cinco anos de idade e morava em Pirassununga. A uma quadra de minha casa formou-se um ajuntamento de pessoas, porque um urubu andava tonto pelo chão, por haver trombado, segundo diziam todos, com o fio de alta-tensão. Especulava-se ainda que, devido sua maior massa, ele levava choque, coisa que não acontece aos pássaros menores. Óbvio que quem dizia isso, nem sequer tinha ideia de como ocorre o choque elétrico. Só vim a saber, numa aula de Artes e Música no colegial. Não devido à disciplina, mas pela indisciplina do Luiz. Luiz, japonês, segurando dois fios de cobre, enfiava um na tomada que havia na sala, enquanto o descuidado professor estava atento às pernas da Diva. O truque estava justamente em não introduzir ambos os fios, um em cada furo da tomada, mas tão somente um. Assim não formava o curto circuíto. Dá-se o mesmo com os pássaros que pousam nos fios de energia elétrica. A outra possibilidade é enfiar os fios em ambos os furos, mas estar isolado da terra, que é por onde se descarregaria a energia. Dessa maneira o urubu, ou qualquer outro pássaro leva choque.
Naquele momento, infantil, não estava preocupado com a história do choque; somente olhava para a imensidão do bicho, seu bico volteado e sua capacidade de se defender a bicadas, ainda que tonto, de todo aquele mundaréu de gentes que ali se juntara.
O que sei é que passei a ter sempre uma atenção especial para com os urubus. Uma admiração muito grande pelo seu voo. Sua capacidade irretocável de tomar as termas e subir. Esta é a parte bonita e que me interessa, ainda que saiba da maldade dos urubus, que o primeiro que fazem ao se depararem com sua presa, que ainda vive, por qualquer motivo imobilizada, atacam-na justo nos olhos. Numa palavra, os urubus cegam suas presas, quando vivas; só então começam a desfrutar do pasto, ainda que estejam vivas. Julgo que julguem uma falta de ética, comer a quem ainda pode vê-lo comendo-o. Li recentemente uma fábula, escrita por Ruben Alves, que não gostei. Ruben Alves chamava os urubus de seres naturalmente becados, fazendo analogia à beca de formatura, ou a indivíduos graduados. Na fábula, Ruben coloca os urubus querendo e estabelecendo cursos de canto. Penso que Ruben poderia ter escolhido qualquer outra ave. A galinha por exemplo, por indigna, mas os urubus não. Os urubus se isolaram deste mundo de grandezas, são silenciosos e tímidos e sabem que a vida só tem mesmo valor em estado putrefato. Portanto é justo o contrario do que pensamos, quando toda a grandeza se esvai é que o bicho descobre nela o grande valor nutritivo. Enquanto isso flana incansável. Seu voo é um jogo de paciência e disciplina. Ele sabe que a ordem é o aumento da entropia, a perda de informações importantes e o consequente caos e a deterioração, a plenitude é circunstancial. Coisas interessantes e embaraçosas acontecem, os aeroportos estão sempre muito próximos dos pontos de concentração de urubus. Tanto que vira e mexe há trombadas entre aviões e urubus, com perda total pare estes e parciais para aqueles. A diferença é que vamos para algum lugar desde o aeroporto, enquanto o urubu permanece a espreita dos que ficaram, é inexorável, não há fuga possível. Se se quiser traçar um paralelo, partimos como urubus e chegamos como carniça.      

8 de mar. de 2012

À Mulher.




Verdadeiro o fato e, é certo também que existe a discriminação da mulher em nossa sociedade. São alarmantes as cifras anuais de violência sexual, e a situação de assedio sexual, nem sempre devidamente atendida pelas autoridades competentes. Persiste ainda as diferenças salariais entre homens e mulheres. E há testemunhos frequentes de diferenças no trato pessoal no trabalho, que as vezes se estendem além do grau de capacitação profissional exigível na prática, assim como as condições requeridas para ascender a postos de responsabilidade.
Além do mundo do trabalho, existe e persiste a desigualdade entre homens e mulheres na distribuição das tarefas domésticas. É real o sexismo na publicidade, onde a mulher é considerada, a miúde, um objeto sexual. São igualmente verdadeiras as atitudes paternalistas de alguns homens relativamente às mulheres, seja dentro o fora do trabalho, e muitos outros signos sociais de desigualdade ou de discriminação, que por vezes são denunciados, mas ainda timidamente.
Há uma crescente preocupação com o uso da linguagem, principalmente na Europa. Há instituições que afirmam que há comportamentos verbais sexistas. Sendo que a linguagem, pode ser usada com propósitos múltiplos, entre outras coisas: ordenar, descrever, perguntar, enaltecer ou insultar; assim e desde já também pode ser usado para discriminar pessoas ou grupos sociais.

Neste contexto existem numerosas instituições mundiais advogando pelo uso de uma linguagem não sexista.
Dizem estas instituições: É necessário estender a igualdade social de homens e mulheres e conseguir uma maior visibilidade da mulher, para além do sexismo. De tudo que li as palavras que se fizeram notar é: visibilidade, invisibilidade, visível e invisível. Isto é: tornar a mulher visível numa frase ou oração em que também participe uma mulher, grosso modo: João e Maria vivem “juntos”, nesse caso o advérbio faz referência masculina: Juntos. Estas instituições pedem, de forma exagerada, neste caso que se inclua a mulher.

Entretanto não se pode negar que esta frase é sexista: Até os acontecimentos mais importantes de nossa vida, como escolher nossa esposa ou nossa carreira, estão determinados por influencias inconscientes. É introdutória de uma perspectiva bem caracterizada do androcentrismo, como se fosse uma perspectiva geral dos seres humanos. Ou ainda: nós brasileiros preferimos café a chá, como preferimos loira a morena. Não se trata do uso de artigos ou possessivos como: todos nós, os que vivemos num grande centro.... Mas sim frases tolas como esta: Elas nos fazem de bananas! Querendo parecer um alisamento do ego feminino.
É certo que o uso 'genérico' do masculino para designar os dois sexos, tem raízes profundas no sistema gramatical de nossa língua, e é, pode-se dizer, que quase impossível no caso aplicar censura.
Leia isto: uma cientista depois de fazer um discurso favorável, quase panfletário defendendo a mulher, e a necessidade de se abolir a discriminação de toda sorte, assim termina: Nós 'os' cientistas temos a obrigação de fazer com que a difusão da ciência seja acessível... Acrescenta ainda: um aspecto importante para a participação da mulher no mundo profissional é que haja facilidades para o cuidado 'dos filhos...' e agradece ao final: … 'aos amigos' e seu apoio e amizade...
Este tipo de texto está em toda parte, e produzidos por mulheres jornalistas, escritoras, artistas e muitas das vezes comprometidas com a defesa dos direitos das mulheres.
De todas as maneiras o movimento existe, principalmente na Europa, muito nas línguas românicas, português, espanhol, italiano e francês; mas sem esquecer do alemão onde 'man' é 'um que, alguém' e que ainda se relaciona diretamente com 'Mann' “homem” exemplo: Das sagt man. Que quer dizer: É o que dizem (notadamente masculino). Ou como 'on' em francês, 'hom' catalão que tem origem no latim “hominem”. Mas tudo isso é fóssil. O importante é saber usar a linguagem para expressar exatamente o que se deseja, desenvolver-se intelectualmente, defender as próprias ideias, tê-las, realizar-se pessoal e profissionalmente, em plena igualdade. Ainda que supostamente.

Refavela.



Havia até outro dia, tapume circular num dos 'coretinhos' da Pça das Bandeiras, ele era mequetrefe mal alinhavado, muito do malfeito. Pois não tardou a chegar a retroescavadeira e você, como eu, pode pensar que alguém antes desfez o malfeito! Tábua a tábua. Mas nem não sequer. À bruta, a retro, meteu seus dentes de máquina e estraçalhou, em uma dentada, sozinha, um pedaço do tapume. Eu vi. Vi os restos dos compensados estraçalhados em meio à terra, que a retroescavadeira, por andar 'de costas', não vê nada e vai quebrando e abrindo com furor a vala, descendo pela calçada da desdita praça. Neste seu refazer, nada se salva, nem um pedaço de calçamento. A construção civil, reis de geração de entulhos, públicos ou privados, persegue sua sina. Nem um isolamento caprichado. Só uma fita amarela de árvore em árvore, soltando os nós. Um refavelamento como cronologia inicial de uma engenharia. Claro que depois de tudo isso, a calçada na Visconde de Inhaúma ficará um remendado remendo. Os ladrilhos não coincidem jamais. Por isso os portugueses preferiam pedrinhas a ladrilhos regulares. Hoje é pó, tão só pó, para tudo que é lado. Deve ser uma equipe treinada em zelosas desocupações, nas desmanchações de barracos. Deve de ser!  

6 de mar. de 2012

Cortar os pulsos!



Ser poeta; pintor; músico; escultor; arquiteto; livre pensador ou simplesmente humano não é tomar de um caco de vidro, cortar os pulsos e verter-se em hemorragia. A vida deve seguir. E por dever de continuar, nenhuma obra de arte trará solução, nem sequer uma qualquer ideologia, se, se leva em conta que o difícil suicídio via o corte de pulso, no mais das vezes, tudo que faz é a teimosia em deixar aquela saliência que anos adiante se tentará ocultar com a pulseira do relógio.
Há entretanto, e por toda parte tais manifestações. Muito, corriqueiramente e, a miúde a fotografia é vitimada. Um exemplo é um menino negro africano de barriga grande disputando restos com urubus. É um corte no pulso com vidro, mas não é arte. Na música houve o caso recente da inglesa que fabricava queloides e por fim acabou por uma industria menos densa, ao compor a própria fuga em tons pasteis. Outro exemplo, mais remoto, é The Wall, uma tontura provocada pela perda de sangue, em lento derramamento, aonde a perda de sentido – lisérgico - se faz notar pelas vozes indecifráveis e quase fantasmagóricas. À época quem fumasse maconha não deveria ouvir, porque acontecia de ocasionar uma somatória de ondas que reverberavam, ou mesmo produzir ecos que se confundiam com as frases musicais que redundavam desde a primeira volta da agulha.
Por outro lado há outros tipos de sangue esguichando, mas de maneira regrada. A música sertaneja e neo sertaneja, como queiram. Dá para ver no rosto do ou da cantante o quebranto, as cólicas e a contorção das tripas, coisas que fazem do ser atrás do microfone exibir o calafrio, a febre e o suor mesclado com hemoglobinas. Como se o palco se tratasse de um monte - o Calvário - o microfone, a própria cruz, e na plateia: as marias e a madalena suportadas por apóstolos em estado de brandura. Não deixa de ser seita.

4 de mar. de 2012

Michel Teló: Uma vindicação.



Não é costume meu, ser evasivo; porque nisso reside a arte, não tenho inclinação artística, senão que desejos. Entretanto como tentativa de me revitalizar como indivíduo, por vezes sou levado à falsidade, ao plágio e mesmo a reinventar minha própria biografia. Pode parecer o que for, desde já, mas tem o propósito último de ser a mim um passatempo de mim. Uma problematização metalinguística de mim mesmo que buscará solução em qualquer parte. Haverá aquele que entenderá como um ceticismo epistemológico, ainda que estime muito a religião e a filosofia, mas tão só no que tange valores estéticos, no que encerram de singularidade e de maravilha. O que poderia se chamar ou identificar como um ceticismo essencial. Não tenho nenhuma teoria do mundo, embora possa usar a metafisica como sistema, ou o materialismo como religião, mas isso não deve passar de um aproveitamento necessário à solução de problemas específicos. Não creio que o conhecimento seja possível. E se poderá dizer agnóstico de seu praticante. Como dizia H.G.Wells: intercalar doutrina nos pensamentos e escritos é deplorável. No específico das mundanidades fui levado a conhecer o que alguns poucos conhecem e desconhecer o que é de todos conhecido, quer dizer sou uma lacuna vergonhosa. Confesso que gostaria de ser facilmente localizado no platonismo, ou num panteísmo a la Espinosa, ou mesmo um niílico panteísta. Mas dada a minha admiração pela metafisica, sou mesmo é um caipira perdido na metafisica, que é uma terra fértil que não serve à cana-de-açúcar, e apesar de ser completamente incapaz de entendê-la é por meio dela que me ocorre de um tudo, urticárias ou bicho de pé ideológico, menos a fimose intelectual, que não passa de um aprisionamento de todo o pensamento por uma corrente ideológica, ou como já o disse antes, é a deplorável necessidade de intercalar doutrina por todas as partes do orbe.
Cada uma a sua maneira, certas canções, atingem um tipo de perfeição, e há estudos profundos ligados à linguística, mais precisamente à linguística generativa de Noam Chomsky que coloca no centro de tudo a sintaxe. Antes de Noam Chomsky se cria que a linguagem era, por completo, adquirida por associação e ou aprendizagem, o que digo para linguagem vale para qualquer destreza humana, a música por exemplo. Depois da publicação de 'Estruturas Sintáticas', que atacava os pressupostos básicos do estruturalismo e da psicologia condutivista, onde Chomsky postula a existência de um dispositivo inato, quase um 'órgão da linguagem', que permitiria aprender e usar a linguagem de um modo quase instintivo. Basicamente é assim, há os que pensam que o cérebro de um bebê é vazio e deve-se enchê-lo, já Chomsky pensa que o bebê nasce com todos os dispositivos no cérebro especializados e inatos.
Dessa maneira há canções, como todas, existiam antes, isto é: 'Ai se te pego', existia ou estava no limbo, como Michel Teló existia no limbo, e foi no limbo que Michel encontrou 'Ai se te pego' que eram a peça e o vazio ou espaço falto do quebra-cabeças. O grande valor de Michel Teló e vislumbrar o que existia, coisa que nós a maioria dos mortais não vemos. Vemos muito menos coisas do que as coisas todas que existem, e para disfarçar acreditamos em coisas inexistentes, afim de parecermos inteligentes, ou parecermos insatisfeitos com o mundo. Podemos explicar esta união cabalisticamente, sem necessariamente sermos especialista no Talmude, porque a Cabala é necessariamente precisa e justifica todos os acontecimentos do mundo, e suas necessidades últimas, onde os acontecimentos não se dão ao azar. Ou seja, a contingência do azar é zero. Veja você que o dito vai de encontro à famosa frase o poema mallarmaico: 'a coup de dés jamais n'abolira le hasard' que contraria toda a cabala, sendo que institui como mínimo uma possibilidade extra. O que levaria Borges a dizer que Mallarmé e seu poema está incluído, por conseguinte, em todos os acontecimentos do mundo, o abraço se fecha sobre tudo. Assim sendo 'Ai se te pego' e Michel Teló são tão necessários e não casuais como o faisão azul de bromotimol ou tornassoleado, como preferirem. Porque Michel é Mich (alemão eu) e el ( espanhol ele) então EuEle, e Teló é antes de tudo Tê-lo é 'tela' 'telon' espanhol e Teló 'tela catalão' e uma outra vez 'el' e 'elo' 'eloé' e recorda de pronto Telavive e 'ai se te pego' tem o ritmo marcado exato, melhor dito na melhor frequência para se 'fazer amor' muito parecido ao Bolero de Ravel.
E desta maneira sem conseguir uma linha de fuga, acabo por me agarrar a determinadas ideologias que não dirão nunca: matematicamente se poderia conseguir a conjunção: canção e cantor(voz) (veículo) perfeita e agrada a toda a gente, mas o que realmente não queremos, nem sequer parecer, quanto menos ser igual a toda a gente.   

2 de mar. de 2012

O Medo.





Resulta triste ver jovens,  ou não mais tão jovens, convertidos em conservadores quase xiitas, mais liberais que o liberalismo, e em suma: fundamentalistas rancorosos. De outro lado ver um nonagenário, ou quase, como Vicente Golfeto se transformar num intelectual quase progressista. O homem é de uma afabilidade cruel e de uma lucidez proada, fundamentada num discurso de corte clássico, ainda que atrelado às tradições e posições conservadoras. Entretanto este senhor, culto à europeia, acaba por ser vanguarda de ideias do futuro imediato, e o faz com comodidade de quem já viu tudo e que não espera nada de nada e de ninguém, e menos ainda dos jovens de hoje. Justo estes que têm – todas as gerações a tiveram - a pesada responsabilidade de desenhar uma sociedade melhor que a de hoje, mais justa e equitativa, pelo menos; o que era para ser uma quimera, que a cada momento se parece mais a uma necessidade.
É certo que mesmo os que advogaram por uma economia 'mais humana, mais solidária e capaz de contribuir ao desenvolvimento da dignidade dos povos ou das pessoas', sabem que depois dos referentes do homem como medida de todas as coisas – gregos – e – de Deus nos tempos medievais – que nos miramos no deus capital, desde o âmbito da revolução industrial até desembarcarmos no milagre das novíssimas tecnologias, sempre estão tentando responder às perguntas que questionam o modelo moral atual.
Se o dinheiro é o termômetro de todas as coisas, as reservas essenciais da pessoa se pervertem – felicidade, responsabilidade, justiça, equidade – até o ponto de se perder a perspectiva do coletivo e do social, e por extrapolação portanto, do planeta em que nos cabe viver.
Assim sendo, a chave de retorno, para combater o sistema se baseia, toda a vida, na liberdade. Sobretudo a liberdade de pensamento, que é o território onde a identidade individual pode realizar-se e vir a concretizar-se, primeiro modificando ou fazendo por isso, no seu círculo restrito. Porém esta liberdade, aliás, sempre está ligada a independência intelectual dos indivíduos, seja qual seja o meio que o acolhe, seja qual seja o meio que ele escolhe acolher; ela, a liberdade, resulta cada vez mais difícil frente aos planos dos meios de comunicação ( meios de persuasão nos diz Vicente Golfeto) do poder e do açambarcamento perene e continuado do medo como conceito de utilidade. Não se é um homem com medo, se é um cordeiro, que quando muito olha e ora pela sua sobrevivência, e, terror dos terrores, o faz com a alma lavada – consciência limpa – e pasme-se, quase que por instinto natural.
Entretanto e sem nos darmos conta, o medo é só um cenário, uma conjuntura, uma sombra que ameaça. Notem que cenário, conjuntura e sombra, todos tenebrosos, são vocábulos diários de meios de comunicação. Voltando, por que ameaçam? Ameaçam porque escondem seu conteúdo e pronto e basta. Enquanto as novas redes sociais e os 'novos espíritos' deveriam propor o contrário; não espalhar o medo, mas botar luz nessa impostura obscurantista. Desde Pitágoras sabemos que um raiozinho de luz pode iluminar a escuridão


24 de fev. de 2012

Bumbum de Carnaval.



A pequena Isadora passou as últimas férias escolares, nos seus finais de tarde desse tórrido verão, sentada na calçada com suas amiguinhas. Seus shorts sempre acabavam por ficar avermelhados pelo pó da terra roxa. Ela sempre batia a poeira com a palma da mão, mas talvez a umidade dela, muito provavelmente devida ao constante manuseio do celular, mais emporcalhavam que espanavam. Corriam, saltavam e gritavam quanto passava uma saveiro com o seu te pego ai ai... Chegou o carnaval e Isadora desfilou fantasiada de libélula, alguns adereços, uma tiara azul, transparências e um fio dental, também ele invisível. A pele brilhante e dourada da exuberância de seus quatorze anos, o seu bumbum empinado, substituíam com folga os incipientes seios, talvez por isso, mais tapados que o resto do corpo, seduziram uma plateia de marmanjos que se emborrachavam na escadaria da praça e gritavam: gostosa, quando ela passava, e ela retribuía com um triste samba no pé, sobre o salto plataforma. Sua mãe, hoje dona de par de braços tão gordos, na parte posterior que se dobram sobre o cotovelo, como se fossem outras duas barriguinhas na inflexão de seus trinta e dois anos; ouvia os gritos que ecoavam de um passado não muito distante, como se fossem para ela, numa época em que suas nádegas destruíam famílias, e fizeram por aumentar o consumo de cachaça em todo o distrito.
Hoje Isadora quando caia a tarde, saiu com seu short mais apertado. Os pobres demoram a se desvencilhar da moda, sendo que a última moda é o shorts mais airado, leve e solto, como se tratasse um tecido de seda, em cores discretas, para contrapor a sensualidade quase erótica que pode causar o movimento do pano, as vezes colando suavemente nas partes mais íntimas, normalmente sem outra peça por baixo, esse é o propósito, ou abrindo fendas e gerando perspectivas e possibilidades de exploração visual, que o pano grosso e colado não permite. Como dizia, Isadora portava o mais apertado dos shorts, onde as duplas costuras do cós punham em risco sua virgindade. Isadora foi caminhar. Foi ali para os lados dos condomínios, onde dizem que chegará a João Fiúsa. O rapaz da saveiro passou lentamente e seu escudeiro, botando meio corpo para fora, disse coisas que não ouvi, e seguiram caminho, lentamente. Isadora olhava por cima dos ombros, num exercício impossível, dobrando a espinha, alçando o bumbum para cima, sim, creio que ela o via.