Se minha geração
foi um animal, foi o burro, e fui um burro empacador, assim que
soube o que é apanhar como burro empacador, apanhei mais que
um burro empacador. Recordo muito bem uma bordoada que levei no
lombo do Humberto T., que quase me deixou socrático como uma vaca, Humberto, em si um sujeito asnal, tinha o sobrenome de ilustre radialista
ribeirão-pretano chamado Wilson, que passou a vida, a zurrar, a dar
porretada a torto e a direito, nos políticos da cidade, sendo
um deles, não me lembro que tenha se auto-flagelado. Sendo
isso uma outra história, digo que todos sabem que tenho um
gato, se não sabem, que saibam agora, e se chama Ão.
Que domina imperativamente em minha afetividade felina. Custaria
muito viver com dois. Uma olhada gatuna carrega suficiente enigma
para mim. Com frequência Ão vem se sentar a meu lado,
sobre esta secretária, donde escrevo. As vezes, decide se
tombar diretamente sobre o teclado do computador e se irrita de
verdade se o aparto, com o quê, se o que tenho a dizer é
urgente, como tudo que que tenho a dizer é urgente, fico
invocado, como diziam os bonfinenses que foram burros de carga como
eu, dou uma bronca, da qual não saio sempre ileso. Mais de uma
vez, me perco em seus olhos, com a suspeita de que insinuam alguma
sabedoria arcana, que me é completamente indecifrável,
mas creio que tem a ver com o passar do tempo.
Suspeito que quem
escreveu o prólogo de um Sêneca, que suspeito não
ter lido, senão que houvesse ao menos uma vez decifrado a
mirada de Ão, mas vejam o que escreve quem escreve:
“Indubitavelmente, o descobrimento do tempo não pode ser
verificado mais que em um momento negativo dentro da própria
vida, no qual estávamos enchendo alguma coisa e a perdemos: o
tempo é a substância da nossa vida e por isso está
a ela subjugado, como fundo permanente de tudo o que vivemos;
descobrir esse fundo tem algo de queda, que só acontece em
estado de angustia, desengano e vazio. Descobrir o tempo é
descobrir o engano da vida “ .
Leio o texto em voz
alta para Ão, que se lambe parcimoniosamente, e deixando de
vez em quando que me atinja um olhar sesgo.
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