12 de ago. de 2016

Porteiro.

Desço degraus de pedra da caverna.
Cova que é olho de ciclope
Desço degraus trás degraus
Paro à porta, e já se fora
O ilusório, o amor
Nuvem sempre mudança que
Dissipa.

Dez para as dez saio.
O homem ao pé da porta.
Está por mim ao pé da porta
Troca de nome, mas é o mesmo
Troca de chapéu nunca dorme.
Não que me impeça a passagem
Desde sempre e antes está em cada porta.
Saio evitando-o.
Olha dentro dos meus olhos
Não me diz palavra
Mas imagino a inquisição.
Como é, você sabe, que um pisão
Arruína a delicada vida da formiga.
Sei que me equivoco conjugando os tempos. E faço aparecerem as sombras, gritaria de bocós.
Áspera língua que com seus beijos
Lixam minha garganta.
Minha pele eriçada, cruzo túneis
Sinto que já fiz essa rota.
Já sei, não me diga nada, cê tem razão.
Não me obstruí o passo, quebra o chapéu.
Já me pesa o embornal de despistes.
Inútil tentar.
Sempre que tarde.
Sempre tudo mal.
Sempre o veneno amargo.
Língua voraz sulca
Outro crepúsculo.


Vai cabisbaixo, eu sei, o cinto te aperta.
Sa  dor inquilina duma e outra vértebra.
Rabo entre as pernas murcho, se inspira
a voz atroz zune atrás  da orelha, secreta.
Não para, nem se acalma com salicílico
Ta crença besta no  baralho zap, truco
te sopram sinais imundices de feroz animal
desavergonhado,  e te deixam outro, terminal. 

11 de ago. de 2016

Meta o pé na jaca

Dê logo esse nó na gravata
Economize-nos a gaita
Calce com cabo de colher a alpercata.

Chute o pau da barraca.
 Queime com café a língua fina
Esfregue com fubá dos dentes a nicotina
Aperte o tubo insulte e faça se entregar
O dentifrício.

Chute o balde
 Não se reduza a galinha poedeira
Um ovo a cada sol  nas beiras
Que suba o pano, agarre o seu vulto

Meta os pés pelas mãos.

Anche, ai de ti canino eco
Do escroto cristalino
Oco de nem palácio de trompa
De Falópio num déjà vu
Inunde de líquido do fucking
Sexual, perpetre. Seu pateta.

10 de ago. de 2016

Um curta que vi.

Um curta que vi.

Um homem está só dentro de sua pequena e impecável casa branca. Subitamente vê aparecer uma barata correndo pelo piso um dos cantos da casa. Ele pensa em atacá-la com o uma vassoura, ela foge e se esconde, desaparece. Pouco depois retorna, e uma outra, e mais uma. Pouco a pouco elas vão tomando a casa, saem pelas torneiras da cozinha, pelo ralo da pia, pela louça do banheiro, pelo ralo do banheiro, pela fresta da janela, por uma trinca na parede, pelo buraco aonde havia um pendente de luz. Saem de baixo da geladeira, do sofá, pela fresta da porta. De repente, o homem está encurralado, foge para um canto da casa branca, agora elas avançam na direção dele. Agora elas começam a subir por suas pernas, elas começam a cair do teto sobre ele, como uma catarata de baratas… um corte, e vemos o homem deitado placidamente sobre a cama. A casa está outra vez branca, perfeita. Pensei, era um sonho. Então a câmara faz um primeiro plano do seu rosto, e uma barata sai do seu nariz, e outra, e outras, e outras saem pela boca, e um monte delas pelas orelhas, pelos olhos. Ele está vazio, elas o esvaziaram desde das entranhas. O homem jaz, vazio e morto. Este, neste âmbito, foi um dos meus poucos descuidos.

5 de ago. de 2016

Quando acendo uma vela me lembro d'ocê.

Quando acendo uma vela me lembro d'ocê.
Nenhuma em particular, uma vela qualquer.
É esse tufo de barbante do pavio, Vera
Aquela vez, a gente não achava a vela, e
você, santantônio, santantônio, santantônio,
eu brincava uma regressão de lata de pó royal,
acender uma vela ao santo que não é, bem, Antônio,
para que nos ajudasse a encontrar as velas.

Não sei que ideias passavam por tua cabeça, mas
sempre me dizia: não creio nem deixo de crer e
também não creio em deus, mas creio que há algo.
Fosse crente ou não, era magistral na hipocrisia.

Receei a santantônio. Não sei, Vera, por que me tratava de homi.
A verdade que só acendia vela quando caiam os fusíveis.
Mas, relaxe homi, faça, Om, Ohm e Hom. E bastavam
essas três palavras para corroer minha erudição.
Relaxar sem elevador? Onze andares por escadas...
agora que quero ver, onze andares 150 degraus.

Depois desses degraus, não sabia como me doía a bunda
no outro dia. Mas, o importante é que me ensinou a apreciar
outras qualidades das velas, ulteriores ao uso cotidiano
como luz de emergência. Por exemplo, de vez em quando
dava essa dor aguda no baixo ventre, que se eu fosse mulher
afirmaria sem duvida que se tratava de ovários. Você
dizia que eram gases e catava uma vela. Feitiçaria. Ventosa.

Havia outra dor, essa tensão magnética que me dava nos incisivos,
a sensação de algo que não via, mas estava ali tentando me extrair
um nervo. Latejando. E eu dormindo a mastigar os dentes. Lá vinha Você com
aqueles chás, sempre os tomei, mas.

Era diferente Vera. Há quem nos classifique por preferência estética.
Os grossos e os esnobes. Gente grossa tem mau gosto e ponto.
Os esnobes, dão tanta importância em ter bom gosto, mas tanto,
que lhes importa mais saber se deveriam gostar, do que: gosto?

Você Vera não, era delicada, nem seletiva, era plenamente consciente
de sua crassidade, se jactava inclusive. Quando eu ia te visitar Você
gritava: lá vem Fernando com seu circo armado, e eu sentia vergonha alheia
e Você se deleitava, hoje tem espetáculo? O mau gosto te deixava apaixonante
e o cultivava com devoção de velas.

Ninguém sabe como nos conhecemos. Nunca contamos, porque nos dava vergonha.
Tá, que ia causar vergonha, a Você ? Você que ia na padaria de camisola azul. Mas
a mim sempre me deu não sei bem o que ter que admitir que me tocava fundo. Essa vez
foi a única, e me surpreende pensar que o resultado foram todos esses momentos, incluindo isso
que escrevo.

Então, Vera, Você já era bonita como sempre, ainda que teu mau gosto
arrebentava com tudo. Sua maquiagem de puta e sua pequena tatuagem brega toscamente acabada. A cor da tinta. Meu deus, a cor da tinta não ornava com nada, nem com as coisas que não estavam nela, discordava de tudo num raio de dois quarteirões. Não sei quem falou primeiro, nem sei se é relevante esse detalhe, mas. Naquele momento não sabia que a recordação ia durar tanto, nem que ia ser tão importante. É sempre assim. Mas me agrada saber que foi Você quem falou, eu naquela época meditava cada palavra antes de falar, alem dos titubeios.

A segunda vez que nos vimos foi também casualidade, uma madrugada, no corujão, no Lapa. Me doía a orelha de tanto dobrar a cartilagem contra o vidro da janela. Foi ai que passamos a nós. Não sei muito bem como foi, mas Você ia com ele, e para ele sei que foi a última vez. Então eu volto ao começo.


Vera sempre que acendo uma vela me lembro de você.

1 de ago. de 2016

Carta a Bertha.




Liberte da gaiola
todos os passarinhos

liberte da gaiola
todos os passarinhos
vermelhos

liberte da
liberte da gaiola
todos os passarinhos
vermelhos
todos os passarinhos
verdes

liberte da gaiola
todos os passarinhos
vermelhos
que não estão na
liberte da gaiola
todos os passarinhos
verdes

liberte da gaiola
todos os passarinhos
que não estão na
liberte da gaiola
todos os passarinhos
verdes

liberte da gaiola e do aquário
todos os passarinhos e peixes
de mesma cor.

Liberte da gaiola e do aquário
todos os passarinhos que não estão lá
liberte da gaiola
todos os passarinhos verdes
e os peixes que estão lá
liberte do aquário
todos os peixes prateados
liberte a quantidade de passarinhos
na
liberte da gaiola
todos os passarinhos
cuja cor esteja na
liberte do aquário
todas a cores de peixes

liberte das cores
que estão na
liberte da gaiola
todas as cores dos passarinhos
e que não estejam na
liberte do aquário
todas as cores de peixes

liberte do livro
todas as linhas

liberte da gaiola
todos os passarinhos
que apareçam na
liberte do livro
todas as linhas

liberte do livro
todas as linhas
que comecem por a

liberte do livro
todas a linhas
que apareçam na
liberte da gaiola
as cores dos passarinhos
e que foram escritas por Você

liberte do livro
todas as linhas
que não estejam
liberte do livro
todas as linhas
porque uma pessoa que esteja na
liberte do universo
todas as pessoas

liberte do livro
todas as linhas
que nunca foram escritas

liberte de mim
todas as partes moles
que não estão na
liberte de mim
todas as partes moles
que tenha visto

liberte do planeta
todas as pessoas que estejam no
liberte do cemitério
todos os ossos

liberte das situações
todas as que me necessitam

liberte dos animais
a quantidade de gatos
que nasceram
e que são pretos

liberte das tardes
aquelas que se esqueceu
de carregar a bateria do celular

liberte das vidas
todos os casais que não se encontram

liberte das tardes
aquela que o mundo
foi ficando cada vez mais quieto

liberte das vidas
todos os casais que se encontram

liberte das cores
a que pinta a
liberte das coisas todas
as importantes

liberte das explicações
a que dá sentido a
liberte das vidas
as nossas

liberte das distâncias quilométricas
a que nos separa nesse instante

liberte das personagens
aquelas femininas
que estejam em
liberte das canções
todas que Você compôs
que foram amadas por
liberte das personagens
aquelas que realizaram
liberte das ações
a de se enrolar com fita violeta

liberte das teias de aranha
a que une a
liberte das meninas e dos meninos
aquela menina que seja a mais bela que
liberte do mundo
todas as pessoas
e aquele menino para o qual
não tenha nenhum
liberte das pessoas
aquelas que querem a menina
mais que menino a quer

liberte dos dias
todos aqueles em que
Você e eu nos vimos
e que o dia anterior
Você e eu não nos vimos

liberte dos fatos
aqueles que ocorreram em
liberte dos meses
aqueles de verão
aqueles que comecem por j
e que transcorreram em
liberte das fontes
aquelas nas quais se deram

liberte dos beijos
aqueles de Você e eu
que foram anteriores a todos os
liberte dos beijos
os seus e os meus

liberte dos espelhos
aqueles que refletiram a
liberte as pessoas
a Você e a mim

liberte dos lagos
os que apareceram em
liberte dos sonhos
todos os seus

liberte dos dias
todos aqueles em que
não estaremos vivos

liberte das palavras
aquelas que se dizem pouco
mas que signifiquem muito
e que representem
liberte dos sentimentos
os que sinta por Você.


29 de jul. de 2016

A importância de ser Mané.


(A importância de ser Ernesto)


Joana estava apaixonada por um português chamado Manoel. Viviam no primeiro andar, ao lado de um homem, ou uma mulher, cujo costume de deixar as janelas abertas a irritava. Como todas as manhãs se olhava no espelho, se lavava o rosto, media seu pequeno buço, saia sempre apressada ainda bebendo seu yakult. Tomava o circular, porque odiava conduzir. O escritório ficava a uns trinta quarteirões, mais ou menos. Na volta, aproveitava para fazer pequenas compras, jantava com Mané enquanto lhe contava coisas do seu dia de trabalho.
Nos momentos livres, reflexionava sobre a profundidade do oceano, que nenhum ser humano jamais viu, estranhava que se tivesse ido a lua, mas nunca ter ido ao fundo do Pacífico ou Atlântico; imaginava o mundo visto cada vez mais de longe, até que ela e Mané eram um ponto na cidade, a cidade um ponto na terra, a terra um ponto no sistema solar, o sol um ponto no espaço cheio de estrelas.
Lilian e Mané gostavam de ouvir música suave, bossa nova, e que fosse suave não era razão para que sua vizinha, ou vizinho, não se queixasse de qualquer modo, e o fazia com gosto. Outras vezes iam visitar suas irmãs em Pirassununga, ou comiam maçãs verdes.
Quarta-feira, recebeu um telefonema urgente no trabalho. Quem falava era uma voz feminina ou masculina, e lhe disse que havia escutado ruídos, e que ao que parece haviam forçado a porta e haviam entrado na sua casa. Ela, ou ele. Já se encarregara de chamar a polícia.
Então, Lilian correu, e nem sequer pode sentir o intenso cheiro de pão de queijo da padaria, nem saltar lajotas ausentes na calçada, nem sentir o calor exagerado que fazia no ponto de ônibus, que era um pau fincado, só lhe parecia uma coisa, o caminho era quatro vezes mais longo que sempre.

Já perto de sua casa, uns pedreiros almoçavam sentados na calçada, enquanto assoviavam e lhe dirigiam gracejos. Nesse momento começou a procurar no fundo da bolsa as chaves, mas se deu conta que a porta poderia estar arrombada, seu apartamento estaria todo aberto; foi quando divisou um policial e o senhor, ou a senhora, à espera na porta do edifício. Quiseram tranqüilizá-la, ela subiu as escadas de dois em dois degraus, e de cara o que viu foi que estava tudo remexido, a fechadura arrombada, e que sua habitação estava despojada de sua essência, Mané jazia no chão da cozinha.