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A
densidade que te dá um bom whisky é inversamente proporcional a que
te dá o mau. Com um belo copo nas mãos, de preferencia bocudo e com
um vidro generoso, daqueles que os dedos podem dar um apertão suave
e com isso sentir a consistência do que carrega. De cara há a
comunicação visual entre o conteúdo, que é o whisky, e o
continente, que é você mesmo, a ponto de tragá-lo.
O
âmbar do malte, que as vezes pode ser bem escuro, e que lhe concede
uma consistência, que sabemos fictícia, pura literatura do
espirito, mas que por momentos se espessa e se torna um bálsamo
pastoso, e curativo, primeiro inundando a boca depois fazendo
massagem na goela, descendo pela boca do estômago, o estômago em
si, depois. O visco do líquido, entre tosco e meigo, se é que isso
é possível, te subjuga com sua natureza selvagem, e te confirma a
forma com que pode te furar por dentro sem que possas enfrentá-lo de
todo, até o ponto que te corrige, e dita as vias pelas quais hás de
te inserir nele, mais do que o contrário, ele em você, porque
começa então o ritual da purificação, quer dizer, o ritual em que
os sacrifícios mútuos dão os seus frutos maravilhosos. Um bom
whisky, então, uma vez vencida esta conjunção enigmática, permite
embelezar a solidão, a companhia, a música, a paisagem interior, um
charuto ou qualquer coisa que te envolva, monumental ou falto de
brilhos.
Dizem
que o verão é péssima geografia para os maltes, porque o corpo não
está para calores, senão que para refrescamentos com uma cerveja,
ou um drinque gelado, mas a miúde havemos de combater o abatimento
pelo calor sufocante com mais abatimento, num exercício de abandono
consciente, como se atravessássemos o deserto sob um edredom, que de
certa modo nos protege do sol.
Sem
se deixar levar pelos excessos, para não nos saturarmos de
realidades longínquas da realidade, o whisky de gosto amadeirado te
proporciona um instante de desvelo, lucubração, de aterrizagem
lenta, de repouso imerecido, no meio de um mundo que pouco a pouco
passa do seu vertiginoso expressionismo a umas cores fixas e planas,
de linhas firmes, que imitam a natureza. Se chegar a cravar-te na
pele este quadro, então haverás encontrado um local para habitar, e
a alma do malte em ti, e não haverá nenhuma opção de perda.