21 de fev. de 2014

DesDeus!


Antes havia luz, não muita, a suficiente para iluminar os dias e as coisas. Era a luz de um branco fosco, que foi agarrando uns tons de pérola, nevoento, entre o cinza proletário e o cinza de risada malvada que as vezes baixa de algum lugar, de não se sabe onde, e senta no meio da gente, entre preguiça e orgulho, pronta a te abraçar. Ele não a notava, distraído como estava, a observar os objetos com a ideia que cada objeto era igual ao mundo, e o mundo igual que o objeto, sob uma naturalidade que de tão humana era quase animal.
Entretanto, anoiteceu, anoiteceu pela primeira vez, não sabia ao certo quando, em que instante ou de que maneira, mas havia vindo na calada da luz para se estabelecer lá, pelos arredores, para sempre, muda e impávida, com o gesto inconcreto e neres de cortesia. Como se a noite se soubesse escuridão e já não haveria de estar ali se demonstrando a ele. Esta primeira noite não era bem escura, não era toda escura, mais bem era fosca, um escuro fosco, que ainda se podia se ver e pensar-se nela, e se divisar no meio da própria escuridão. Reconhecê-lo nela, diria. Ainda que não distinguia de sua raiz os seus galhos, a semente de onde brotara e por onde se espalhava, e para aonde, e o local aonde por força haveria de morrer, sim, se movia como um traço grosso num quadro seco de cores, como um campo de neve com sua brancura branca e sua branca brancura a fazer espremer os olhos entre as pálpebras para sacar uma gota de mar, um mar profundo, como um espelho do mar profundo, como uma negritude quase-quase negra, como o fosco num quarto escuro, como a última alba antes da primeira alba. Assim aquela noite, chegou a ser o completo escuro, e já não podia defini-la, porque no labirinto da escuridão o labirinto se destruía e os caminhos desapareciam, os contornos se desfaziam, e o escuro já não era escuro, nem consciente de o ser, nem ele de ali viver, de viver ali abandonado e seguro, talmente um bebê voando sem pontos cardeais numa bolha de opaco liquido amniótico.
O escuro que já não era escuro, que era puro não-ser, poderia ser a ausência de tudo ou ao contrário, de todas as coisas comprimidas numa só, ele inclusive? Poderia ser a sabedoria de tudo ou, ao contrário, a ignorância definitiva, naquela em que tudo é possível e tudo pode nela recomeçar?

Lá onde estava, às foscas, tateando para se mover na devastada mente, tentando decidir a cor, a natureza, a resolução dos seus próprios pensamentos.  

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