Houve o tempo que os
caminhos se bifurcaram. Sempre os há. E porque nada é casual –
nem a roupa que assim se diz – mesmo o acaso que é casual
– para nós se torna causal, porque cria algo que nos modifica, ou
se modifica em nós – tem origem causal, pois pode inclusive ser hábito de uma pessoa, de um objeto e mesmo uma lei da natureza
que ignorávamos, por exemplo a gravidade, quando caímos pela
primeira vez.
A professora botou
uma gravura ou uma foto, Tengo Miedo não se lembra exatamente o
veículo que transportava a cena, pode que fosse uma folhinha bem
comportada, sabe que botaram aquela imagem frente a sua miopia, real
e intelectual, e sabe que era uma árvore com flores amarelas em meio
a outras árvores sem flores, e as árvores então, para Tengo Miedo
não tinham nome, exceto as frutíferas: pé de manga, pé de goiaba,
pé de maracujá e não havia quem o fizesse dizer tamarindeiro. Ele
era da roça. A natureza era o que tinha que vencer e o deixava com
as mãos calejadas e o nariz quase em carne viva pelo sol das tardes,
aos dez anos de idade, e as meninas bonitas da classe gostavam de lhe
dar as mãos, somente para depois se rirem de seus calos.
De uma feita, por
uma ictericia, frequentou o Hospital das Clínicas na Quintino
Bocaiuva em Ribeirão, e para lá chegar passavam, Tengo e sua
mãe, pela avenida Nove de Julho, e caminhavam desde a parada do
ônibus, pelo canteiro central, que na estação se encontrava
forrado de amarelo, com as flores das sibipirunas. Da imagem
oferecida na gravura agarrou o que o interessava: as flores
amarelas. Delas falou como se de um tapete de flores se tratasse e
por ele ele havia caminhado e aquilo o lembrara da procissão de
Corpus Cristhis. ( Que na Alemanha tem um nome divino: Maria voa ao
Céu. Maria fliegt nach Himmel, ou in den Himmel.) A professora lhe
deu nota baixíssima pelos erros de português, língua que não era
a sua, e, ela salientara, que fugira do tema. Tengo Miedo havia
saído, mesmo, era da gravura. A sorte é que sabia os tipos de
sujeitos que havia nas orações, e dependia pouco das redações
para 'passar' de ano, porque estas serviam justamente a ajudar aos
que não sabiam, tampouco o que era o sujeito. Filho de uma empregada
doméstica, Tengo Miedo trabalhava nos tomatais depois das aulas e
havia escrito que caminhara sobre o tapete de flores, quando os
outros diziam que no canto esquerdo havia uma árvore com flores
amarelas e se confundiam, já que era o direito da gravura em si.
Faz tempo que Tengo
Miedo tenta sair da gravura. Há tempos que sempre podendo e mesmo
quando não devia, elege a si mesmo. E em cada ocasião que assim
escolheu foi castigado. Pelo que, foi descobrindo que a liberdade é
dolorosa. Ainda hoje lhe dói a liberdade que não é apêndice, que
possa ser extirpado. Ainda que seja um orgulho inútil, sente essa
veleidade. O que não o faz um sujeito leviano ou irresponsável, já
que responde integralmente pelos seus atos. Está situado, posto
que sabe onde está e produz para viver desde a mais tenra idade. É
o que é e está onde nasceu, geograficamente, na terra, é sociável,
que onde passa busca deixar as pegadas de um homem livre, nos
limites, em que o sofrimento pela liberdade não signifique a morte,
seu único temor. Reconhece-a, sem urgência ou desespero, e espera o
mesmo denodo da parte dela, porque cada minuto é precioso. E agora,
daquilo que fizeram dele e sobre este veículo acrescentou camadas,
fazendo o que é, que é a base, o pedestal e se nele sobe é porque
são os próprios ombros.