15 de nov. de 2013

Ditado Aramaico

O senhor Leal vê pela janela do escritório, a calçada da rua aladeirada. Da secretária, sem mover um dedo, ademais de torcer o pescoço, assiste ao espetáculo da rotina. As mesmas caras, as mesmas pernas que se arrastam morro acima. Enquanto as mesmas pernas parecem escrever as mesmas letras, quando passam os pés vassouras sobre o piso irregular e sujo da calçada contígua aos escritórios e lojas. O senhor Leal vê tudo, mas o faz como se nada visse, como se pudesse, não se ver. Mas também vê. Vê como uma câmara oculta no teto. Olha o teto, a imagina, se vê socado na mesma poltrona, diante da mesma mesa, ao lado da mesma janela, diante da mesma pilha de papéis, na mesma empresa, água que alimenta um mesmo rio.
O senhor Leal sai para o almoço há trinta anos, ao mesmo canto de esquina, tudo que mudou foram os nomes fantasias do mesmo restaurante. Senhor Leal come qualquer coisa, com a mesma vontade indissimulável, sempre observando o trânsito da cidade. As tardes se alongam, mas o dia se desfaz, qual manteiga, os edifícios se inclinam sobre o asfalto a pegar uma moeda. Não sopra o vento, quando sopra, sopra lento e nem renova o ar. Simplesmente, parece que não sopra. O senhor Leal respira ele também sem grandes desejos, e de vez em quando sente como se uma espada lhe entrasse pelo nariz e chegasse ao fígado e o enregelasse por dentro, mas logo sente o bafo do asfalto que o reconforta, ali no escritório se reencontra com a eterna expectação, frustrada pela monotonia. O tédio é velho comparsa da sua vida silente, e ali é um tipo de bem-estar que o protege do mal-estar das realidades, emoções ou da ânsia de algo novo e belo do amanhã, da tristeza das esperanças mortas.

Quando senhor Leal chega ao apartamento, que o espera com a exata quietude, o apê o contempla a cara, as pernas e seus pés se arrastando a escrever palavras incompreensíveis sobre o carpete. Antes de ir dormir, o senhor Leal e o apê olham pela janela da lavanderia, como quem fuma escondido, a cidade que quer adormecer, mais um berço sem bebê, que uma cama desfeita. Na cama, o senhor Leal, esticado, antes não dorme, olha ainda o teto, que tem uma rachadura ao meio com a forma de um dito aramaico.  

Nenhum comentário: