30 de jun. de 2016

Quase inventei um reciclador de opiniões!

Quase inventei um reciclador de opiniões!


Andava a pensar, esta tarde, que o nosso problema são as velhas opiniões que lançamos por onde passamos. Há opiniões tipo k7, carro-de-boi, vela, preto é inferior, ser gay é uma viadajem, calça boca de sino, mulher gosta de apanhar, sutiã, tirar demônio do corpo, a terra é o centro do sistema solar... por ai vão emporcalhando os rincões mais recônditos do pensamento humano.
Pensei em inventar uma máquina para reciclar estas velhas opiniões (formadas sobre tudo) , dar uma lustrada, uma pintada, fazer uma patina e quem sabe vender como relíquia. Afinal, antigamente, uma bela coleção Barsa, na estante da sala dava um ar de ilustração, mesmo lá pras bandas de Fernandópolis. Quem sabe essa gente não esteja a precisar de umas opiniões restauradas como se tivessem sido o primeiro dono? Daria pra ganhar algum dinheiro. No entanto, logo conclui que seria de mal gosto, alguém luzindo a opinião de outro, opinião é como cueca, calcinha, não dá pra usar a de outra pessoa. Mudei de ideia, melhor dito, encontrei outra solução.
No princípio pensei em usar umas engrenagens platônicas que tenho, um motor aristotélico do tipo silogistico que deve estar em algum lugar, se minha mulher não jogou no lixo, com um catalizador hegeliano, um sistema de direção marxista e acessórios kierkegaardianos para transformar opiniões em verdades. Já pensou? Me perguntei, e sorri sozinho com esse pardalismo. No entanto, fui pensando mais, mais pensei,que afinal, se acabássemos com as opiniões, acabaríamos com tudo que é humano. Não haveria mais discussão de natal. Discussão de relação. De futebol. De política. De nada. Então, desisti dessa máquina de transformação. Afinal iria transformar todos em máquinas, sem opiniões, só verdades, e não é esse o meu interesse maior. Porque gosto de me aferrar às minhas opiniões, meus símbolos e crenças.



Colchões sob Medida. Conto.

Colchões sob medida.
Enquanto matava o tempo até chegar a hora da consulta na dermatologista, que de quando em quando visitava, duas a três vez ao ano, por vezes lhe fazia um peeling e tirava pequenas marcas do rosto, passeava pelo calçadão. Se sentia bem não fazendo nada, observar pessoas, ser observada, com reserva se dizia, ela própria naquele vai-e-vem de gentes, seus rostos, todos carregamos nossos fardos, pensava. Os mirava relaxadamente, agora era tudo o que tinha por fazer, à tarde tudo exigira mais pressa, mais seriedade, beleza sobretudo. Na empresa haverá a apresentação de um novo produto. Por isso aproveitou para cuidar da aparência. Entre um pensamento e outro, se fixou na grande vitrine de uma loja de colchões, que tem à sua frente. “Colchões sob medida”, pronto, acabou o sossego. O colchão do Guilherme está pequeno para ele, talvez fosse hora de um novo. Ela entra decidida na loja, da qual só sabe o nome, “Colchões sob Medida” e ela precisa de um. Um jovem lhe pergunta que medida gostaria; ela diz que um de um metro e noventa.
A loja está em reforma, tudo bastante desordenado, por culpa da reforma, parece. O atendente pede que ela espere uns minutinhos, antes de conduzi-la a um grande escritório, sem rastro de colchões. “O gerente lhe atenderá, em seguida”.
Ela acha estranho, e quer esclarecer, só precisa de um colchão, não se trata de compra no atacado, só um colchão de solteiro, para uso particular. O atendente lhe deixa um sorriso de cumplicidade, como quem diz: estou a par.
Os minutos passam e a situação lhe parece mais surreal, decide ir embora. Vai em direção à porta, e justo agora entra um jovem, sorridente, atrativo, bem vestido, e se apresenta como Carlos. Muito mais alto que ela, e porque não dizer, ela o olhou fixamente, olho no olho. Com um gesto elegante, a pegou pelo antebraço e a conduziu a uma sala contigua; ela acreditava ser o depósito, o armazém. A sala, muito bem decorada, ali sim, havia um grande colchão de casal, coberto com uma colcha de Ibitinga, bem bordada, tudo para os clientes terem uma noção concreta de como ficaria em sua casa, se diz. Em todo lugar é a mesma coisa, mas ali não, têm muito bom gosto; meia-luz, livros espalhados; todos sabem ninguém lê, mas gostam de ver livros espalhados, um senão, talvez, um excesso de cenografia. Enquanto ela dava conta de tudo, o jovem trancava a porta atrás deles; tirou o paletó, tem aquecedor, disse, enquanto a ajudava a tirar o casaco que levava sobre o vestido, sempre que a temperatura baixe de vinte graus, que dizem, lhe caia bem.
Fique à vontade, ele disse, num tom nada comercial. Ela não entende a mudança de atitude dele, lhe parece tomar umas liberdades não cabidas a um vendedor de colchão, de solteiro, creio que ficou claro, um colchão de solteiro para meu filho Guilherme, lhe repete enquanto ele estende uma taça de champanhe e a leva para sentar na cama. Ela dá-lhe um chega para lá, isso já é demais, a coisa toda é muito ridícula. Ele, supostamente, está acostumado à situações como esta, e não se imuta e sugere, amavelmente, insinua, sutilmente, que talvez, ela prefira ir a um outro lugar, um motel, discreto, é isso?
Sua cabeça gira no meio de um grande caos. Estava cega? Que merdas fiz para estar no meio desse redemoinho? Me deixei seduzir? Ofendida e cheia de raiva deu-lhe um empurrão e o atira de costas sobre a cama, freia os primeiros impulso, porque de subto teve medo. A situação é tão absurda que se vê encurralada; é conveniente quebrar os cercos o mais rápido possível. Com a serenidade ausente, recupera a calma e o casaco. Ele a olha sarcasticamente. Ela não quer fingir, e com sensibilidade, quase cordial, confessa que não quer parecer boba, tenho a certeza que se equivocou, um mal-entendido, apesar do bom começo, ratifica, que não é o que ele pensa, talvez se havia precipitado. Realmente, entrei aqui para comprar um colchão de solteiro para meu Guilherme, que nos últimos meses deu uma espichada considerável e os seus pés ficam fora da cama. Entrei atraída pelo nome, sobretudo, porque me chamou a atenção, sem malícia, sem ver nele um duplo sentido, havia? Desculpe o transtorno. Ela fugiu sem esperar resposta. Aturdida e atabalhoadamente, ainda foi à consulta, na sala de espera tomou água a goles pequenos, saboreando como se fosse um elixir, tombada sobre a maca do consultório, adormeceu, agora respira ofegante como se estivesse numa relação sexual. E se não tivesse fugido? A dermatologista a desperta com gritos e pequenos beliscões.


Domingo

Domingo.
Sentado ali na minha poltrona, com Ão ronronando conivente, explode no que em mim pensa, a frase do livro; "Se procura a verdade,prepare-se para o inesperado, porque é difícil de se encontrar, e quando se a encontra, sói ser desconcertante". Mais uma vez Heráclito me surpreende, memorizei algumas frases, num tempo que as lia com afinco; sempre tentando encontrar o que nelas se ocultava. Bem acomodado naquela poltrona domingueira, deixo andar as folhas suavemente sem as ler,  diante da lógica que nenhum homem pode nadar no mesmo rio, porque nem rio nem homem serão os mesmo na segunda vez que coincidam. Creio sempre no mesmo rio? Sou ou não sou sempre o mesmo? Onde reside a verdade? Quero, de fato, encontrar a verdade. Que é a verdade e quem a possui?  Os domingos podem residir nisso. Abandono o relógio que me controla noutros dias e me entrego à virtude de vagabundear, não fazer outra coisa que coçar placidamente sem me fixar em nada,  enquanto o urubu voa lento, sem destino, como uma gota de suor escorre desde o sovaco. Bem sentado nessa poltrona, bebendo uns goles de heineken, sem TV, ou qualquer outra voz a me informar que o mundo está prestes a explodir e ninguém sabe remediar. O domingo é meu espaço para a ignorância, alienado do mundo, longe do populismo barato, dos rançosos, dos oxidados, dos vomitivos, fechar os olhos e o silêncio... Que vida sem interesse é essa? Não sei. Sei que a vida que vivo ali sentado na minha poltrona é o universo que quero me perder.

29 de jun. de 2016

Sorte.

Nos primeiros tempos, se levantava, fazia a barba, se duchava, se vestia alinhadamente, pegava a pastinha com seus currículos, enfrentava filas, despachava currículos pelo correio. Voltava para casa. Esperava um toque do telefone. Um e-mail. Um torpedo. Sentava-se no sofá e via televisão. Então começou alternar, dia sim, dia não ia distribuir currículos. Voltava para casa e via televisão. Já não ia distribuir currículos. Foi perdendo a vontade de comer. Foi perdendo a vontade de se barbear. Ficava em casa. Vestido com seu moletom. Sentava no sofá. Esquecia de ligar a televisão. Esquecia de comer. Um dia bateu a sorte à sua porta. O encontrou morto.   

Medo.

O Medo.
Tenho medo. Reconheço que tenho medo. Digo em voz alta: Tenho medo! Tenho medo! Tenho medo! Quer saber do que tenho tanto medo? A tudo. A mim mesmo. Do vizinho. Do cachorro do vizinho. Do som do vizinho, que estraga minha sesta. Tenho medo que morra meu gato. Tenho medo que morra a orquídea que paguei caro. Tenho medo que a mulher do vizinho não encontre trabalho. Tenho medo que o buraco em que se meteu este país não tenha fundo. Tenho medo de que os políticos parem de roubar e só sejam incompetentes. Tenho medo de que os juízes não sejam melhores que os policiais. Que os policiais não sejam melhores que os bandidos. Que os bandidos não sejam melhores que eu. Tenho medo. Só não tenho medo de quem chora. Deste tenho dó. Como diz a canção. Tenho medo da canção que não conheço. Tenho medo da Rita Lee. Tenho medo do Belchior. Tenho medo do Gabriel pensador.

Mas o vizinho vendeu o som do carro. Sua mulher arranjou emprego. O buraco do país é mais embaixo. É túnel sem fim, sem luz. Os políticos continuam roubando e incompetentes. Os juízes não são melhores que os policiais, que não são melhores que os bandidos, que não são melhores que eu, que não sou melhor que ninguém. Não ouço mais canções. Não ouço a Rita Lee, o Belchior. Gabriel pensador não pensa. Grande é a merda. Tudo sei que é. Perdi o medo de ter medo. Só sinto medo. Medo. Medo. Medo.  

Conto vomitivo.

O Vômito.


Às vezes tenho vontade de vomitar. Vomitar muito. Muito. Um vômito espesso. Em cachoeira. Em rio caudaloso. Cheio de grumos. Grumos tão grandes que não passem pela minha  goela. Um vômito que encherá a sala onde estou. O corredor. A sala de estar, sempre vazia. A casa. A rua. O bairro. A vila inteira. O ribeirão Preto. O rio em que nele deságua.  E essa vontade imensa de vomitar tanto e continuada, e exagerada, que às pessoas que estão nos quiosques, nos food trucks, nas cadeiras nas calçadas, nos bancos dos jardins, no semáforo, enfim, lhes deem vontade, também, de vomitar, de vomitar em grupo, todos juntos. Gritamos e vomitamos. E quando tudo estiver emporcalhado pelas nossas vomitadas, estaremos, por fim, limpos.  

28 de jun. de 2016

Apolo XI.

Apolo XI.

Fui criado na rua larga, onde as guias eram as traves para jogar bola. Na rua passávamos a noite tomando a fresca, os adultos bem sentados em cadeiras, bancos e a molecada correndo para cima e para baixo, a estrada e a velha estação da Mogiana, lá no fim da descida da rua da Igreja eram os nossos limites. A luz mortiça dos postes nos propiciavam conversas a voz baixa, novidades, piadas, desgraças se compartiam, enquanto pelas janelas e varandas fugia o calor acumulado nas casas durante o dia.
- Vaga-lume tem tem, seu pai tá aqui, tua mãe também e corríamos com um tição em brasa na ponta, rodopiando no ar, traçando círculos que sumiam na noite, só voltariam a aparecer quando fechasse os olhos para dormir.
- Um dois três... Migrilo, Tigriça, Toin podem voltar, eu vi quando se mexeram.... Protestos, discussões... a brincadeira voltava a começar, e quando alguém se metia na rua, a mãe da rua o tocava... tocou, não tocou... Se nos cansávamos, íamos para as escadarias da igreja a contar histórias, mula-sem-cabeça, mãe-d'água, mãe-da~lua, o Pe Canuto; o medo invadia pouco a pouco e cruzávamos as árvores do pequeno bosque, pisando leve, mas se alguém pisasse num graveto, e ele quebrasse, o barulho nos fazia correr, de por o coração pela boca.

- O pai do Zé Luiz comprou uma televisão! Sim, compraram uma igual ao do seu Humberto Toni. Na hora do recreio a noticia se espalhou pelo bairro, e logo depois da janta, veio gente até do morro do Canequinha, o Barbuzano. Cada um trouxe sua cadeira, o pai do Zé Luís botou a TV na varanda. Aquela noite soube do calor que fazia no Rio de Janeiro, suas praias, vimos Bonanza...
O pai do Zé explicou que comprará a prestação, no carnet. Em poucos meses quase todos tínhamos nosso próprio aparelho, fomos substituindo as cadeiras, os banquinhos na calçada pelo sofá, a mesa do jantar, pelo sofá, e as conversas sussurradas pelo psiu, ” Assim não posso ouvir o que dizem”.

Enquanto víamos ao vivo, cada uma na sua casa, a chegada da Apolo XI à lua, morria a dona Isildinha. Ninguém sentiu sua falta antes da manhã do dia seguinte, quando ela não saiu para varrer a frente de sua casa.Apolo XI.