29 de nov. de 2011

O traumático caso do porquinho da Índia, donde Antônio Niterói, se descobriu um detetive com a morte de um poeta que começava o desabrocho..




De tudo o que sabia Antônio Niterói em seus onze anos de idade, era que se dependesse de algum acontecimento, que por sua vez não dependesse de sua ação, ele não aconteceria, por lhe ser alheio. Dito de outra maneira para Antônio Niterói a sorte não existia, mas muito corriqueiramente o azar não faltava. Como acontece no caso do porquinho da Índia que havia ganhado do tio Farias. Como havia ficado combinado iria com sua irmã buscar o casal de porquinhos naquele sábado pela manhã. Escolhera o caminho que passava diante da casa de Neide. Antônio Niterói previa que justamente quando passasse diante da casa, Neide estaria dentro da casa, e não o veria, nem ele a ela que era o que a ele mais importava, vê-la, pois o outro dependia muito de Neide. Neide não estava dentro da casa como previra Antônio Niterói, mas estava agachada de costas para a rua. E nem o fato de estar assoviando a canção O Bom Rapaz de Wanderlei Cardoso, adiantou. Ela continuou agachada de costas para rua.
Na casa de tio Farias, chuparam jabuticabas e manga espada, e ficaram com os dentes cheios de cabelos de manga, e Antônio Niterói limpou o sobre lábio na manga da camisa, deixando-a amarela, coisa que lhe renderia um belo puxão de orelha mal chegar em casa, de resto tudo correu bem, os porquinhos guinchavam, mas logo se acalmaram com uma folhinha comprida de capim-gordura. Já a meio caminho de volta, sua irmã que o acompanhava, notou seu entristecer, e quando ela quis saber o motivo, já que ele queria tanto os porquinhos da Índia, por haver lido um poema, que eles eram tímidos, e que não sabia o que era ser tímido, mas logo a professora explicou e ele havia entendido que os porquinhos eram absolutamente iguais a ele, ele se escondia debaixo da cama. Quando a irmã insistiu, Antônio Niterói chorou. Presumia que quando passasse diante da casa de Neide ela estaria no portão e iria lhe pedir um dos porquinhos e ele iria acabar dando um deles e foi o que ela fez e ele timidamente lhe estendeu um que era pedrês.     

Modorrentos uni-vos.



        A letargia é um sono anormal, profundo, contínuo; onde a respiração e a circulação parecem suspensas. Quando perguntamos ao ser e por ele; acometido de letargia, suas respostas são vagas, e este não se desperta para as responder, nem guarda recordação, alguma, se despertado. Isso é definição que se encontra em dicionários, e  para arrematar, buscando pela sinonímia, a coisa aponta para a ideia de inanição, indiferença, modorra, indolência extrema e apatia.
         A modorra é coisa parecida à hibernação, quando as condições climáticas são extremas, os ursos hibernam. Há um particípio, muito bonito, que é aletargado, do verbo aletargar e há ainda: amodorrar, que está entre os paralelismos e simetrias acima, e ainda,  e também há, o, aferrar-se ao ... letargo.  Em qualquer caso, temos aqui um belo embornal cheio de conceitos, como queria o Arcebispo Tilotson,  com os quais as vezes penso em descrever o estado de choque em que se encontra, parte da,  nossa sociedade civil. 
         Muitos de nós há alguns anos, dez, vinte, trinta anos, estávamos bastante despertos, coisa oposta a esse letargo, éramos  esquerdistas alegres, festivos e orgulhosos em ostentar tal esquerdismo, ainda que verossímil e literário, cresciam pelos cafonas no sovaco das meninas, meio maoistas, meio marvada carne cheguevarista: hay que endurecerse pero perderse la ternura jamas, paredón y besos,  stalinistas disfarçados em batas indianas, e tiracolos em couro cru trançadas em ombros trotskystas interessados em Andrè Breton, o futurismo de chinelinhas de couro em  Mayakovystas de folhinhas linhas zibelinhas libelinhas sozinhas, Wilhelm Reich no escuro para comer a Aninha, o formalismo de Jakobson, bebo coca cola, babo coca cola, a poética Brechtiana und so weiter, inocentes e culpados, lírios pirados, irresponsáveis, ignorantes em Das Kapital, Ideologia Alemã, do Anti-Durhing, Heiliege Familie, a os fatos se repetem, hizuzufingen, tragédia e comédia e pornochanchada  e Was tun? Quehacer ? Quefazer ? 

                      " Faça Tudo, tudo mesmo, menos permanecer aletargado". 

         Em  dias de hoje a mídia, a grande e a infinitesimal, dia sim outro também, nos agouram. Os meios, ditos: médias, são verdadeiras encruzilhadas, com suas marafas, galinhas mortas, velas vermelhas e pretas.
Custo a crer no que vejo, se não fosse pelo abatimento dos valores acima assinalado, nós que sempre propusemos a cabeça erguida,  contra o: " come ananás e mastigas perdizes" dos neófitos, não temos coragem de alçar a nossa "acima da manada".
          Não podemos deixar na mão de um “fascismo” incipiente ou encanecido (sim, com certeza, o exagero é meu, meu caldo é exagerado e transborda), por uma burra direita, claro que pode haver dela e nela coisas lindas e melhores ideias das que temos visto, mas não podemos estar  amortecidos e torporizados. Somos nós que devemos dar o passo adiante. Posto que, nas mãos deles, volta-se sempre a uma doença cronica, o golpe.
          A decadência da economia familiar, se alastra pelo mundo, e paradoxalmente, isto é, assemelha aos incautos que o seguinte faz oposição, mas é coisa que encerra o seguinte: o fulgurante progresso de certas economias privadas,  e a corrupção. Tudo fazendo supor os primeiros degraus rumo à decadência moral e por conseguinte a um meio hostil, que tão só alimenta o exercício da individualidade, que sempre nos chega como: fazer sacrifícios. É esta prática, cínica, sabemos por experiência, e sempre desemboca, tão somente, em sociedades caducas e condenadas ao fracasso, e a extinção de direitos,  por extrapolação, que é de onde viemos e partimos e não queremos retornar. Chuta que é macumba! E um passo adiante, no processo de libertação...


24 de nov. de 2011

O espantoso caso de sumiço de um rapaz, resolvido com a portentosa intervenção de Antônio Niterói..



               Uma janela imensa, o bochorno, a toalha úmida descartada, por seca, o ventilador em seu pendular movimento que Antônio Niterói decifrou pelas oladas de ar quente, de uma longínqua combustão. Dormiu, sonhou e despertou, espetado nos olhos por um raio avermelhado de sol que cruzou a colcha, que interpretava a cortina, numa grande janela de uma hospedaria que dá para a José Bonifácio. Com um salto se pôs sob a ducha, onde lavou sua regata amarelada. Fez gestos espaçosos, não alcançava nem o chuveiro, por sua mediana estatura, como os acidentes que vira e mexe lhe ocorriam no apartamento anterior. Passou pela cozinha, onde Sebá tinha um belo café da manhã, sem se interessar. Caiu na rua e esquecido do sonho, que poderia lhe orientar na solução de um caso, advindo em um sonho anterior. Esquecido, sonâmbulo, parado na calçada em meio o vai e vem de funcionários retirando motos das lojas, para estacioná-las junto ao meio fio. Voltou para a cozinha, onde encontrou Sebá a ler o jornal A Cidade, que trazia a história de um jovem desaparecido.
                   A claridade do dia apenas se anunciava através da colcha vermelha que ocupava o lugar da cortina, na grande janela da hospedaria do Sebá, na esquina da José Bonifácio com Mariana Junqueira, onde a princípios do seculo XX fora um pastifício de fama regional, e o alarme do celular de Antônio Niterói disparou. Envolto em uma toalha úmida e vestindo uma camiseta regata branca, surrada e encardida, pois junto com as cuecas era lavada sob a ducha, Antônio Niterói, tropeçou no ventilador. Depois da ducha reconfortante, no espaçoso banheiro, calmamente desceu as escadas que davam à cozinha, onde Sebá já havia disposto as delicias de um café da manhã, sobre a mesa, uma frugalidade comparável a do Grand Hotel.
            - Novidades! Disse Antônio Niterói interpelando Sebá, que calmamente lia o jornal A Cidade.
            - De sempre, estão acusando o Palácio Rio Branco de vender sorteios da COHAB, e o garoto?
            - Ah! Por falar nisso, onde anda aquele seu celular não identificável ?
            - Está aqui! E para variar tem pouco crédito, você vai falar muito?
            - É rapidinho, vou resolver essa história.
            - Não sei qual o seu interesse, você nem foi contratado para isso! Disse Sebá. Era só para se manter em exercício, que Antônio Niterói se envolveu na busca de Cezinha. Cezinha estava desaparecido a dois dias ou três dias.             A família sem noticias do rapaz. Os amigos fazendo correntes pelas redes sociais. A policia procurando e Antônio Niterói investigava.
Antônio Niterói ligou para Salmora, um Civil, amigo dos tempos de corretagem.
            - Então Salmora, descola o número de telefone da família do sumido.
            - Sem palhaçadas hein! Niterror! Veja lá o que vai fazer!
            - Chi! Sal! Quando foi que... bom, esquece, pode confiar! Eu sei que você confia. E preste atenção, em vinte minutos te ligo! Não foge não, você vai gostar!
Sebá se comia de curiosidade e Antônio Niterói não lhe adiantou nada, tão só lhe disse que ficasse atento àquela façanha.
           -98801815. tu!tu!.. O telefone chamou por quatro vezes antes de ser atendido, por uma voz de mulher. Uma voz de rouquidão suave e matinal. Era sim a mãe do rapaz sumido.
           - Então madame quero que a senhora preste bem atenção. Tamo aqui com seu filho. Somo uns cinco, sabe é um sequestro, tamo querendo deiz mil cada um, pra devolve o garotão.
Eva a mãe de Cezinha, começou a rir um pouco nervosa, havia recebido vários telefonemas, inclusive de gente que o havia visto em Blumenau ou Fortaleza, mas nenhum nem suposto sequestrador.
            - Num ri não madame! Se a senhora quiser eu mando a ponta da orelha dele, com essa argola de txucarramãe que ele tem na orelha. Eva exalando espirituosidade lhe disse, que os txucarramães usam argola no lábio e não na orelha.
            - Do jeito que senhora quiser, então a gente mandamos os dois, o lábio e a orelha, e se as coisa sair errado, num for como nós combinar, nós picamos ele tudo. Escuta direito. Tá escutando né! Então leva o dinheiro no bar verde da Zé Bonifácio. Deixa tudo lá com a Maiara, não fala o que é não! Aquilo é mais bandida que nóis! Tá me entendendo? Até meio-dia! Tá combinado? Eva ficou temeu, nunca se sabe, e esse bandido sabe o telefone de minha casa...
            - Ô mano! Que combinado que nada! Pensa que sou boba é! Meu filho tá em Buriti...
            - Tá em Buritizal, Sebá, tomando banho de cachoeira nas furnas!

22 de nov. de 2011

Antônio Niterói. Calor. I.




Metido dentro de uma camiseta regata que há tempos deixou de ser branca, encharcada de suor, e mais nada, Antônio Niterói, tenta diminuir o calor que sente, voltando a dormir com os pés para os pés da cama, afasta as pernas, abre os braços, que a barba cerrada, por fazer, magoava. Decifra o vai e vem do ventilador pelas ondas de ar quente que espalha, vindo de alguma combustão; lhe vem em meio aquele torpor a publicidade logo à entrada da pensão familiar, que Sebá mandou fazer: “bota ai moço, no cartaz” - ar climatizado - e Antônio Niterói, sem mais poder, sorriu para a câmara imaginária que se fechava em seus lábios, não farei desse pinico o meu elmo, se desfez da toalha molhada que antes lhe cobria o tronco para se refrescar, já quase seca, ainda pego um resfriado e como sou azarado ela logo vira pneumonia. Espera que o cansaço ou o torpor ou ambos o façam adormecer para que lhe ocorra em sonhos uma saída.
De tanto girar na cama, como um catavento, Antônio Niterói dorme profundamente. Sonha. Gesticula mantem larga discussão, pessoas próximas dele, pois parece haver entendimento, nos seus sinais. Repete alguma vez a palavra sossego, guturalmente. As pupilas se movem por debaixo das pálpebras. Por fim a calmaria. Um ronco, e engole a última ostra, lambe-se os lábios. Sossego diz numa ventriloquia. Assossegado, ele dorme profundamente.
Um raio do sol nascente penetra através da colcha vermelha, que faz de cortina da grande janela, que dá para a esquina da José Bonifácio e Antônio Niterói desperta. De um salto vai para o banho. Pé direito alto, janela imensa com plásticos substituindo vitrais, dando ao pátio interno. Da ducha, faz seu o purgatório, demora-se, amolece a barba, barbeia-se. Ainda se compraz por ter esse quarto de banho tão amplo. Onde viveu, casado, sendo de estatura mediana batia com as mãos no teto, no chuveiro, derrubava o xampu da cestinha de inox instalada no canto do box, com a toalha ao passá-la das costas para o peito. Compenetrado nessas delicias da amplidão se vestiu e passou voando por Sebá,
- Nem café homem! Nem café, nem papaia, cigarro. Salta degraus. Está na calçada, o sol já sua, as motos, à venda, já invadiram o meio-fio. Antônio Niterói está decidido, tem rumo, tem direção, mas antes de alcançar a Saldanha Marinho, vacila, o sentido lhe escapa, para onde? Olha para trás e como quem procura dinheiro em bolsos vazios, vasculha a memória, vem e não vem, então lhe ocorre, que o último sonho era a solução do primeiro. Dobra-se e bota as mãos nos joelhos como um fundista depois da fita.
Quando volta a hospedaria, na cozinha à mesa com Sebá, lhe explica a anedota.
- Você virou detetive até em sonho. Mas qual o problema do primeiro e a solução no segundo sonho? Perguntou Sebá. Antônio Niterói que tomava café e soltava argolinhas de fumaça, que se confundiam com as partículas suspensas, que refletiam os raios de sol, assim continuou, com um vago sorriso somado, Sebá abria o A Cidade e lhe mostrava o caso do rapaz desaparecido.    

21 de nov. de 2011

Sesta.


Meu avô, imigrante espanhol, subiu a Serra do Mar ouvindo mares de uma concha vazia, trabalhou nos cafezais da região, fez tantos filhos quanto aguentou dona Vicentina. As famílias eram de alguma forma, a pior, uma empresa. Deixou a “colonia” com uma mão atrás a outra segurando aquela, cabisbaixo virou tomateiro, e com ele, todos, nós da família. No verão constrangidos, afogados, engasgados pela rareza dos ventos de viração, - bochorno dizia o galego – e alguém gritava “hora da boia” e dormíamos depois do almoço à sombra ou nichos dela, donde fosse, esticados na sua profundeza virgem e fresca, um tipo de morte ressuscitável.
 Aqueles dias, faz mais de trinta anos. Era menino, por tanto, fiz muita coisa secreta e diabólica, mas como era católico, purguei tudo com avemarias e padrenossos respectivos, sem nunca ter rezado o credo. Este deve ter sido inventado para cristãos novos. Depois fui trabalhar em Ribeirão, era office boy. Ia e voltava de Benelli em menos tempo que hoje, e incrível que possa parecer, a estrada melhorou, os ônibus melhoraram, a distância é a mesma, mas tardo mais.
A ideia de ir trabalhar a Ribeirão não foi minha, era tempo de criança não expor ideias, não me importando hoje de quem a teve, era para se ter uma vida melhor, menos pó no sapato, menos sol na cabeça, mais asfalto, datilografias em vez da enxada, dita caneta, duplicatas, ampliar horizontes e banir as sombras e o “papo pro ar” nas horas sagradas do descanso. Tudo quanto sacralizávamos o cigarro de palha, o caldeirão de comida, embaixo feijão depois arroz, um ovo frito e um naco de porco da conserva perdeu seu espaço. Andei terra, cruzei mar e não vi e não vejo como obter melhores sonos e sonhos, que às sombras de tamarindeiros, laranjeiras, mangueiras, ingazeiras e a moringa de água fresca e o “ Acorda, vamos agarrar! ”





20 de nov. de 2011

O Perfume do livro.


Nada se perde, tudo se transforma, evapora, esfarela, desmancha, perverte, menos o cheiro. Tinha um amigo, quer dizer ele não morreu, o homem está lá. O que cresceu e se tornou um biombo intransponível, nossas diferenças. As diferenças sempre existiram, mas não tinham a estatura das compatibilidades. Enfim, coisa que lembro do amigo é  que apreciava o cheiro dos livros, assim que o tinha entre mãos, o abria e o cheirava, fosse novo ou velho, e o fazia com tamanho entusiasmo que provocou em mim o mesmo hábito, hábito que perdura em mim como louro de uma velha amizade, e o cheiro, sim o cheiro de um tempo, de um rapaz abrindo um livro novo, querendo cheirar as palavras... perguntando pela sua essência.
Quando menino ao livro novo acabado de comprar, arrancado de entre os de sua espécie exalando o cheiro do tempo feito de papel e tinta, acrescentava o cheiro do plástico com o qual o forrava para que sobrevivesse até o fim do curso. Outro cheiro do tempo é feito de pó do livro velho, que resgato do esquecimento, em um sebo, talvez resgato uma voz, que quer dizer coisas e estava calada.
Tudo é. Aromas. Olores. É a alma dos sólidos. Todos nos pertencem por depender de nossa memória. O perfume do café flutuando pela cozinha, ocupando a sala, é uma conquista pessoal, inconsciente, única e presente, mas desde já com ares de passado...
É possível que ao buscar pelo perfume das coisas desconhecidas, me depare com odores insuportáveis, mas é risco que prefiro a um mundo inodoro... continuo a cheirar os livros.  

18 de nov. de 2011

Quando a música começa.

Trilha sonora de uma vida que não é a minha.


Tengo Miedo acabou sendo poeta, mas de igual maneira poderia haver triunfado como pianista. Desde jovem o solfejo o atraia tanto quanto as redondilhas. Publicou no jornal A Cidade no caderno de Resenhas de Concertos com critério e sensibilidade.
Uns quantos de seus compositores preferidos ( Handel, Zequinha de Abreu, Couperin, Villa-Lobos, Mozart e Pixinguinha) e instrumentos como a arpa, o alaúde ou a requinta aparecem nos seus poemas – em títulos como “Soireé” na Praça XV ou Serenata no Coreto - clara alusão à praça 7 de Setembro, Serenata de Câmara - onde há uma concentração quase barroca de metáforas musicais. Sem dúvida, a mais inspirada, a joia, a que equipara a morte ao silêncio : “ quando a música começa”.
Me despedi de seu irmão mais moço, Deoclécio, com o silêncio de chumbo que se seguiu ao Tico Tico no Fubá. Teria também me agradado se tocassem Trenzinho Caipira durante o funeral ou alguma balada de Edith Piaff ou Ray Charles ainda Trio los Panchos, que foram as vozes entre tantas de alguns dos chansonniers que amenizaram os anos centrais de sua vida no exílio, primeiro em Santa Cruz de la Sierra depois La Paz, por fim Barrinha mas antes Jardinópolis. Podia ser alguma melodia, alguma zabumba e um sininho que o fizeram alguma vez dançar com Raimunda, que já o espera a tempos.
Faz uma semana ou menos, recebi um telefonema de Deoclécio. Ele me dizia que lendo as minhas postagens na rede, deduziu que a música não era minha paixão, tara, e que havia uma lacuna no meu passado musical, justamente, por não haver sido dono de uma qualquer discoteca. Consenti. Então me ofereceu a coleção de discos, que Tengo Miedo foi acumulando ao longo dos anos e que não poderia levá-la para seu apartamento, onde sua mulher disse que não cabia, pois a decoração era prenhe de um outro conceito, mais moderno. Novo conceito. Pardelhas! Disse e aceitei, também pela honra de ele haver pensado em mim – inda pareceu inadequado recusar - e curiosidade, nem tanto para meter a agulha, de meu velho toca disco Gradient sobre o surco espiralado do bolachão.
Ainda pensava aonde guardar tamanho tesouro, quando ouvi que batiam palmas, era Deo com centenas de long plays amarrados entre tiras de pano, outras centenas na mala de couro, cheia, de não poder fechar o zíper completamente. Pensei em passar alguns para CD, em montar o toca discos, encher o pen drive...
Resta mesmo é a curiosidade de descobrir que música, Tengo Miedo, ouvia para acompanhá-lo nas horas de leitura, por exemplo; quando se trancava no escritório a pensar em redondilhas, em Raimunda. Agora tenho em casa a trilha sonora de uma vida, que não é a minha. Clássica, ópera, bastante jazz, crooners como Sinatra e Nat King Cole. Ray Charles todos. Trio Los Panchos, Índios Tabajaras coisas do exílio paraguaio. A “chanson” francesa representada por Edith Piaf e uma pequena joia, um álbum duplo de Rina Ketty, J´attendrai que por certo Tengo Miedo ouvia enquanto lia pela milionésima vez os versos de Fernando Pessoa: A Tabacaria.