15 de jul. de 2013

Hospital.


No hospital, as caras se amontoam a tua frente, enquanto passa, e ao mesmo tempo aquelas caras veem a tua. Mais que caras, arquétipos de dores, gestuais de dores, uns buscando algo firme, seguro que os salve por um instante, outros abandonam-se ao abismo, cegos, quase salvos, que de tão sós só podem recorrerem a si próprios, lá na sua verdadeira e grande verdade. As expressões surgem do nada ou de toda parte, gemidos igual balas num tiroteio, parece que em qualquer momento podem te saltar encima, no tráfego petrificado de uma sala de espera, ou num corredor deserto de um andar silencioso, saindo de uma porta entre aberta de um quarto todo branco e azul celeste.
Os visitantes e os doentes percebem na pele os procedimentos do trabalho, enquanto os profissionais, já imunizados à maioria das circunstâncias adversas e corriqueiras, procuram fazer seu trabalho alheios a estas manifestações, desta novela final que é um indivíduo no seu extremo mais íntimo. Não há intimidade, mas. Paradoxalmente, quando o homem se encosta ali, para ficar ali, na antessala do seu lote final, quando aquilo que é e foi se dilui e se transforma, subitamente na consciência, no que está a ponto de se tornar ou poder ser, é quando menos tem a possibilidade de manter-se firme na sua intimidade, ou seja a sua capacidade de se expressar dentro do âmbito pessoal da existência, num cenário que não permite dispor da própria liberdade para se tornar mera ferramenta de um sistema superior, que o cataloga e o enclausura. '' - qual é seu problema sr. Cidão? '' ''não dá para cochichar?” ''não'!' ''me doí o cu”.

Quando os ilustrados procuravam, faz trezentos anos, os mecanismos que poderiam organizar as multidões, o faziam porque cada sujeito fosse capaz de se desenvolver na sua particularidade, procuravam também uma via de liberdade. Mas a aplicação das teorias racionalizadoras deu na escravização do ser, sob umas normas gerais que pouco a pouco se confundem com sua razão primeira. Os hospitais públicos com seus horários impossíveis, a aglomeração de carne nos seus quartos, nem tão brancos nem tão azuis, a exploração dos trabalhadores, o esquecimento da essência humana, a novelesca indiscrição, traz de volta o latim à missa, um passo atrás nas conjeturas mais humanas.

Tirar de alguém seu direito a solidão é causar uma dor ignota à dor física concreta. Porque sem liberdade, não nos sentimos dignos de nada, nem tão só de nós mesmos. 

13 de jul. de 2013

A hipocrisia como vaidade ou a mentira sagrada ou ainda Pia fraus.




''''Falsidade ''necessária para que continue a me permitir o luxo de minha veracidade'''.
Frase que Nietzsche diz em Humano, demasiado humano e soma, faz-se necessário ao indivíduo seleto envolver-se hábil e corajosamente no manto da solidão exterior e espacial: isso pertence à inteligência''. ''Astucia e disfarce necessários para que tal homem, seleto entre os numerosos, a use como legitima defesa, para a sua conservação''. Isso aparentemente explica a primeira frase, que em suma é arte da dissimulação e é vista com bons olhos. Entretanto há outra hipocrisia, a hipocrisia moral, que nada mais é que a vaidade. A vaidade é o querer preponderância de um frente a outro, ou mesmo face a determinada comunidade. O indivíduo percebe que o que lhe confere poder extra é não aquilo que ele é, mas aquilo pelo que é tido.

Àquela falsidade necessária, seja hipocrisia deliberada, a vaidade ampara-se no auto engano, muito peculiar, pois é crença naquilo que se supõe e se diz ser. Uma vitrine, onde se mostra o que se quer e se esconde outras, com fim último de auto-enganar-se. O auto-engano por seu turno, isso é difícil a beça, pois não se questiona a honestidade, mas o caráter ''desonesto-mendaz'' de tal honestidade, que embora honesta, a crença, é movida por uma mentira desonesta, e mentida para si próprio, seja a mentira sagrada.   

Uruk, ou Babilônia, o berço da palavra.





A origem da escrita aponta à Mesopotâmia, antiga Suméria, em concreto, Uruk, onde surgiram as primeiras manifestações escritas há mais de quatro mil anos. Diz-se que de Uruk veio Iraque.
Ao sul da planície, atual Iraque, nos braços do Tigres e Eufrates, lá estava Uruk, a primeira grande urbe da raça. Quarenta mil a habitavam, por humanos, uma complexa sociedade urbana.
Diz-se que Gilgamesh, mitificado, e plasmado n'O poema de Gilgamesh, reinou Uruk há cinco mil anos e a amuralhou, mereceu a primeira epopeia conhecida escrita pelo escriba Sin-leqi-unnini, com tons legendários, no tempo mítico da origem do mundo. Já, e muito antes do dilúvio bíblico, os deuses mesopotâmicos ameaçavam destruir o mundo com um dos grandes. Não é difícil ser leviano, coisa que por demais gosto, porque o medo de quem mora em meio ao deserto deve ser a água, água exabundante, pois de fogo já andavam escaldados.

Em tábuas de argila escreviam a contabilidade, ensinavam a criar gado e métodos para calcular superfícies, mas havia além da heroicidade e da praticidade, platitudes sobre aspectos da vida social de Uruk.


Acontece que os chineses, ou seus áporos escavadores, encontraram umas lascas de pedras com inscrições, sendo mais antigas que as antigas e acostumados a explicar enigmas com um conto, chinês, os habitantes do Império do Centro atribuem a origem de sua escritura a uma espécie de gigante cabeçudo com quatro olhos que irradiam um brilho misterioso, que se chama Cang Jie. Cang Jie viveu durante a dinastia Xia. Cang Jie se inspirou em imagens do céu e da terra para dar forma aos
caráteres. Da abóboda celeste com suas estrelinhas surgiram as curvas, dos rios, vales e montanhas, as linhas. Para complicar um pouco cada caractere usou penas e pegadas de pássaros na areia ou ainda os desenhos das carapaças das tartarugas, e estas mesmas carapaças lhe serviram de mídia. Tudo aconteceu em distintas bacias ao longo dos rios Amarelo e Yangze.

10 de jun. de 2013

Mercador veneziano.

"A patologia está em usar a vítima como brinquedo". cidão!



O mercador veneziano, de outro mercador veneziano, havia recebido em pagamento do ágio devido deste àquele, uma sorte de mercadorias vinhos, azeites, anchovas italianas, trufas em conserva, saches de funghi porcini e latas de tomates pelados; quais armazenava num quarto entre a garagem e a sala de jogos de sua mansão, na escarpa do bairro nobre. Era mercador, gourmet, negociante, agiota e corria o boato que tinha conexões com off shores e partidos políticos. Visitava sua casa por sua bela filha, mas quando me dei conta, pois pensava em dizer '' não, signore tenho verdadeiro desejo, amico, por este gallo nero, ma, e so, de origem controlada, ma claro que so, de pescoço comprido, ma...'' enquanto engasgava o não, ele lotava o porta-malas do 147 vermelho, com suas próprias mãos macias e gordas. ''Non!'' ''Non!'' ''Non se preocupe'' dizia engolindo meio ''o'' de preocupe, ''casa mia tem dinheiro que no so dove sia!'' um tanto cative, ''questo acciughe é belissimo, prende una caixa?'', ''deusdocéu 60 latas por 10 dólares cada lata...'' Matutava enquanto ele acrescia simpático ''doppo você me paga''. Bo! Sem ser efusivo, fazia eu, sem entender completamente tal interjeição, mas encaixava bem. Dois dias depois, conseguia de mim alguns cheques cujos valores somados daria para trocar o 147 por um carro zero. Todo pré-datado tem seu dia de chegar, impor sua verdade e, vencer, impossível deter o tempo, inútil sonhar com a curvatura einsteiniana e ultrapassar um futuro e viver outro, sumir para o universo paralelo toda vez que o visse, se teu credor for um mercador veneziano! Assim passamos a nos encontrar, na rua, no semáforo, ''Ciao amico'', '' o cara é onipresente'' remordia-me enquanto engolia o café quente queimando a goela no Café Regina, ''também compra no mercadón?'', ''pur troppo'', ruminara, no Pão-de-Áçucar nas horas mais idas, e por fim trocar cheques por mais cheques no seu escritório, com mais grades que Alcatraz, andava temeroso que me cortasse um dedo, dois, pesadelos entrecortados, ou toda a punheteira mão, cheguei mesmo a pensar que fora a melhor solução, comecei a ler sobre estancar o sangue. Como não conseguira vender todos os vinhos naquele inverno, resolvi levar para casa uma caixa de gallo nero, para as horas em que o vinho nos empresta caráter, e o sangue não pode ser dissimulado, e qual não foi o meu espanto ao abri-la, repleta de notas de 20 e 100 dólares.     

9 de jun. de 2013

Embotamento.




Estava lendo uns escritos de Guy de Maupassant e me deparei com esta frase:  "Elle tourne comme une mouche dans une bouteille fermée". Ele o pensamento, que gira como uma mosca dentro de uma garrafa. Nada nada mais se explica, é tão só uma metáfora. Fiquei viajando nas acrobacias que ela faz, e estão longe, faltos da razão, e se parecem, se calhar, a uma rápida sucessão de imagens num anúncio. Se o díptero pudesse parar no meio dela, garrafa, a vertigem o faria rodar a cabeça e despencaria em queda livre, por isto está condenado às constantes divagações aéreas, e se por acaso quisesse repouso haveria de buscar terra firme e trancar os olhos, ou fixar a vista nalgum ponto, à moda das obsessões alienantes. O pensamento faz o mesmo; deixado solto é uma montanha russa, suspensa na consciência, e repete e se repete, e repete os mesmos gestos a faltar pedaços, sem se dar conta, acaba criando uma geringonça parecida à elipse, como um arado a sulcar a terra sem conceber outras incisões, itinerários e incógnitas crescentes. O pensamento se tece e se destece a si mesmo sobre a velha tela, como uma Penélope traíra que não espera nenhum Odisseu. Assim a cada vez que tromba com o vidro perde o rastro e se desconcerta, acaba por se conjurar a fazer voos sempre sempre mais curtos.         

21 de mai. de 2013

Educar o adulto, não botar bigode na criança!

foto do blog, http://amagiadeeducar.spaceblog.com.br



Uma lei que não promete futuro, coloca a sociedade em modo ''pause'', e o futuro não melhorado, é o presente caótico que nele se projeta. A pergunta é clara: para prevenir este claro futuro – como deterioração deste presente em si hediondo – precisamos gerar lei, lei que não promete futuro algum? Em linguagem de boxeur é jogar a toalha.
É difícil, senão impossível, educar com vistas ao futuro. Sendo difícil, simplesmente, educar!
Assim se quer que as crianças aprendam o CTB ( Código de Trânsito Brasileiro), enquanto no trânsito se perpetua a barbárie, sendo a prática diferente da gramática, duas voltas na cadeirinha do banco traseiro no trânsito que se pratica, logo à saída da escola, se anula semestres de teoria. Tal modelo a nada mais serve, senão que para empanzinar o cérebro dos infantes, caracterizá-los de adultos.
Uma educação anacrônica mais atrapalha que ajuda aquele que a recebe, e por isso se faz imprescindível, desde já, deste instante, doravante, que as crianças e os seus adultos, apreendam a gestionar o presente, as novas tecnologias, as situações de mudanças aceleradas e implacáveis, a ansiedade da produção pela busca da criatividade, as situações injustas, as hierarquias sentimentais, a emoções que aprisionam, a construção da intimidade inserida no coletivo, por fim a identidade.
 Temos que trocar os pneus com o carro em movimento, e sabemos que o pior do poder não é ''ter poder'', mas simplesmente traduzi-lo para a realidade tangível, mantê-lo.
Não se trata portanto de socar conteúdo goela abaixo, ou se encher a cabeça deles, mas sim de se ampliar os graus de liberdade do educando, que voe se assim o quiser. Porque de alguma forma educar é transformar líquido inda amoldável em éter, no entanto o que temos é a solidificação, por manipulável, mármore para construir estátuas, e depois ficar cinicamente pedindo que fale, que leia, que crie...
Somos antes de mais nada, animais instintivos, e as crianças encontrarão – como encontram - soluções para sua sobrevivência partindo do que têm ou tiverem...



20 de mai. de 2013

Km Zero; f(x,y) = (0,0). Out of road.




De onde me vem esta aflição, esta propensão ao movimento?
Penso no cowboy solitário sobre o cavalo, enquanto as estações do ano e a geografia passam em poucos quadros e muitas folhinhas de calendário voando, seria uma influência cinematográfica, cine, kino, kinetic, cinética
    !
 Se minha massa não é zero... Mas acho isso ainda pouco.
Batido a máquina, em três semanas, num rolo de papel de 36 metros, editado em 1957, um ano antes da minha fecundação e convertido num texto cultuado por parte da juventude inconformista, que relata as vivências de Sal Paradise, alter ego do autor, do seu amigo Dean Mariarty, na realidade o poeta doente Neal Cassady, e tantos outros futuros nomes de referência da célebre Beat Generation, como Allen Ginsberg ou Williams Burrough perambulando de costa a costa dos Estados Unidos ao longo de sete anos, fugindo da american way of life que entronizava a hipocrisia moral conservadora e o consumismo, justo ao terminar a segunda guerra mundial, em busca da ''pureza da autoestrada” , descobrindo de passagem as drogas e a liberdade sexual.
Não fiz o caminho de Kerouac, mas pedi carona de Ribeirão à Bahia, a Sampa, a Recife, a Brasília, pela autoroute do soleil, para Barcelona, para Estugarda! Dormir no trem! Algum sexo, algum estupefaciente, nenhuma castidade. Tenho bem presente a emoção de um dia frio chegar a um pub do interior de catalão, não era um clube de Jazz e não tocava I've got a world on a string, na voz de Ella Fitzgerald, mas um a sonava, e o ouvia, e eram os nossos limites mais que geográficos, alem do haxixe amarelo e el caballo turco dissolvido com limão.
Peguei a estrada no fim de semana, fui ver amigos, amo os amigos, mas amo a estrada, agora posso ouvir Ella dentro do capacete, até chorar, cidades que se limitam, outras que virão, um monte, uma pedra, uma usina, um entroncamento, um posto de gasolina com seus cheiros o café e o cigarro, a bomba de gasolina, os caminhões a passar com sua música e a estrada a me chamar, por sorte cada manhã faço 6 Km de estrada, muita sorte, como se fosse cada incerta vez que fui, e cada certo dia retorno ao Km 0, incerto é certo.