No
hospital, as caras se amontoam a tua frente, enquanto
passa, e ao mesmo tempo aquelas caras veem a tua. Mais que caras,
arquétipos de dores, gestuais de dores, uns buscando algo firme,
seguro que os salve por um instante, outros abandonam-se ao abismo,
cegos, quase salvos, que de tão sós só podem recorrerem a si
próprios, lá na sua verdadeira e grande verdade. As expressões
surgem do nada ou de toda parte, gemidos igual balas num tiroteio,
parece que em qualquer momento podem te saltar encima, no tráfego
petrificado de uma sala de espera, ou num corredor deserto de um
andar silencioso, saindo de uma porta entre aberta de um quarto todo
branco e azul celeste.
Os visitantes e os doentes percebem na pele
os procedimentos do trabalho, enquanto os profissionais, já
imunizados à maioria das circunstâncias adversas e corriqueiras,
procuram fazer seu trabalho alheios a estas manifestações, desta
novela final que é um indivíduo no seu extremo mais íntimo.
Não há intimidade, mas. Paradoxalmente, quando o homem se encosta
ali, para ficar ali, na antessala do seu lote final, quando aquilo
que é e foi se dilui e se transforma, subitamente na consciência,
no que está a ponto de se tornar ou poder ser, é quando menos tem a
possibilidade de manter-se firme na sua intimidade, ou seja a sua
capacidade de se expressar dentro do âmbito pessoal da existência,
num cenário que não permite dispor da própria liberdade para se
tornar mera ferramenta de um sistema superior, que o cataloga e o
enclausura. '' - qual é seu problema sr. Cidão?
'' ''não dá para cochichar?”
''não'!' ''me doí o cu”.
Quando
os ilustrados procuravam, faz trezentos anos, os mecanismos que
poderiam organizar as multidões, o faziam porque cada sujeito fosse
capaz de se desenvolver na sua particularidade, procuravam também
uma via de liberdade. Mas a aplicação das teorias racionalizadoras
deu na escravização do ser, sob umas normas gerais que pouco a
pouco se confundem com sua razão primeira. Os hospitais públicos
com seus horários impossíveis, a aglomeração de carne nos seus
quartos, nem tão brancos nem tão azuis, a exploração dos trabalhadores, o esquecimento da
essência humana, a novelesca indiscrição, traz de volta o latim à
missa, um passo atrás nas conjeturas mais humanas.
Tirar
de alguém seu direito a solidão é causar uma dor ignota à dor
física concreta. Porque sem liberdade, não nos sentimos dignos de
nada, nem tão só de nós mesmos.