26 de jun. de 2011

Picho e trepo.

Picho e trepo, era uma frase pichada, que via a cada dia no muro em frente de casa. Frase curta, memorável e contundente. Digna de ser esculpida em pedra para epitáfio. Alguém, não sei o motivo, apagou-a, depois de anos, ali, e sua incontestável presença no bairro, este falto de genialidades, nem inúteis candidatos a apagaram. Pode ter sido um rompante súbito de civismo, assaltado pela consciência desvelada.
Mas ainda assim com o passar dos anos, lá está ela, aqui está, no cabeçalho dessa blogada, e em tantas outras linhas, nestas linhas, entrelinhas, recordando-me a paisagem urbana que habito, e creio que me pertence, sentimentalmente.
Não era bem um grafite, tampouco, uma ególatra declaração de intenções, mas sim, uma simples constatação sem assinatura com os verbos na primeira pessoa e a conjunção que a ninguém exclui. Capaz de unir realidades e botá-las à mesma altura e criar, de certo modo, uma
realidade nova. Pixar e trepar , este, pode certamente, ter uma importância capital na vida de uma pessoa, tanta e bastante para ficar imortalizada em uma parede pelo recurso da primeira, a pichação, e não sei se praticada concomitantemente, nem que fosse de pensamento.
Picho e trepo. A pintura como uma necessidade de expressar o inefável que nos povoa, e o sexo como cenário alternativo a esta, ou vice-versa, em perfeita harmonia.
Pichar e trepar, que alegria. Excelsa realidade, não se espante, plausível, veemente. Mais que um epitáfio, uma constituição.
Sem duvida, aquela frase naquela parede suja, à parte sua gloriosa semântica, significava um motivo de satisfação à vista, uma recordação de alguém que se move e que pode fazer que os outros se movam, intimamente.
A maioria dos muros do mundo caem, se espatifam, com o peso das assinaturas e garranchos de toda sorte de energúmenos, com vontade de aparecer a qualquer preço, pela via fácil da imbecilidade. Picho e trepo. Este não, por filiação apaixonada, paixão anônima, a verdadeira inteligencia emocional, inédita, nos muros de uma cidade erotizada por cartazes e propagandas, por isso triste. Espero que o “artista”, onde estiver, siga praticando.

25 de jun. de 2011

Sem Utopia.

A leveza, o simples, o sensível – domínio dos sentidos - são aquelas coisas que pelo dia nos alegram a vida. Entidades pequenas, elementares, que por óbvio, funcionam, sem falhar, nem nunca decepcionam, sempre dispostas a fazer as honras a qualquer tempo, prenda que a nossa condição de bichos complexos devemos agasalhar com a delicadeza duma orquídea e a vagarosidade bovina: o espesso silêncio antes de sair da cama, o cheiro do café e do pão torrado na mesma manhã, a redondeza de um café com açúcar, a primeira luz do dia para um dia todo de sol, a toa, e seguiria uma longa fila de cotidianidades, que por isso, monótonas, mas diferentes, sempre são diferentes, se não, é por uma fé perdida.
Miudezas, que sem crescer se enraízam em outras rotinas, as ruins, que sendo diferentes são sempre as mesmas; as mixórdias próprias, as dúvidas que nos fazem tropeçar, tropicar – feitos cavalgaduras - as fraquezas que vêm do mesmo lugar, o outro, aquele que esconde-se detrás de uma revolta, disposto a te amargar o dia, e aqui mais uma fila, extensa fila de coisas lamentáveis.
Podemos reinventar a solidão, a própria e a dos outros. Explorar o mito da nossa consciência, até obter pó de mico e então gozar, e de passagem fazer com que outros gozem. Se, não nos amarguremos, não amargamos.
Se descobrimos as partículas infinitesimais da felicidade, nossa, estaremos dispostos a dar umas quantas ou compensar a falta de umas poucas. Mas se buscamos a densidade dessa alegria, e a desparramamos e enchemos de contentamento aquela bolha que nos sustenta desde a mesma manhã naquele silêncio espesso, até a noite, no ruido das ideias, que depois da jornada se amontoam no cérebro, antes de dissolverem-se no branco do lençol.
A arte da leveza, da beleza rara, por outro lado. da superficialidade, é difícil. Caminho comprido e ignoto. É preciso queimar lágrimas, papéis, palavras e imbecis.

23 de jun. de 2011

Neymar, o Príncipe herdeiro.

Entrincheirado na sua área porque é assim que se sente cômodo, o Penharol planejou um duelo a contra-ataques, como fez anteriormente em outros jogos eliminatórios, sempre como “zebra”, e saiu vitorioso. Até então não tivera como rivais a Ganso e Neymar. Ganso é o talento, o virtuoso da redonda, quebra as cadeiras e encontra espaços para traçar uma reta entre os adversários e seu companheiro. Neymar é gol, regateia, penteia, esquiva, arranca e quando pensam que está brincando, fala sério, Gol! Arouca leva a gorda colada. Elano é conservador. Todos, somados, escalpelaram o Penharol, mais Esparta que Atenas. Arouca esquiou entre uruguaios esperou o zagueiro refugar, empacar e atendeu a uma piscadela de Neymar, que andava saindo da área, assim recebe mais bolas, e dali focaliza melhor os três paus. Passe, foco, chinelada e gol. Depois o Danilo foi muito respeitoso com o ala esquerda uruguaio, pois se esperasse, um milésimo, para dar o corte, para dentro, causava uma crise ciática no cisplatino, trocou de pé bicou pela hipotenusa. Dois zero , os orientais brio e garra fizeram um. Ganso é só Didi, tão moderno quanto e Neymar o príncipe herdeiro e claro, Santos Tri.   

22 de jun. de 2011

República. Episódio II. Direito de Ir e Vir.

 Acordei com tanto desejo de contar, mais, do teatro dos seres-brinquedos na calçada do ir, quanto o rei Xariar tinha de ouvir Sherazade. Aqueles marionetes estavam tão cansados de irem-se quanto eu entediado de vê-los ociosos de interesses. Bastaria com afixar cartazes rente um dos lados da calçada por que desarrumasse aquela monotonia. Não o fiz. Há temas mais urgentes, como o sagrado vir.
Praticante do ir, ir e não voltar, sempre ir, sem saber onde, pois o onde está além dele mesmo, e onde, por longínquo, não retornável, como aquele rio, ou qualquer rio, como essa calçada, ou qualquer calçada. Mas ir-se, largar-se, é também coisa que acaba por ser tão inútil ou ociosa quanto não ir, ou se preferirdes, ir e vir. Assim que sem monumentos ideológicos e sem base no real que impeçam o vir e como quem não quer a coisa:
Emendo a constituição. Aonde havia direito de ir, leia-se ir e vir.
Se pudesse defenderia o ir, por mero depositário do positivo, perante aparente negação da ação vir, como quem na fábula ficava grãos a fazer caminho para então voltar, para ir não é necessário saber caminho ou para onde ou aonde anda o onde, essa coisa é ir, ato solitário, estar-se a ir. Mas basta reconhecer o outro, e esse outro ser levado em conta, que o ato banal, vir, ganha outra dimensão. De todas, uma: eu digo: aquele vai à casa do outro e da casa do outro vai à própria casa. Mas ele, e se ele disser, ele dirá: venho da casa do outro.
Há significados profundos no sempre ir. Uma ideia de movimento largo, demorado, a percorrer certa dimensão. Enquanto ir e vir, apesar do aparente frenesi, revela-se algo estático, que não é o repouso, mas a anulação de deslocamentos iguais com sentidos opostos, por certo é muito triste, ir de casa e voltar a ela, e nisso só haver o registro da nulidade e a contabilidade do dia consumido. Mas não povoarei de bandeirolas essa ópera.
Os seres-brinquedos fruem do ir e vir. Vão e voltam. Repetem-se, multiplicam-se pela calçada, de tal maneira que não se pode discriminá-los. Zanzam e flanam, desviam-se e seguem, e nenhum destaque há, senão de um que outro aparentarem certa loucura, num ir i vir; que não cessa , cansativo e aborrecido feito robozinhos em parafuso, a girar, sem objetivo, sem estancação. E girar é, não poder distinguir do início o fim, é perder-se, sem encontrar saída, inda que tangencial.  

21 de jun. de 2011

República. Episódio I. Direito de Ir.

              Suponho que é possível abstrair todo o demais e deixar o indivíduo que caminha numa calçada apenas com a sina: caminhar pela calçada. Então faço o mesmo com outros indivíduos. Todos à calçada.           Outorgo a constituição que diz: É de todos o direito de ir pela calçada na velocidade de seus padrões de caminhar.  Ponho-os todos na mesma calçada e na mesma direção. A lei diz que cada um tem a liberdade de ir pela calçada na velocidade ou morosidade segundo à natureza fisiológica própria. 
              Descubro, antes cedo que tarde, que pela calçada podem caminhar ao mesmo tempo, um número finito desses indivíduos, quando um ao lado do outro. As diferentes velocidades com que fazem o percurso, provoca em determinados momentos, segundo uma demografia, alguns problemas de impedimento. Sendo as velocidades diferentes e involuntárias, como hei de resolver o problema dos choques? Antes; dou relevo ao fato de não haver prioridades, mesmo valores, nem valorização do ato de andar lenta ou velozmente, que agasalhe uns e descubra outros. 
              Há a hiperocupação. Há o esbarrão. Há o impedimento. Esbarrões e impedimentos são problemas. Para resolvê-los haverei de fundar uma ordem. Para instituí-la, por criterioso, busco um conserto conveniente.
             Ora vamos, estou a brincar, com regras de menino, ilusão, sonho, fantasia e mesmo os bonequinhos de chumbo, acatam, em absoluto, ordem-unida descabida. Noto e faço notar que existe tão-somente diferenças de velocidades, entre meus seres-brinquedos manietados. Saliento não existirem, ainda, valores subjetivos; somente o valor objetivo da capacidade que um tem de imprimir mais passos à calçada que outro.
              O interesse não é criar um problema, sim espiar a realidade, por ele, nele, uma vez que o problema proposto sempre será menos real e menor. Assim não pespegarei rendinhas da realidade neste tecido, ainda bruto, de tal sorte que posso dar como resolvido, o problema anterior, com o arranjo da minha boa administração. Acordado com a conveniência do proceder, e sem esquecer que é de crianças o maquinar, e dessarte troco o certo pelo incerto, em por a passear, na mesma calçada, outra categoria de gentes; com os mesmos problemas daqueles transeuntes lá antes instalados, esses serão senhores da mesma constituição e dotados da mesma regulação daquele organismo; porém se deslocarão no sentido contrário daqueles. Deixo claro, o fato de estes haverem sido postos posteriormente não implicará amiudar prerrogativas. São a mesmas. Direito de ir.
              Imediatamente, produz-se uma profusão de encontrões, assentado e por escrito já disse que as populações, e supondo poder diferenciá-las, têm autonomia, e se queres, soberania, de ir dentro dos parâmetros estabelecidos, livremente, conquanto todos vão.
             Ocorre que segundo o prisma dos que vão, outros vêm, e vice-versa, mas isso ainda não está previsto, seja, neste tempo não posso lhes permitir este segundo ponto de vista. Devo consciencizar as diferentes populações, que os outros também vão. E, inda que indo em sentido oposto, trata-se de ir. Dirimo a impressão que o outro vem, pois o outro também está e faz seu movimento de ir. Assim não é necessário emendar a constituição. Basta com estabelecer outra ordem, diferente da ordem anterior, uma ordem que preveja a melhor maneira de ir. Por exemplo: uns vão por um lado e os outros que vão em sentido oposto, o façam pelo outro. Resolvido.
               É proveitoso salientar que os dois lados dessa calçada ainda não têm as peculiaridades próprias das calçadas da vida real. Dá que, em determinado momento, aquele que tanto foi naquele sentido, preme-lhe a necessidade de ir opostamente. Cria-se o voltar. Inclusivamente o dar a volta, o circular. Não aceite, todavia, a ótica do outro; coisa implicante na ideia do vir. Não mudo a constituição. Não permito, alfim e ao cabo, a subjetividade. Mas ela não tarda, e enquanto estas superficialidades não aparecem vou tratando de resolver os problemas dessa calçada. Que sequer tem um lado diferente do outro. E cada indivíduo, lento ou rápido, num sentido e noutro aceitam bem as regulamentações que venturosamente vêm lhes amenizando a árdua tarefa de ir.
              Mas como dizia, não tardará, a subjetividade, como criança me tomo a coisa a sério, e cada peça a ganhará ou disporá em vida, e se não tolhida, e em plenitude, que é o único adjetivo que a acompanha bem e gera este substantivo tão distinto e elegante. Vida plena.

República de Cidão, Episódio I.

19 de jun. de 2011

Maler Edson.


Ele pintava casas; muitas; umas juntinhas às outras, fossem bandeirinhas de São João. As cores todas como vieram ao mundo. Vermelho, vermelho. Amarelo, amarelo. Azul, azul. Branco, branco. As telas também reduzidas. Telas de bolso. Ficava zanzando do Mercado Modelo à Barroquinha. Certa vez passou uma alemã por ali, esbarrou com Edson, gostou da pintura, arrastou-o para Tubinga. Lá em Tubinga, Edson virou Maler. Mas não se entendia com ninguém. Eu era Ich. Tu era Du e mim era mich, mas meu era mir e por instinto e a sua pintura já famosa, Ich liebe dich. Assim a alemã o foi perdendo para outras: Pardon! Esbarrava. Ich liebe dich! Da pintura crescia a fama. Aquelas telinhas, a miúde, miúdas de casinholas como bandeirinhas de São João. Pintor era Maler. E para ler Maler em voz alta: er é â assim Maler é mala. E assim foi ficando o Maler Edson mala. E que Maler havia em mala Edson, as tedescas, ui! Pardon! Tout de suit, Ich liebe dich.

Suje-se, Gordo! Conto Machado de Assis. é rapidinho!!

Contos, de Machado de Assis - Suje-se Gordo!
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Contos
Machado de Assis



Suje-se, Gordo!



UMA NOITE, há muitos anos, passeava eu com um amigo no terraço
do Teatro de S. Pedro de Alcântara. Era entre o segundo e o terceiro
ato da peça A Sentença ou o Tribunal do Júri. Só me ficou o título,
e foi justamente o título que nos levou a falar da instituição e de um
fato que nunca mais me esqueceu.
-- Fui sempre contrário ao júri, -- disse-me aquele amigo, -- não
pela instituição em si, que é liberal, mas porque me repugna condenar
alguém, e por aquele preceito do Evangelho; "Não queirais
julgar para que não sejais julgados". Não obstante, servi duas vezes.
O tribunal era então no antigo Aljube, fim da Rua dos Ourives, princípio
da Ladeira da Conceição.
Tal era o meu escrúpulo que, salvo dous, absolvi todos os réus.
Com efeito, os crimes não me pareceram provados; um ou dous processos
eram mal feitos. O primeiro réu que condenei, era um moço
limpo, acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena,
com falsificação de um papel. Não negou o fato, nem podia
fazê-lo, contestou que lhe coubesse a iniciativa ou inspiração do
crime. Alguém, que não citava, foi que lhe lembrou esse modo de
acudir a uma necessidade urgente; mas Deus, que via os corações,
daria ao criminoso verdadeiro o merecido castigo. Disse isso sem
ênfase, triste, a palavra surda. os olhos mortos, com tal palidez que
metia pena; o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a
confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento
e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada.
Poucas vezes terei assistido a debate tão brilhante. O discurso do
promotor foi curto, mas forte, indignado, com um tom que parecia
ódio, e não era. A defesa, além do talento do advogado, tinha a
circunstância de ser a estréia dele na tribuna. Parentes, colegas e
amigos esperavam o primeiro discurso do rapaz, e não perderam na
espera. O discurso foi admirável, e teria salvo o réu, se ele pudesse
ser salvo, mas o crime metia-se pelos olhos dentro. O advogado morreu
dous anos depois, em 1865. Quem sabe o que se perdeu nele!
Eu, acredite, quando vejo morrer um moço de talento, sinto mais
que quando morre um velho... Mas vamos ao que ia contando.
Houve réplica do promotor e tréplica do defensor. O presidente do
tribunal resumiu os debates, e, lidos os quesitos, foram entregues ao
presidente do Conselho, que era eu.
Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais
que lá se passou, não interessa ao caso particular, que era melhor
ficasse também calado, confesso. Cantarei depressa; o terceiro ato
não tarda.
Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais
que ninguém convencido do delito e do delinqüente. O processo foi
examinado, os quesitos lidos, e as respostas dadas (onze votos contra
um); só o jurado ruivo estava inquieto. No fim, como os votos
assegurassem a condenação, ficou satisfeito, disse que seria um ato
de fraqueza, ou cousa pior, a absolvição que lhe déssemos. Um dos
jurados, certamente o que votara pela negativa, -- proferiu algumas
palavras de defesa do moço. O ruivo, -- chamava-se Lopes, -- replicou
com aborrecimento:
-- Como, senhor? Mas o crime do réu está mais que provado.
-- Deixemos de debate, disse eu, e todos concordaram comigo.
-- Não estou debatendo, estou defendendo o meu voto, continuou
Lopes. O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo
o réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade!
Tudo por uma miséria, duzentos mil-réis! Suje-se gordo! Quer
Sujar-se? Suje-se gordo!
"Suje-se gordo!" Confesso-lhe que fiquei de boca aberta, não que
entendesse a frase, ao contrário; nem a entendi nem a achei limpa,
e foi por isso mesmo que fiquei de boca aberta. Afinal caminhei e
bati à porta, abriram-nos, fui à mesa do juiz, dei as respostas do
Conselho e o réu saiu condenado. O advogado apelou; se a sentença
foi confirmada ou a apelação aceita, não sei; perdi o negócio de vista.
Quando saí do tribunal, vim pensando na frase do Lopes, e pareceu-
me entende-la. "Suje-se gordo!" era como se dissesse que o condenado
era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada.
Achei esta explicação na esquina da Rua de S. Pedro; vinha ainda
pela dos Ourives. Cheguei a desandar um pouco, a ver se descobria
o Lopes para lhe apertar a mão; nem sombra de Lopes. No dia
seguinte, lendo nos jornais os nossos nomes, dei com o nome todo
dele; não valia a pena procurá-lo, nem me ficou de cor. Assim são
as páginas da vida, como dizia meu filho quando fazia versos, e
acrescentava que as páginas vão passando umas sobre outras, esquecidas
apenas lidas. Rimava assim, mas não me lembra a forma dos
versos.
Em prosa disse-me ele, muito tempo depois, que eu não devia
faltar ao júri, para o qual acabava de ser designado. Respondi-lhe
que não compareceria, e citei o preceito evangélico; ele teimou, dizendo
ser um dever de cidadão, um serviço gratuito, que ninguém
que se prezasse podia negar ao seu país. Fui e julguei três processos.
Um destes era de um empregado do Banco do Trabalho Honrado,
o caixa, acusado de um desvio de dinheiro. Ouvira falar no caso,
que os jornais deram sem grande minúcia, e aliás eu lia pouco as
notícias de crimes. O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso
banco dos réus, Era um homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci;
pareceu-me ver o meu colega daquele julgamento de anos
antes. Não poderia reconhecê-lo logo por estar agora magro, mas
era a mesma cor dos cabelos e das barbas, o mesmo ar, e por fim
a mesma voz e o mesmo nome: Lopes.
-- Como se chama? perguntou o presidente.
-- Antônio do Carmo Ribeiro Lopes.
Já me não lembravam os três primeiros nomes, o quarto era o
mesmo, e os outros sinais vieram confirmando as reminiscências;
não me tardou reconhecer a pessoa exata daquele dia remoto. Digolhe
aqui com verdade que todas essas circunstâncias me impediram
de acompanhar atentamente o interrogatório, e muitas cousas me
escaparam. Quando me dispus a ouvi-lo bem, estava quase no fim.
Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia
de maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava
os olhos sem medo nem ansiedade; não sei até se com um pontinha
de riso nos cantos da boca.
Seguiu-se a leitura do processo. Era um falsidade e um desvio
de cento e dez contos de réis. Não lhe digo como se descobriu o
crime nem o criminoso, por já ser tarde; a orquestra está afinando
os instrumentos. O que lhe digo com certeza é que a leitura dos
autos me impressionou muito, o inquérito. os documentos, a tentativa
de fuga do caixa e uma série de circunstâncias agravantes; por fim
o depoimento das testemunhas. Eu ouvia ler ou falar e olhava para
o Lopes. Também ele ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão,
o presidente, o tecto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu.
Quando olhou para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo
e sorriu, como fazia aos outros.
Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal
como serviram, tempos antes. os gestos contrários do outro acusado.
O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado
mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer
aquela paz de espírito.
Enquanto os dous oradores falavam, vim pensando na fatalidade
de estar ali, no mesmo banco do outro, este homem que votara a
condenação dele, e naturalmente repeti comigo o texto evangélico:
"Não queirais julgar, para que não sejais julgados". Confesso-lhe
que mais de uma vez me senti frio. Não é que eu mesmo viesse a
cometer algum desvio de dinheiro, mas podia, em ocasião de raiva,
matar alguém ou ser caluniado de desfalque. Aquele que julgava
outrora, era agora julgado também.
Ao pé da palavra bíblica lembrou-me de repente a do mesmo
Lopes: "Suje-se gordo!" Não imagina o sacudimento que me deu
esta lembrança. Evoquei tudo o que contei agora, o discursinho que
lhe ouvi na sala secreta, até àquelas palavras: "Suje-se gordo!" Vi
que não era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim de grande
valor. O verbo é que definia duramente a ação. "Suje-se gordo!"
Queria dizer que o homem não se devia levar a um ato daquela
espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro
patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!
Idéias e palavras iam assim rolando na minha cabeça, sem eu dar
pelo resumo dos debates que o presidente do tribunal fazia. Tinha
acabado, leu os quesitos e recolhemo-nos à sala secreta. Posso dizerlhe
aqui em particular que votei afirmativamente, tão certo me pareceu
o desvio dos cento e dez contos. Havia, entre outros documentos,
uma carta de Lopes que fazia evidente o crime. Mas parece que nem
todos leram com os mesmos olhos que eu. Votaram comigo dous
jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de
absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua. A diferença
da votação era tamanha, que cheguei a duvidar comigo se teria
acertado. Podia ser que não. Agora mesmo sinto uns repelões de
consciência. Felizmente, se o Lopes não cometeu deveras o crime,
não recebeu a pena do meu voto, e esta consideração acaba por me
consolar do erro, mas os repelões voltam. O melhor de tudo é não
julgar ninguém para não vir a ser julgado. Suje-se gordo! suje-se
magro! suje-se como lhe parecer! o mais seguro é não julgar ninguém...
Acabou a música, vamos para as nossas cadeiras.