Contos, de Machado de Assis - Suje-se Gordo!
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Contos
Machado de Assis
Suje-se, Gordo!
UMA NOITE, há muitos anos, passeava eu com um amigo no terraço
do Teatro de S. Pedro de Alcântara. Era entre o segundo e o terceiro
ato da peça A Sentença ou o Tribunal do Júri. Só me ficou o título,
e foi justamente o título que nos levou a falar da instituição e de um
fato que nunca mais me esqueceu.
-- Fui sempre contrário ao júri, -- disse-me aquele amigo, -- não
pela instituição em si, que é liberal, mas porque me repugna condenar
alguém, e por aquele preceito do Evangelho; "Não queirais
julgar para que não sejais julgados". Não obstante, servi duas vezes.
O tribunal era então no antigo Aljube, fim da Rua dos Ourives, princípio
da Ladeira da Conceição.
Tal era o meu escrúpulo que, salvo dous, absolvi todos os réus.
Com efeito, os crimes não me pareceram provados; um ou dous processos
eram mal feitos. O primeiro réu que condenei, era um moço
limpo, acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena,
com falsificação de um papel. Não negou o fato, nem podia
fazê-lo, contestou que lhe coubesse a iniciativa ou inspiração do
crime. Alguém, que não citava, foi que lhe lembrou esse modo de
acudir a uma necessidade urgente; mas Deus, que via os corações,
daria ao criminoso verdadeiro o merecido castigo. Disse isso sem
ênfase, triste, a palavra surda. os olhos mortos, com tal palidez que
metia pena; o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a
confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento
e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada.
Poucas vezes terei assistido a debate tão brilhante. O discurso do
promotor foi curto, mas forte, indignado, com um tom que parecia
ódio, e não era. A defesa, além do talento do advogado, tinha a
circunstância de ser a estréia dele na tribuna. Parentes, colegas e
amigos esperavam o primeiro discurso do rapaz, e não perderam na
espera. O discurso foi admirável, e teria salvo o réu, se ele pudesse
ser salvo, mas o crime metia-se pelos olhos dentro. O advogado morreu
dous anos depois, em 1865. Quem sabe o que se perdeu nele!
Eu, acredite, quando vejo morrer um moço de talento, sinto mais
que quando morre um velho... Mas vamos ao que ia contando.
Houve réplica do promotor e tréplica do defensor. O presidente do
tribunal resumiu os debates, e, lidos os quesitos, foram entregues ao
presidente do Conselho, que era eu.
Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais
que lá se passou, não interessa ao caso particular, que era melhor
ficasse também calado, confesso. Cantarei depressa; o terceiro ato
não tarda.
Um dos jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais
que ninguém convencido do delito e do delinqüente. O processo foi
examinado, os quesitos lidos, e as respostas dadas (onze votos contra
um); só o jurado ruivo estava inquieto. No fim, como os votos
assegurassem a condenação, ficou satisfeito, disse que seria um ato
de fraqueza, ou cousa pior, a absolvição que lhe déssemos. Um dos
jurados, certamente o que votara pela negativa, -- proferiu algumas
palavras de defesa do moço. O ruivo, -- chamava-se Lopes, -- replicou
com aborrecimento:
-- Como, senhor? Mas o crime do réu está mais que provado.
-- Deixemos de debate, disse eu, e todos concordaram comigo.
-- Não estou debatendo, estou defendendo o meu voto, continuou
Lopes. O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo
o réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade!
Tudo por uma miséria, duzentos mil-réis! Suje-se gordo! Quer
Sujar-se? Suje-se gordo!
"Suje-se gordo!" Confesso-lhe que fiquei de boca aberta, não que
entendesse a frase, ao contrário; nem a entendi nem a achei limpa,
e foi por isso mesmo que fiquei de boca aberta. Afinal caminhei e
bati à porta, abriram-nos, fui à mesa do juiz, dei as respostas do
Conselho e o réu saiu condenado. O advogado apelou; se a sentença
foi confirmada ou a apelação aceita, não sei; perdi o negócio de vista.
Quando saí do tribunal, vim pensando na frase do Lopes, e pareceu-
me entende-la. "Suje-se gordo!" era como se dissesse que o condenado
era mais que ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada.
Achei esta explicação na esquina da Rua de S. Pedro; vinha ainda
pela dos Ourives. Cheguei a desandar um pouco, a ver se descobria
o Lopes para lhe apertar a mão; nem sombra de Lopes. No dia
seguinte, lendo nos jornais os nossos nomes, dei com o nome todo
dele; não valia a pena procurá-lo, nem me ficou de cor. Assim são
as páginas da vida, como dizia meu filho quando fazia versos, e
acrescentava que as páginas vão passando umas sobre outras, esquecidas
apenas lidas. Rimava assim, mas não me lembra a forma dos
versos.
Em prosa disse-me ele, muito tempo depois, que eu não devia
faltar ao júri, para o qual acabava de ser designado. Respondi-lhe
que não compareceria, e citei o preceito evangélico; ele teimou, dizendo
ser um dever de cidadão, um serviço gratuito, que ninguém
que se prezasse podia negar ao seu país. Fui e julguei três processos.
Um destes era de um empregado do Banco do Trabalho Honrado,
o caixa, acusado de um desvio de dinheiro. Ouvira falar no caso,
que os jornais deram sem grande minúcia, e aliás eu lia pouco as
notícias de crimes. O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso
banco dos réus, Era um homem magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci;
pareceu-me ver o meu colega daquele julgamento de anos
antes. Não poderia reconhecê-lo logo por estar agora magro, mas
era a mesma cor dos cabelos e das barbas, o mesmo ar, e por fim
a mesma voz e o mesmo nome: Lopes.
-- Como se chama? perguntou o presidente.
-- Antônio do Carmo Ribeiro Lopes.
Já me não lembravam os três primeiros nomes, o quarto era o
mesmo, e os outros sinais vieram confirmando as reminiscências;
não me tardou reconhecer a pessoa exata daquele dia remoto. Digolhe
aqui com verdade que todas essas circunstâncias me impediram
de acompanhar atentamente o interrogatório, e muitas cousas me
escaparam. Quando me dispus a ouvi-lo bem, estava quase no fim.
Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era perguntado, ou respondia
de maneira que trazia uma complicação ao processo. Circulava
os olhos sem medo nem ansiedade; não sei até se com um pontinha
de riso nos cantos da boca.
Seguiu-se a leitura do processo. Era um falsidade e um desvio
de cento e dez contos de réis. Não lhe digo como se descobriu o
crime nem o criminoso, por já ser tarde; a orquestra está afinando
os instrumentos. O que lhe digo com certeza é que a leitura dos
autos me impressionou muito, o inquérito. os documentos, a tentativa
de fuga do caixa e uma série de circunstâncias agravantes; por fim
o depoimento das testemunhas. Eu ouvia ler ou falar e olhava para
o Lopes. Também ele ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão,
o presidente, o tecto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu.
Quando olhou para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo
e sorriu, como fazia aos outros.
Todos esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal
como serviram, tempos antes. os gestos contrários do outro acusado.
O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o advogado
mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer
aquela paz de espírito.
Enquanto os dous oradores falavam, vim pensando na fatalidade
de estar ali, no mesmo banco do outro, este homem que votara a
condenação dele, e naturalmente repeti comigo o texto evangélico:
"Não queirais julgar, para que não sejais julgados". Confesso-lhe
que mais de uma vez me senti frio. Não é que eu mesmo viesse a
cometer algum desvio de dinheiro, mas podia, em ocasião de raiva,
matar alguém ou ser caluniado de desfalque. Aquele que julgava
outrora, era agora julgado também.
Ao pé da palavra bíblica lembrou-me de repente a do mesmo
Lopes: "Suje-se gordo!" Não imagina o sacudimento que me deu
esta lembrança. Evoquei tudo o que contei agora, o discursinho que
lhe ouvi na sala secreta, até àquelas palavras: "Suje-se gordo!" Vi
que não era um ladrão reles, um ladrão de nada, sim de grande
valor. O verbo é que definia duramente a ação. "Suje-se gordo!"
Queria dizer que o homem não se devia levar a um ato daquela
espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro
patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!
Idéias e palavras iam assim rolando na minha cabeça, sem eu dar
pelo resumo dos debates que o presidente do tribunal fazia. Tinha
acabado, leu os quesitos e recolhemo-nos à sala secreta. Posso dizerlhe
aqui em particular que votei afirmativamente, tão certo me pareceu
o desvio dos cento e dez contos. Havia, entre outros documentos,
uma carta de Lopes que fazia evidente o crime. Mas parece que nem
todos leram com os mesmos olhos que eu. Votaram comigo dous
jurados. Nove negaram a criminalidade do Lopes, a sentença de
absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a rua. A diferença
da votação era tamanha, que cheguei a duvidar comigo se teria
acertado. Podia ser que não. Agora mesmo sinto uns repelões de
consciência. Felizmente, se o Lopes não cometeu deveras o crime,
não recebeu a pena do meu voto, e esta consideração acaba por me
consolar do erro, mas os repelões voltam. O melhor de tudo é não
julgar ninguém para não vir a ser julgado. Suje-se gordo! suje-se
magro! suje-se como lhe parecer! o mais seguro é não julgar ninguém...
Acabou a música, vamos para as nossas cadeiras.