21 de fev. de 2017

Ubá


...Ubá... havia combinado comigo e disse ao Beto que passaria essa tarde e noite, aqui, só então seguiria, tenho muito tempo, no entanto, quando me dou conta, estou no trevo que aponta para Coimbra, tudo em seguida Ervália e começa a descida do vale para a Serra do Brigadeiro, deveria ter passado a noite em Ervália, afinal estou em férias, ninguém me espera em lugar algum, se seguir assim construo meu finnegans wake só com nomes de cidades mineiras Ubá, Coimbra, Ervália, Canaã, Araponga, Pedro do Glória...Fervedouro, sigo pela estrada a cerzir as margens do pequeno ribeirão, mas se diz Rio Preto, nesse baixadão dessa invernada estreitada entre elevações montanhosas que bloqueiam os raios do sol, fazendo do meio da tarde uma tarde suspendida que de subto escurecerá sem passar pelo entardecer. Os vidros do carro abertos, a temperatura agradável, o som desligado, só o barulho lerdo do motor que me permite ouvir um carcará. O whatsapp silenciado pela ausência de sinais. Dou toda a atenção à geografia, a fauna é a já dita, um carcará, um boi ao longe, um quero-quero, e nada e nem carros no sentido contrário encontro, não quero pensar em coisas ruins, como furar um pneu, então para fugir inclusive do pensamento de temer, finjo destemor, paro num itororó logo após uma das muitas pontezinhas que cruzam o ribeirão. Cruzo a cerca. Caminho pelo pasto uns passos. Desço até suas águas cristalinas. Admiro e fotografo um pequeno cardume de girinos e outro de possíveis lambaris. Com a mão em concha arrisco um gole da água, é doce, tem cheiro doce. Na infância engoli um lambarizinho vivo para aprender a nadar. Não sei se sei. Uma folha de taioba, me serviu por fim de copo. Pensei em Narciso e uma imagem, que não descifro, reflete na água corrente, então tomo coragem e levanto a cabeça, é um boi. No alto da outra margem do rio, ele balança a cabeça com uma mancha branca na testa entre os olhos, sobre o restante baio, a mancha se parece à sombra de um ciclista curvado sobre o guidão. Eu e Ele ambos imóveis, a eternidade de um eco, seus olhos negros e imensos, penso que, me autorizavam. Mas sei que essa gente só é fiável quando ruminam, remediando, tento subir o barranco andando de costas, para que ele permaneça sob mira. Mas não é tão simples. Ele balança firmemente a cabeça, penso que quer dizer o oposto que havia pensado. Agora tenho acesso ao gramado do pasto do lado oposto ao dele. Subo com os cotovelos. Corro até a cerca e deixo parte da camiseta no arame farpado, e um risco nas costa, que tateio com o dedo, arde e sangra um pouco. Quando chego ao carro, percebo que o pneu traseiro está furado. Olho para o boi e vejo que apareceu do nada todo um rebanho que secundam o boi cara de ciclista. Estão na outra margem. Tento manter a calma. Tenho vontade de deitar no chão. Debaixo do carro. Dormir e acordar na minha cama na casa onde nasci. Tiro uma foto e envio com a localização, se por acaso, pelo whats para o Beto que não me abandona, desde lá, Ribeirão Preto, sei que o sinal pode aparecer em qualquer momento e sumir, quem sabe o Beto saiba como trocar pneus, para que lado desapertam as porcas, horário ou anti-horário, não sei se adiantaria de algo, se tento e nem mexe, em nenhum sentido. Deito de frente com os braços cruzados sobre o capô, com o queixo sobre o antebraço miro os bois que ainda estão lá e miram-me. Olho para o boi da mancha branca. Resolvo espantá-los e dou um berro Xoooooo! Não fizeram um movimento. Um torpe batido de pé, sequer. No entanto fui percebendo que se esboçava uma reação lá detrás a empurrar leve e continuamente os da frente, se isso é certo não sei, sei que mergulharam em bloco no barranco do ribeirão, e apareceram compactos à cerca ao lado do passageiro ausente do carro. Olhei para a cerca, frágil, três fios de arame, não poderia conter aquela gente toda. Pulei sobre a chave de rodas, ela rangeu e cedeu, pensamento correto do sentido anti-horário, para desapertar, nada é casual. Não me lembra como foram as demais porcas, sei que soltei-as todas. Entrei no carro, dei partida, e fiz uma careta tremenda para o boi da mancha branca de sombra de ciclista dobrado sobre o guidão, penso que ele sorriu.
Senti um alívio tão grande que só fui descobrir que não trazia o pneu furado, ao olhar pelo retrovisor uns cem metros adiante, para ver com um pouco de saudade o boi com a mancha branca na testa, e vi o pneu no meio da pista. Voltei com tanta segurança que fui à beira da cerca e pude fazer um carinho na cara do boi. Definitivamente, agora partia com saudades, ainda sem partir, permanecia ali, ouvindo tom waits feroz como um cão rosnando. Os morros pelados recortados pelos passos das vacas que se foram e deixaram a trilha, e é sobre essa sabedoria que esta estrada se fez e todas as que virão lá adiante para aonde lanço meu olhar e tudo é pasto em variados tons de verde, muitas vezes no alto dos morros dos morros altos, na sua silhueta umas árvores a fazer crista. Lá longe a serra se apresenta em tons verdes escuros, sigo serpenteando como o riacho, os pastos parecem mais povoados, os morros de cada lado vêm se aproximando e o vale ganha forma de v, as curvas são mais secas, os barrancos roubam a cena. Careço parar em Careço, perguntei como uma criança feliz diante dessa cidade palavra valise. Espreitei um café. Um bolinho de chuva. Tempo ruim para cruzar a serra, pode chover de repente, se acaso, melhor parar, esperar, não nas baixadas, hein! É, sem perder tempo. Vou sem parar. Aquela lonjura, aquele horizonte serrado vem chegando, a lonjura está perto, a serra é um monte, o verde é total, petróleo. E la vou cruzando, curvando, subindo, subindo, subindo, a nuvem escura bem no alto do pico, estou no meio da nuvem, chovendo, descendo, olhando, freando, descendo, freando, descendo. Desde lá do alto o vale visto se apresentava mais verde do lado oriental a vegetação mais alta, mais espessa. Fui me relaxando, e desfrutando da estrada.




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