...Ubá...
havia combinado comigo e disse ao Beto que passaria essa tarde e
noite, aqui, só então seguiria, tenho muito tempo, no
entanto, quando me dou conta, estou no trevo que aponta para
Coimbra, tudo em seguida Ervália e começa a descida do
vale para a Serra do Brigadeiro, deveria ter passado a noite em
Ervália, afinal estou em férias, ninguém me
espera em lugar algum, se seguir assim construo meu finnegans wake só
com nomes de cidades mineiras Ubá, Coimbra, Ervália,
Canaã, Araponga, Pedro do Glória...Fervedouro, sigo
pela estrada a cerzir as margens do pequeno ribeirão, mas se
diz Rio Preto, nesse baixadão dessa invernada estreitada
entre elevações montanhosas que bloqueiam os raios do
sol, fazendo do meio da tarde uma tarde suspendida que de subto
escurecerá sem passar pelo entardecer. Os vidros do carro
abertos, a temperatura agradável, o som desligado, só o
barulho lerdo do motor que me permite ouvir um carcará. O
whatsapp silenciado pela ausência de sinais. Dou toda a atenção
à geografia, a fauna é a já dita, um carcará,
um boi ao longe, um quero-quero, e nada e nem carros no sentido
contrário encontro, não quero pensar em coisas ruins,
como furar um pneu, então para fugir inclusive do pensamento
de temer, finjo destemor, paro num itororó logo após
uma das muitas pontezinhas que cruzam o ribeirão. Cruzo a
cerca. Caminho pelo pasto uns passos. Desço até suas
águas cristalinas. Admiro e fotografo um pequeno cardume de
girinos e outro de possíveis lambaris. Com a mão em
concha arrisco um gole da água, é doce, tem cheiro
doce. Na infância engoli um lambarizinho vivo para aprender a
nadar. Não sei se sei. Uma folha de taioba, me serviu por fim
de copo. Pensei em Narciso e uma imagem, que não descifro,
reflete na água corrente, então tomo coragem e levanto
a cabeça, é um boi. No alto da outra margem do rio,
ele balança a cabeça com uma mancha branca na testa
entre os olhos, sobre o restante baio, a mancha se parece à
sombra de um ciclista curvado sobre o guidão. Eu e Ele ambos
imóveis, a eternidade de um eco, seus olhos negros e imensos,
penso que, me autorizavam. Mas sei que essa gente só é
fiável quando ruminam, remediando, tento subir o barranco
andando de costas, para que ele permaneça sob mira. Mas não
é tão simples. Ele balança firmemente a cabeça,
penso que quer dizer o oposto que havia pensado. Agora tenho acesso
ao gramado do pasto do lado oposto ao dele. Subo com os cotovelos.
Corro até a cerca e deixo parte da camiseta no arame farpado,
e um risco nas costa, que tateio com o dedo, arde e sangra um pouco.
Quando chego ao carro, percebo que o pneu traseiro está
furado. Olho para o boi e vejo que apareceu do nada todo um rebanho
que secundam o boi cara de ciclista. Estão na outra margem.
Tento manter a calma. Tenho vontade de deitar no chão. Debaixo
do carro. Dormir e acordar na minha cama na casa onde nasci. Tiro uma
foto e envio com a localização, se por acaso, pelo
whats para o Beto que não me abandona, desde lá,
Ribeirão Preto, sei que o sinal pode aparecer em qualquer
momento e sumir, quem sabe o Beto saiba como trocar pneus, para que
lado desapertam as porcas, horário ou anti-horário, não
sei se adiantaria de algo, se tento e nem mexe, em nenhum sentido.
Deito de frente com os braços cruzados sobre o capô, com
o queixo sobre o antebraço miro os bois que ainda estão
lá e miram-me. Olho para o boi da mancha branca. Resolvo
espantá-los e dou um berro Xoooooo! Não fizeram um
movimento. Um torpe batido de pé, sequer. No entanto fui
percebendo que se esboçava uma reação lá
detrás a empurrar leve e continuamente os da frente, se isso
é certo não sei, sei que mergulharam em bloco no
barranco do ribeirão, e apareceram compactos à cerca
ao lado do passageiro ausente do carro. Olhei para a cerca, frágil,
três fios de arame, não poderia conter aquela gente
toda. Pulei sobre a chave de rodas, ela rangeu e cedeu, pensamento
correto do sentido anti-horário, para desapertar, nada é
casual. Não me lembra como foram as demais porcas, sei que
soltei-as todas. Entrei no carro, dei partida, e fiz uma careta
tremenda para o boi da mancha branca de sombra de ciclista dobrado
sobre o guidão, penso que ele sorriu.
Senti
um alívio tão grande que só fui descobrir que
não trazia o pneu furado, ao olhar pelo retrovisor uns cem
metros adiante, para ver com um pouco de saudade o boi com a mancha
branca na testa, e vi o pneu no meio da pista. Voltei com tanta
segurança que fui à beira da cerca e pude fazer um
carinho na cara do boi. Definitivamente, agora partia com saudades,
ainda sem partir, permanecia ali, ouvindo tom waits feroz como um cão
rosnando. Os morros pelados recortados pelos passos das vacas que se
foram e deixaram a trilha, e é sobre essa sabedoria que esta
estrada se fez e todas as que virão lá adiante para
aonde lanço meu olhar e tudo é pasto em variados tons
de verde, muitas vezes no alto dos morros dos morros altos, na sua
silhueta umas árvores a fazer crista. Lá longe a serra
se apresenta em tons verdes escuros, sigo serpenteando como o
riacho, os pastos parecem mais povoados, os morros de cada lado vêm
se aproximando e o vale ganha forma de v, as curvas são mais
secas, os barrancos roubam a cena. Careço parar em Careço,
perguntei como uma criança feliz diante dessa cidade palavra
valise. Espreitei um café. Um bolinho de chuva. Tempo ruim
para cruzar a serra, pode chover de repente, se acaso, melhor parar,
esperar, não nas baixadas, hein! É, sem perder tempo.
Vou sem parar. Aquela lonjura, aquele horizonte serrado vem
chegando, a lonjura está perto, a serra é um monte, o
verde é total, petróleo. E la vou cruzando, curvando,
subindo, subindo, subindo, a nuvem escura bem no alto do pico, estou
no meio da nuvem, chovendo, descendo, olhando, freando, descendo,
freando, descendo. Desde lá do alto o vale visto se
apresentava mais verde do lado oriental a vegetação
mais alta, mais espessa. Fui me relaxando, e desfrutando da estrada.