Dormira
pouco. O dia seguinte se casaria a uma hora absurda, haveria outras
noivas e mais importantes. Com um vestido de passeio, que
aproveitaria em outros proveitos. Ao fim da cerimonia convidaria uns
quantos para o churrasco no quintal de casa. Quinze para a uma da
tarde findava a festa. Sabia que uma moça como ela não
podia aspirar a mais. Inda mais que os trinta estavam ali a dobrar a
esquina. “Não sonho acordada”, se repetia. Se bem, que
quase, quase. Aqueles dois palmos de véu, negro, lhe davam uma
penumbra acolhedora. Nem queria pensar, mas o brilho do sacrário
á sua frente iluminava um futuro impossível. Se este
pequeno armário não estivesse pintado com uma fina
camada de ouro, ela seria uma noiva de branco. O canto dos lábios num fremir leve e brincalhão. Com vestido de noiva
e tudo.
Festa de buffet no salão social do Bonfinense. Tudo e tudo e mais um. Tudo tão absurdo que reprimiu a vontade de rir.
Talvez chorar. Tempos atrás, noivara com o filho do dono da
venda. O mais velho. Fazia a inveja de todas as amigas. Não
era nem um Marlon Brando, mas ela tampouco Sophia Loren. Aquele
rapaz, “pouca coisa mais velho”, dizia, era a porta de saída
da miséria. Desembrulhou com suavidade o papel que protegia
seu parco enxoval. Ela mesma o havia bordado, quando mais jovem,
quando ainda não sabia com quem compartilharia aqueles
lençóis. Alguém batia à porta. Eram dois
rapazes, os irmãos mais moços de seu prometido. Não
aceitaram café. Nem a pinguinha que seu pai ofereceu. Tinham
mais o que fazer. Disseram a ela que seu irmão mais velho não
estava capacitado para o casamento. Soltaram a bomba H e se
despediram, educadamente da cunhada, que jamais seria. É de se
supor que os irmãos foram mais explícitos com o seu
pai, que os acompanhou da soleira á porteira. Devolver o anel
era feio? Mas não podia ficar com ele. Não queria. O
derreteu. Ali o tinha, à sua frente, enquanto casava com um
outro, a recordar-lhe que esteve a ponto de tocar com os dedos uma
vida melhor, e disse: sim. Tampouco tinha outras opções.
A recordo velha. Enlutada da cabeça aos pés.
Silenciosa, discreta. Indo à igreja com um balde de plástico
cheio de flores. Umas rosas abertas que não combinavam com
aquela cara triste e pálida. Fico a perguntar a quem as
oferecia.
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