Quando chego à fila do pão, no armazém do Zillo, havia duas mulheres. Com uma delas troco olhares, olhos nos olhos, mais ou menos fixos. Impróprio a princípio, pois não a conhecia. Para sair do limpasse, a saúdo. Ela sorri e retribui com: bem e você? E acrescenta que não estava certa de que eu era eu, mesmo! As palavras indicam, talvez, prudência. Maura, era irmã de um colega de colégio. Ia o ano de 76, me lembro bem da data, porque trabalhava no Cartório do Oswaldo Sampaio, vizinho de sua casa. Nos separavam infinitos cinco anos, eu mais velho, melhor dito, uma eternidade que o próprio tempo cuidou de encurtar. Apesar de que então sabíamos de uma e de outro, mais por terceiros, que por encontros diretos, estes foram se alongando até o ponto da desaparição dos contatos. Enquanto o Marquin lhe corta a rabada com a serra que não respeita anatomias e texturas, Maura e eu colocamos nossa vida em dia, superficialmente, e assim permanecerá, ao que me parece, não aprofundaremos, está tanto em palavras como em subentendidos. Antes de se despedir, Maura que se aposentou pela 3M, se dedica a cuidar da mãe e dos netos, me fez um outro de seus sorrisos francos, ligeiramente - talvez - tristes, que o tempo não foi capaz de mudar, e me diz: ... mas aqui dentro - aponta para a cabeça - tudo continua jovem. Não entendo, até agora, o motivo de sua cumplicidade, e silenciosamente, e também com um sorriso, lhe dou razão, o jovem perdura.
27 de ago. de 2015
26 de ago. de 2015
Tem lógica o sonho?
Estávamos num
pub em El Tarrós, à volta de uma mesa alta e sem
tamboretes, de pé. Jaume passou por nós e sinalizou que
já se ia, e se quiséssemos nos levaria até
Bellpuig. Jaume é baterista do Husqvarna, e não íamos
para Bellpuig e sim para Tornabous, que é o pueblo que queria
mostrar a ela. É um sonho, mas é melhor localizá-lo.
Estes nomes se referem a pueblos ao pé dos Pirineus do lado da
Catalunha. Não há lógica alguma, a priori, pois
estávamos em veículo próprio, quando chegamos, e
a chegada não é aonde o sonho principia. O sonho
principia aonde principia este relato. No entanto quando Jaume nos
oferece carona, no sonho me lembrei que íamos em carro
próprio. E que não passaríamos por Bellpuig,
porque havíamos escolhido ir pelo Caminho e não pela
estrada, porque poderia mostrar a ela alguns casarões perdidos
no meio das plantações de maçãs, o que
não aconteceria se fossemos pela estrada. Dentre os casarões
havia um em particular, que pararia para lhe contar uma história
que se passou comigo ali, em virtude de um chute de cavalo que havia
me aplicado. Saímos com Jaume, que levava no banco traseiro
umas oito mudas de marijuana que plantaria em vasos na sacada de sua
casa. Corria muito. Jaume era o mesmo da vida real. Quando
chegamos, não era Bellpuig, e sim Tornabous. E sem pular
nenhum fotograma me via com ela no salão de festas da piscina
do povoado. Havia um jantar. Joan veio nos receber. Nos indicou a
mesa. E me perguntou por ela. Só então ela ganhou
identidade. Ela estava ali o tempo todo. Não identificada. Foi
uma grata surpresa. Sempre sonhei com ela. Mas acordado. Em sonhos
não havia acontecido. Joan, sim, estava espantado. Porque para
ele, no sonho que era sonhado, eu era cozinheiro, e não
comensal. Fui saudado algumas vezes. Sentia que para eles nunca
havia partido, como se a minha partida houvesse parado o tempo, que
agora retomava. Outro espanto era o meu ao agir tão
naturalmente, diante dela, como se estivesse com ela todo o tempo em
que com ela sonhei acordado. Vou continuar sem nomeá-la. Seu
nome é tão forte que não encontro paralelo para
o substituir. E tenho vergonha de que por qualquer motivo ela venha
ler e se identifique com esse sonho antigo, ou descubra que me
sonha.
Carta ao leitor.
Li tudo a respeito do pacto que antecedeu o 16 de Agosto, caro Gilberto Lauzi. Prós e contras. Com isso consegui uma latinha de sardinha. Diante dela usei tudo que havia lido antes, como se fosse um abridor de latas. Não sei se amo 'meu' país como você, sei que amo à minha moda, e não falo por mais ninguém, senão eu.
De todos os modos abri a lata, e, lá estavam sardinhas sem cabeças. Cantei: "We all need education" então pensei: tudo, absolutamente tudo que pensar, precede a mim, alguém pensou, alguém viveu, alguém inventou estas palavras e as outras que virão até o fim desse insulto. Mas não disse coxinha, que não, disse Bossa-nova. Se aquele era ironia, esse é insulto e digo, porque me parece fundamental. 25 de ago. de 2015
Ter razão, ter sempre razão.
A arte de sempre se ter
razão é um folheto que o filósofo* alemão
deixou, sem publicar, o que aconteceu mais tarde. É um
folheto cheio de engenhos, industrias e ironias, uns conselhos para
conseguir que algumas ideias triunfem, apesar de inconsistentes e
falseadas, ou simplesmente mancas da perna da verdade.
O princípio que
o norteia é a maldade intrínseca do gênero
humano. Assegura que se não fossemos malvados, e no fundo
fossemos honrados, em cada discussão procuraríamos
levar à luz nada mais que a verdade, sem mais preocupação,
e nos somaríamos à ela, sem nos preocuparmos se nossa
ou de outrem.
São trinta e
oito estratagemas para a arte de enganar, de mentir, de enrolar, de
fazer parecer aquilo que é verdadeiro, falso, e aquilo que é
falso, algo magistral.
A manipulação
dos argumentos, ataques ao enunciador, tudo porque ( adoro essa ideia
de usar porque como para que) o espectador conclua que você
está com a razão e o adversário mente. O
importante não é se chegar à verdade, passa
longe disso. O que se pretende é provar que o vampiro é
o doador de sangue, a vitima? Pois louca!
Recentemente uma velha
raposa política de grande peso específico, um que com
certeza leu o opúsculo qual me refiro, sentenciava que a
presidenta em nome da honradez, renunciasse, por ter seu nome colado
a figuras de baixo peso específico. Não basta
responder: que honradez por honradez ele estava no mesmo saco. A
resposta a ser dada era a de que político melhor avaliado é
político enterrado, já não basta ser um morto. O
político não vive de si, mas da não vida do
outro.
.* Schopenhauer.
24 de ago. de 2015
Hegel, ou entre mordaça e a tagarelice.
Afinal, será mesmo preciso dar explicações o tempo todo ou haveria de me refugiar com mais frequência, para frequentar com atenção plena o silêncio?
Como compatibilizar o recolhimento e a paixão febril por comunicar, e com isso compartir a história do meu tempo?
Olha, como é surpreendente como me debato entre receitas contraditórias na hora de encarrilhar o comboio da existência!
Chego à conclusão de que não posso escolher entre uma e outra atitude, senão que viver imerso na relação dialética entre opções aparentemente contraditórias. Se por um lado sou interpelado por beliscadas, me chamando à concentração e à experiência atenta do que acontece, sem espectativas prévias sobre mim, nem sobre os outros, nem como haveriam de ser as coisas. Da outra banda me excita a aventura da comunicação, a tendência de contar histórias oralmente, escrever nas redes sociais, divagar.
Então, melhor a eqüidistância instável.
Modestamente, me identifico com algumas coisas que li de Hegel, o Hegel que está em Marx, aonde não posso abraçar o todo e ao mesmo tempo, compreensivelmente, assim a contradição é a raiz - isso é Hegel em Marx - da vitalidade e do movimento.
Pensava nisso estirado na espreguiçadeira, debaixo da amoreira, tomando alternadas pinga e cerveja, quando passa voando baixo um bando de garças brancas, eis que fui tomado de dúvidas, correr a pegar o celular para fotografá-las, escrever sobre elas que começaram suas vidas entre búfalos de água africanos, em pântanos e albufeiras.e que nos últimos anos acompanham umas vaquinhas tucuras que roem os pastos especulativos
da vizinhança. Ou por fim, contemplá-las e deixar correr o tempo, mas deu nisso! 23 de ago. de 2015
Ungüento de São Fiacre.
Tirado de velhos tópicos, tão velhos como não demonstrados - as dores do amor se guariba viajando e lendo. Hoje por hoje não tenho a menor vontade de sarar qualquer enfado, mas comedidamente faço ouvidos e gosto de passar quilômetros mais que passar páginas. Ainda que seja mais acessível ler que rodar mundo, minha paixão é viajar, e fiz isso de tal modo que por vezes viajava dentro da viagem, e o remédio do remédio, a volta, se tornava outra unção, de uma moléstia incurável. Certa vez, lia a biografia de JJ e fui me cozinhando numa febre, quando me dei conta terminava a leitura num café do Quartier e havia deixado Bellpuig para tão só ver Tom Waits a L'Auditori. Curiosidade, ou o exercício de bisbilhotar, no bom sentido. Ler é olhar por um buraco a intimidade alheia a caminhar pela Rive Gauche ou folhear um Baudelaire numa livraria acerca de Notre Dame. Os egípcios diziam que uma biblioteca é um tesouro de remédios da alma. E de citação em citação se chega facilmente a que somos aquilo que lemos, mais aquilo que vivemos.
Mentira.
Mentira.
Não podemos reclamar, há mentiras para todos os gostos. Meias verdades, pequenas mentiras, mentiras piedosas, malvadas, por necessidade, por falta do que fazer, mas as mentiras reiteradas, premeditadas, estudadas, planejadas com maldade e persistente laboriosidade, são destinadas a crédulos que estão dispostos a tropeçar uma e mil vezes a mesma pedra.
A modalidade em voga é ocultar fatos. Com as atenções focadas noutros pontos, o Sr. Alckmin mata. Mata de sede. Mata na calada. Mata na caruda. Mata oportunidades de gerações em idade escolar, para instaurar o caos na segurança pública, e como solução autoriza a execução como padrão de conduta policial. Os crédulos seguem torpes a "trupicar", na mesma pedra.
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