A mulher e o mar.
Sempre olho pelo
retrovisor e vejo essa mulher, sempre num papel secundário, quase
figuração. Assim que esse texto é uma mudança de spin, aonde
explico a história de uma mulher valente, com caráter, triste,
porque nada é mais triste que a gestão da miséria. “Que tem pra
comer mãe?”
Suas crianças voltando para casa e ela batendo roupa, com as mãos
se dissolvendo de tanto ficar mexendo na água. Um suspiro, um
espirro da alma: “Pão com miolo e ovo frito!” Em algumas
versões acrescentava “a moda da casa!” . Toda a impotência
condensada num renego curto e sonoro. Que mais queriam
que tivesse pão, ovo, nem que fosse pão-duro,
e leite em pó que a igreja andava distribuindo. Havia enviuvado
prematuramente e tudo mudara. Ainda mais. Não por causa da ditadura,
porque esta não lhe afetava em nada. Havia decidido manter intacto
um velho sonho de juventude, para sobreviver. Um anseio
de liberdade que nem a ditadura nem a fome não podiam borrar. Ela
queria ver o mar. Desde sempre. Desde que era uma jovem que havia se
cansado de rio, porque a cada dia lá estava para carregar uns
quantos baldes de água. Um na cabeça e outros a cada mão. Uma cena
de dura cotidianidade que se repetia. O caminho de volta era sempre
mais longo, mas cantavam e se explicavam alguma confidência. As
vezes suas amigas riam de sua teimosia, mas ela não renunciava
àquele azul infinito. Doía que a vida fosse tão ingrata, que não
lhe concedesse o desejo de abraçar com o olhar aquela imensidão. Os
anos passam, e já não era tão jovem. Tivera três filhos. Perdido
o marido. Havia sofrido muito. Mas manteve-se fiel àquela rebeldia
com gosto de sal. Era a sua pequena vingança contra quem lhe havia
escrito um destino tão penoso e desagradecido. Um dia, um dos
rapazes, teve que fazer as malas porque o trabalho o levava longe
daquele lugar esquecido. Uma mudança de roteiro inesperada. Com a
desculpa de ir ver o filho, por fim, veria o mar. “Cheguei a pensar
que morreria sem te ver”, ouviram-na dizer. E o viu. Não sei que
impressão lhe causou o mar, porque não retornou. Morreu,
subitamente, numa vila de pescadores que não havia ouvido falar o
nome antes. Uma vitória
pírrica sobre a época miserável que lhe coube viver.