Almas penadas.
Há algum tempo, dois amigos depois de beberem algumas doses, resolveram se
divertir no cemitério de Bonfim. Os moradores do conjunto
habitacional inaugurado fazia pouco, ao lado do cemitério, guardavam
ainda muito receio e respeito pelos mortos. Se assustavam com o fogo
fátuo. Bêbados os dois, se cobriam com lençóis brancos e corriam
entre os jazigos. Muitos se assustavam, mas o Cabo, que não tinha
medo de assombrações os fez dormir no chilindró um dia e uma
noite. Não sei bem porquê, mas esta recordação me trouxe outra, a
de Ângela e Dalvino. Ela alta e forte, filha de italianos. Puro
caráter e quadril. Dos seus dedos delicados saíam autênticas
filigranas de crochê, como correspondia às senhoras, no entanto
contam os que a conheciam da juventude, que sabia usar o punho
fechado com maestria. Dalvino, era pequeno e calado. Um homem
tranquilo que trabalhava no Departamento de Estradas e Rodagens, e
seu setor alcançava Pirassununga, então uma distância, que o fazia
partir na segunda-feira e voltar na sexta-feira com o por do sol.
Era um mundo sem carros e poucos ônibus interurbanos. Ela se
consumia. Não confessaria por nada daquele mundo, mas temia perder
aqueles olhos azuis e sorriso triste. Se havia criado numa personagem
que não se dava bem com as atividades próprias do seu gênero,
encontros, chás, cafés, bolinho de chuva, mas era uma sentimental.
Numa sexta-feira já
não se aguentava. Necessitava saber se Dalvino a amava com a mesma
exasperação. Então fez. Não descuidou de nenhum detalhe. A
mortalha negra, o rosário entre as mãos, as mãos entrelaçadas, um
círio aceso em cada canto do quarto, uma coroa de flores aos pés da
cama. Quando ele chega, o silêncio espesso reinava. Era
arrepender-se ou levar o jogo até o seu limite e consequências. Era
mulher de opinião. Levou adiante. Não moveu um músculo, nem os
olhos sob as pálpebras. Estava morta, para todos os efeitos. Depois
de uns segundos de perplexidade, Dalvino desata num choro
desconsolado de criança. Se houvesse se dado conta de que àquela
cena faltavam os extras, inevitáveis. Mas não tinha cabeça para
tanto. A casa de um defunto sempre está animada. Mas não podia
pensar. Saiu correndo, pela sala, alpendre, escadas, portão, rua e
lá pedia ajuda. Ela gritava morta de surpresa, do leito de morte:
“Volta, que só queria saber se me amava”. Não lembro o que
aconteceu depois, hoje os encontrei, continuam a ser um estranho
casal.