NEGRINHA
Monteiro
Lobato
Negrinha
era uma pobre órfã de sete anos. Preta?? Não. Fusca, mulatinha
escura, de cabelos
ruços
e olhos assustados.
Nascera
na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos de vida, vivera-os
pelos cantos escuros
da
cozinha, sobre farrapos de esteira e panos imundos. Sempre escondida,
que a patroa não gostava
de
crianças.
Excelente
senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada pelos padres,
com lugar
certo
na igreja e camarote de luxo no céu. Entaladas as banhas no trono
uma cadeira de balanço na sala
de
jantar, — ali bordava, recebendo as amigas e o vigário, dando
audiências, discutindo o tempo. Uma
virtuosa
senhora, em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio
da religião e da moral”,
dizia
o padre.
Ótima,
a D. Inácia.
Mas
não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne
viva. Viúva sem filhos,
não
a calejara o choro da sua carne, e por isso não suportava o choro da
carne escrava. Assim, mal vagia,
longe
na cozinha, a triste criança, gritava logo, nervosa:
—
Quem
é a peste que está chorando aí?
Quem
havia de ser? A pia de lavar pratos?? O pilão?? A mãe da criminosa
abafava a boquinha
da
filha e corria com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em
caminho beliscões desesperados:
—
Cale
a boca, peste do diabo!!
No
entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou
frio, desses que
entanguem
pés e mãos e fazem-nos doer...
Assim
cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com olhos eternamente
assustados. Órfã aos
quatro
anos, ficou por ali, feita gato sem dono, levada a pontapés. Não
compreendia a idéia dos grandes.
Batiam-lhe
sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma
palavra provocava
ora
risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas não andava, quase. Com
pretexto de que, às
soltas,
reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na
sala, ao pé de si, num
desvão
de porta.
—
Sentadinha
aí, e bico!! Hem??
Negrinha
imobilizava-se no canto, horas e horas. — Braços cruzados, já,
diabo!!
Cruzava
os bracinhos, a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo
corria. O relógio batia
uma,
duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão engraçadinho! Era
seu divertimento vê-lo abrir
a
janela e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas.
Sorria-se, então, feliz um momento.
Puseram-na
depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas
sem fim.
Que
idéia faria de si essa criança, que nunca ouvira uma palavra de
carinho? Pestinha, diabo,
coruja,
barata descascada, bruxa, pata choca, pinto gorado, mosca morta,
sujeira, bisca, trapo, cachorrinha,
coisa
ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a
mimoseavam. Tempo houve
em
que foi — bubônica. A epidemia andava à berra, como novidade, e
Negrinha viu-se logo apelidada
assim
— por sinal, achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na
da lista. Estava escrito que
não
teria um gostinho só na vida, nem esse de personalizar a peste...
O
corpo de Negrinha era tatuado de sinais roxos, cicatrizes, vergões.
Batiam nele os da casa,
todos
os dias, houvesse ou não motivo. A sua pobre carne exercia para os
cascudos, cocres e beliscões
a
mesma atração que o ímã exerce para o aço.
Mão
em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se
descarregaria dos fluidos
em
sua cabeça, de passagem. Coisa de rir, e ver a careta...
A
excelente D. Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha
da escravidão, fora senhora
de
escravos e daquelas ferozes, amigas de ouvir contar o bolo e estalar
o bacalhau.
Nunca
se afizera ao regímen novo — essa indecência de negro igual a
branco; e qualquer coisinha, a polícia!!
“Qualquer
coisinha”; uma mucama assada ao forno, porque se engraçou dela o
senhor; uma novena de
relho,
porque disse: — “Como é ruim, a sinhá!”....
O
13 de maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da
alma a gana. Conservava,
pois,
Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Simples derivativo.
—
Ai!
Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...
Tinha
de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade:
cocres, mão fechada
com
raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de
orelha: o torcido, de despegar a
concha
(bom! bom! bom! gostoso de dar!) e o a duas mãos, o sacudido. A gama
dos beliscões: do miudinho,
com
a ponta da unha, a torcida do umbigo, equivalente ao puxão de
orelha. A esfregadela: roda
de
tapas, cascudos, pontapés e safanões à uma — divertidíssimo! A
vara de marmelo, flexível, cortante:
para
doer fino, nada melhor.
Era
pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um
castigo maior para
desobstruir
o fígado e matar saudades do bom tempo. Foi assim com aquela
história do ovo quente.
Não
sabem?? Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha — coisa
de rir — um pedacinho
de
carne que ela guardava para o fim. A criança não sofreou a revolta
e atirou-lhe um dos nomes
com
que a mimoseavam, todos os dias.
—
“Peste”??
Espere aí!! Você vai ver quem é peste. E foi contar o caso à
patroa.
D.
Inácia estava azeda, e necessitadíssima de derivativo. Sua cara
iluminou-se.
—
Eu
curo ela! disse, desentalando as banhas do trono e indo para a
cozinha, qual uma perua
choca,
a rufar as saias. — Traga um ovo!!
Veio
o ovo. D. Inácia mesma pô-lo na chaleira de água a ferver e, de
mãos à cinta, gozando-se
na
prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus
olhos contentes envolviam a mísera
criança
que, encolhidinha a um canto, trêmula, olhar esgazeado, aguardava
alguma coisa de nunca visto.
Quando
o ovo chegou a ponto, a boa senhora exclamou:
—
Venha
cá!! Negrinha aproximou-se. — Abra a boca!!
Negrinha
abriu a boca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa então, com
uma colher, tirou
da
água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o
urro de dor saísse, prática que era
D.
Inácia nesse castigo, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo
arrefecesse. Negrinha urrou surdamente,
pelo
nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber
aquilo. Depois:
—
Diga
nomes feios aos mais velhos outra vez!! Ouviu, peste??
E
voltou contente da vida para o trono, a virtuosa dama, a fim de
receber o vigário que chegava.
—
Ah!
Monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela
pobre órfã, filha de
Cesária;
mas que trabalheira me dá!
—
A
caridade é a mais bela das virtudes! exclamou o padre.
—
Sim,
mas cansa...
—
Quem
dá aos pobres, empresta a Deus! A virtuosa senhora suspirou
piedosamente: — Inda
é
o que vale...
Certo
dezembro vieram passar as férias com “Santa” Inácia duas
sobrinhas suas, pequenotas,
lindas
meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas.
Negrinha,
do seu canto, na sala do trono, viu-as irromperem pela casa adentro
como dois anjos
do
céu, alegres, pulando e rindo numa vivacidade de cachorrinhos novos.
Negrinha olhou imediatamente
para
a senhora, certa de vê-la armada para desferir sobre os anjos
invasores o raio dum castigo
tremendo.
Mas
abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era um crime
brincar?? Estaria tudo
mudado
e findo o seu inferno — e aberto o céu??!
No
enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa
infantil, fascinada pela alegria
dos
anjos.
3
Mas
logo a dura lição da desigualdade humana chicoteou sua alma.
Beliscão no umbigo e nos
ouvidos
o som cruel de todos os dias:
—
Já,
para o seu lugar, pestinha!! Não se enxerga?? Com lágrimas
dolorosas, menos de dor
física
que de angústia moral — sofrimento novo que se vinha somar aos já
conhecidos, a triste criança
encorujou-se
no cantinho de sempre.
—
Quem
é, titia? perguntou uma das meninas, curiosa. — Quem há de ser?!
disse a tia num
suspiro
de vítima. — Uma caridade minha. Não me corrijo, vivo criando
essas pobres de Deus.. Uma
órfã...
Mas, brinquem, filhinhas!! A casa é grande. Brinquem por aí a
fora!!
“Brinquem!!”
Brincar! Como seria bom brincar! refletiu com suas lágrimas, no
canto, a dolorosa
martirzinha,
que até ali só brincara em imaginação com o cuco!
Chegaram
as malas; e logo:
—
Meus
brinquedos!! reclamaram as duas meninas. Uma criada abriu-as e
tirou-os fora.
Que
maravilha! Um cavalo de rodas!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca
imaginara coisa
assim,
tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha
de cabelos amarelos... que
fala
“papá”... que dorme...
Era
de êxtase, o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer
sabia o nome desse
brinquedo.
Mas compreendeu que era uma criança artificial.
-
É feita??... perguntou extasiada.
E,
dominada pelo enlevo, um momento em que a senhora saiu da sala a
providenciar sobre a
arrumação
das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão, o ovo quente, tudo, e
aproximou-se da criaturinha
de
louça. Olhou-a com assombro e encanto, sem jeito sem ânimo de
pegá-la.
As
meninas admiraram-se daquilo. — Nunca viu boneca??
—
Boneca??
repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca?? Riram-se as fidalgas de tanta
ingenuidade.
—
Como
é boba! disseram. — E você, como se chama?
—
Negrinha.
As
meninas, novamente, torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da
bobinha perdurava,
disseram,
estendendo-lhe a boneca:
—
Pegue!!
Negrinha
olhou para os lados, ressabiada, com o coração aos pinotes. Que
aventura, santo
Deus!
Seria possível?? Depois, pegou a boneca. E muito sem jeito, como
quem pega o Senhor
Menino,
sorria para ela e para as meninas, com relances de olhos assustados
para a porta. Fora de si,
literalmente...
Era como se penetrara o céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho de
anjo lhe viesse
adormecer
ao colo. Tamanho foi o enlevo que não viu chegar a patroa, já de
volta. D. Inácia entreparou,
feroz,
e esteve uns instantes assim, imóvel, presenciando a cena.
Mas
era tal a alegria das sobrinhas ante a surpresa estática de
Negrinha, e tão grande a força
irradiante
da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela
primeira vez na vida
soube
ser mulher. Apiedou-se.
Ao
percebê-la na sala, Negrinha tremera, passando-lhe num relance pela
cabeça a imagem do
ovo
quente, e hipóteses de castigos piores ainda. E incoercíveis
lágrimas de pavor assomaram-lhe aos
olhos.
Falhou
tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do
mundo: estas palavras,
as
primeiras que ouviu, doces, na vida:
—
Vão
todas brincar no jardim!! e vá você também!! mas veja lá!! Hem??
Negrinha
ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não
viu nela a fera
antiga.
Compreendeu e sorriu-se.
Se
a gratidão sorriu na vida, alguma vez, foi naquela surrada
carinha...
Varia
a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma — na
princesinha e na mendiga. E
para
ambas é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos
divinos à vida da mulher: o
momento
da boneca — preparatório, e momento dos filhos, — definitivo.
Depois disso está extinta a
mulher.
Negrinha,
coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha alma.
Divina
eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que ela trazia em si, e que
desabrochava, afinal,
como
fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ser humano.
Cessara de ser coisa e de
ora
avante lhe seria impossível viver a vida de coisa. Se não era
coisa! Se sentia! Se vibrava!...
Assim
foi, e essa consciência a matou.
Terminadas
as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa
reentrou no ramerrão
habitual.
Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente
transformada.
D.
Inácia, pensativa, já a não atenazava tanto, e na cozinha uma
criada nova, boa de coração,
amenizava-lhe
a vida. Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita.
Mal
comia e perdera a expressão de susto que tinha nos olhos. Trazia-os
agora nostálgicos,
cismarentos.
Aquele
dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro de seu
doloroso inferno,
envenenara-a.
Brincara ao sol, no jardim. Brincara!...
Acalentara
dias seguidos, a linda boneca loura, tão boa, tão quieta, a dizer
papá e a cerrar os
olhos
para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação.
Desabrochara-se de alma.
A
repentina retirada de tudo isso fora forte demais para a débil
resistência de uma alma, com
um
mês de vida apenas. Enfraqueceu, definhou, como roída de invisível
doença consuntora. E uma
febre
veio e a levou.
Morreu
na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono.
Ninguém, entretanto,
morreu
jamais com maior beleza. O delírio rodeou-se de bonecas, todas
louras, de olhos azuis. E de
anjos...
E bonecas e anjos rodamoinhavam em torno dela, numa farândola do
céu. Sentia-se agarrada
por
aquelas mãozinhas de louça, abraçada, rodopiada.
Veio
a tontura, e uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida,
confusamente, num
disco.
Ressoaram vozes apagadas, longe, e o cuco pela última vez lhe
apareceu, de boca aberta.
Mas,
imóvel, sem rufar as asas.
Foi-se
apagando. O vermelho da goela desmaiou... E tudo se esvaiu em trevas.
Depois,
vala comum. A terra papou com indiferença sua carnezinha de terceira
— uma miséria,
quinze
quilos mal pesados...
E
de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na
memória das
meninas
ricas:
—
Lembras-te
daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca??
Outra
de saudade, no nó dos dedos de D. Inácia: — Como era boa para um
cocre!...
Monteiro
Lobato – 1927
Negrinha, tese para uma analise critica.
O
texto é árido, por monotônico, e monótono, por desértico, a tal
ponto e modo que cansa em suas quatro páginas. Causa o primeiro
estranhamento ao deixar a impressão, desde as primeiras linhas, que
a personagem principal não ficava de pé. Como se tratasse de um
animal, um réptil, tombado sobre algo podre, sendo ele mesmo podre.
Estranha-se o fato de o conto se ambientar em casa de senhora
rica, o que proíbe a
verossimilhança intratextual requerida; qui o texto fura, faz água, porque uma
casa rica cheia de trapos imundos onde se pousa o invertebrado, ser
sem alma, não é verossimilhante! principalmente o trapo imundo!
Negrinha, como
não ficava sobre as pernas, desde os começos, o movimento, ou tal imaginação está
interdita, está interdito também perceber, no texto, se esse
ser\bicho se locomove. Como se traslada??
por mágica??
magia??
- ah a pontapés!
Movimenta-se
desde a escura cozinha até o canto da sala. Sem alma e sem
movimentos próprios, ainda que o narrador tenha permitido ao cuco,
ao menos o movimento, de hora em hora. Assim Negrinha não apresenta
qualquer ato que a assemelhe aos animais, domésticos ou selvagens,
ausente a rebeldia, aparente ou interior, pois sua presença seria sinal de vida,
mas nem sequer há interior.
Sendo
personagem principal, fala muito pouco, entretanto fala muitíssimo menos que personagens fugazes
como as visitas de novembro, mas estas nas poucas linhas que as
descrevem, angelicais, nos permitem saber de suas sensibilidades.
A própria mãe esquece do afago, do carinho e castiga. Negrinha não
é nem um verme.
Me
parece leviano dizer: a esperança transmitida é a de que: a
questão social estaria resolvida com o desaparecimento dos negros, definhando os seus filhos.
A
personagem sem alma e sem movimentos, que se descobre gente e se anima ao
se deparar com o inanimado, uma boneca. Mas, estranhamente a
descoberta da própria alma não transporta a personagem a
compartilhar o mundo dos vivos, ainda que maus estes e mal o mundo,
porque a única opção permitida é a morte, incrível, lenta, por
definhamento. Não há sequer a grandeza de um enforcamento, coisa de
pobres, ou envenenamento, suicídio de médios etc.
Novamente,
pergunto se seria opção de Negrinha, incapacitada de abrigar a
alma, sabe-se lá o porquê, preferir a morte lenta.
É
incrível que Negrinha – com seus sete anos de idade – não
tivesse alma até se deparar com a boneca. Que estranha e rara
fenomenologia, já que estranhamente, dentro do texto, a simples
visão do cuco fazia sua alegria, entretanto quando animada pelo
toque ao inanimado, o que seria motivo suficiente para enfrentar a
empreitada da vida, porque a vida vale a pena, apesar...
É
o que deveria ser uma mensagem positiva frente as maldades da
escravidão que acabara, e o racismo nascente, nascendo disfarçado, apesar
do sofrimento, a vida vale a pena. Ou, estou louco e deveria dizer:
dado os maus-tratos do mundo me deixo morrer!
Digamos que o conto Negrinha não oferece nada mais que isso: não há saída
ao racismo senão que pela morte, vide Negrinha.
Voltemos
a literatura, a economia, ausência de descrição de aspectos
físicos, alem da pretura, inexistência de aspectos psicológicos,
deixa no ar mais esta pergunta: Negrinha é um objeto mínimo ??
e uma resposta: Sim, o quanto basta a se poder
lançar toda a sorte de impropérios, porque não ficou achincalhe
encalhado em dicionário a espera de vestir alguém, todos foram
usados. Não houve maldades que se possa fazer que não foram
descritas, economias mesmo somente com os quinze quilos de carne
preta, fusca, ruça ou...
“Negrinha
era uma pobre órfã de sete anos. Preta?? Não. Fusca, mulatinha
escura, de cabelos
ruços
e olhos assustados”
Aqui
se pode usufruir de um estilo, truque narrativo, que pretende mostrar a vaguidade em que andava o narrador, e assim deixar transparecer, que a
narrativa flui naturalmente, como se não fosse premeditada, como se o narrador
não tivesse claro, objeto e objetivo, no momento de tecer, e com
espanto se desse conta da necessidade de pintar o quadro.
J. L.
Borges dizia prestar muita atenção na abertura das obras, narrativas, e menciona aberturas espetaculares que aguçam o
interesse pelo que virá, como Em busca do tempo perdido ou Don Quixote etc. Não é o caso da abertura de Negrinha de
Monteiro Lobato. Afinal é um texto de 1927 e rica literatura
nacional já havia passado por debaixo da ponte que liga o 19 e o
20, e é bastante infantil a abertura, para ficar no âmbito
literário.
Mas,
afinal, quem está a narrar?? O narrador, mas o narrador é D.
Inácia?? Numa frase – a primeira, o cabeçalho – descritiva
encontramos: Negrinha, Preta, Fusca, Mulatinha escura.
Dos
cabelos: ruços.
Dos
olhos: Assustados.
Quem
havia de ser? A pia de lavar pratos?? O pilão?? Aqui
o narrador pensa por D. Inácia.
Dá ares que tenta a técnica do fluxo de consciência, que já havia sido praticada por Virginia Wolf entre outros e viria a alcançar seu apogeu em Ulisses de James Joyce, entretanto se houve tal tentativa em Negrinha, o efeito não ocorreu. É por isso que me apego a questão, senão vejamos.
A
mãe da criminosa abafava a boquinha...
aqui o narrador narra, mas quem é o narrador??
...da
filha e corria com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em
caminho beliscões desesperados:
Novamente
cabe a pergunta a respeito do narrador, porque o texto deixa a ideia
de um único pensamento, pois o pensamento do narrador e o de Dona
Inácia é uniforme, normatizado, e aplicam os mesmos marcadores da
diferença. Pois senão:
Aqui
D. Inácia:
“ — Quem
é a peste que está chorando aí?”
e
aqui o narrador:
“Quem
havia de ser? A pia de lavar pratos?? O pilão?? A mãe da
criminosa...”
ela
pergunta pela peste e ele deixa claro que a pergunta é tonta, sendo
claro que se tratava da “criminosa”.
Mais
adiante aquela impressão da ausência de movimentos que se tem, no
principio do conto, se confirma: “ levada a
pontapés...” “...Aprendeu a andar, mas não andava, quase...”
Enfim
...Morreu
na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono.
Ninguém, entretanto,
morreu
jamais com maior beleza. O delírio rodeou-se de bonecas, todas
louras, de olhos azuis. E de
anjos...
na
sua parca existência 'almada' foi capaz de desenvolver a ideologia
dominante, uma tragédia. A morte ...com maior beleza. O delírio
rodeou-se de bonecas, todas louras, de olhos azuis... a coisa diz-se
em si e por meio de si.
Aqui
dou voz as vozes estranhas do narrador: Num determinado momento D.
Inácia diz: Brinquem!!
então
entra o narrador, primeiro falando por Negrinha : Como seria bom
brincar! refletiu com suas lágrimas, no canto,... para depois se
instaurar: … a dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em
imaginação com o cuco! Até mesmo o Manual de Redação da Folha
consegue identificar essa parcialidade narrativa, veja bem, que não
é proibido seu uso num conto, porque também não é isso que
discuto.
Sentiu-se
elevada à altura de ser humano. Cessara de ser coisa e de
ora
avante lhe seria impossível viver a vida de coisa. Se não era
coisa! Se sentia! Se vibrava!...
Assim
foi, e essa consciência a matou.
É nisso que insisto, “a consciência de não ser coisa, a matou”.
O narrador não explica o porquê sua carnezinha de terceira recheada
com a 'vibração' de não coisa não pode suportar a vida 'sentida'.
Não carece dizer que carne é de terceira.
Nisso
reside a monotonicidade de Negrinha, como um deserto, em qualquer
parte é o mesmo, constituído do mesmo. Negrinha dá nome ao conto.
E tudo dentro do conto diz o mesmo: Negrinha. Toda a 'rica' sinonímia
da época está presente, ora à boca de Inácia ora na pena do
narrador e por vezes em ambos corações a um só tempo, porque não
se distinguem ainda que se revezem. As achincalhações por muitas,
por vezes aparecem amontoadas na mesma frase, misturando-se,
qualificando-se entre si umas as outras. As maldades da boa mulher se
repetem, mesmo a pior delas, volta aparecer como ruminação.
O
conto Negrinha não tem qualidade literária. Tem contexto histórico,
mas não se contextualiza, é pontual, para quem não conhece a
história do Brasil, nele pouco saberá da escravidão, exceto sua
violência, e a impossibilidade dos negros como Negrinha de
suportarem a liberdade. É essa a noticia que nos dá o conto
Negrinha. Negrinha não tem alma, e quando a ganha de uma boneca de
porcelana, não suporta o peso, a carga da civilização e definha.
É
uma proposta, e pode existir e existe ao lado de tantas outras.
Entretanto creio que deva ser uma opção de cada indivíduo, não
creio que deva ser 'curricular'. Se editores quiserem imprimi-la, que
o façam, somos livres, a livre iniciativa já diz outro tanto, temos
o direito de nos exprimir, porém a União não deve 'bancar' novas
edições de coletâneas de tão pouca qualidade literária, para não
dizer nenhuma.