Estava
lendo o conto Mensagem na Garrafa de E. A. Poe; lá pelas tantas e
totalmente submergido naquele mundo sobrenatural, o barco do narrador
sossobrava depois de engolfado por uma onda gigante e espumosa,
naufragava de proa. Narrador e um velho sueco estavam 'a salvos' em
lugar exato, mas ignorado por mim, todavia descrito por ele;
desconhecia da exatidão, por simples desconhecimento dos nomes das
'coisas' de um barco, certo é que era na popa. Eu tinha esta imagem,
na verdade estava dentro dela, eu vivia a cena que se completava
assim: o movimento das ondas produz cristas e abismos, pois do barco
estando no abismo podíamos ver um imenso navio singrando a crista da
onda, sabia antes de ler que aquele navio baixaria ao abismo e
tocaria justo na proa do nosso barco que afundava começando por ela
e este movimento de alavanca nos arremessaria justo ao outro navio.
Até
então a narrativa era angustiante, acelerada e cheia de socavões.
Deste movimento em diante ganhou uma terrível suavidade. Os
tripulantes do grande navio não nos viam, sim a mim e a Poe, pois o
velho sueco, como já sabia antes mesmo dos acontecimentos
fantásticos, por que o narrador nos dava a saber que aquele homem
não sairia daquele barco, daí que não nos acompanhou. E eu ali a
vê-lo e ele não me via, nem sequer me imaginava, mas tampouco era
visto por aqueles velhos, tão velhos que até as rugas se haviam
gastado. De imediado me metia em A Invenção de Morel, qual o
personagem tampouco é visto pelos hologramas. Então, eu discutia
que fim teríamos? Ao mesmo tempo que sabia que Poe viera antes de
Bioy Casares. E que Bioy Casares tratava da parte luzente da vida,
das indiferenças decorrentes, fortuitas e gratuitas enquanto Poe nos
leva a lado oposto por imanência fosco e inexorável. A balada
final é a imagem fatal. O barco a girar num remoinho sempre rumo ao
centro, ao fim. Há muito disso tudo que se transformou em cenas
eternas de Hollywood.
Hollywood
não brinca. Usa todos os truques da literatura. Principalmente da
Literatura. Todas as figuras e imagens da Literatura da sinédoque à
metalinguagem, passando pela intertextualidade.
O
Artista de Hazanavicius é pura metalinguagem. Ainda que não
exatamente uma produção de Hollywood é Hollywood falando de si e
para tanto é também intertextual. Muito do filme talvez só faça
sentido não só para mim, por que todos já o tenhamos visto desde
os seus pressupostos. Para mim desde antes que Roberto Nóbile –
era o operador - me mostrou a cabine de reprodução no Cine São
Roque em Bonfim Paulista como a coisa se passava, e seu desespero
quando exibia o mesmo filme que algum cinema de Ribeirão Preto - que
começara um rolo antes sua exibição - e se angustiava com a espera
da chegada do segundo rolo, que por vezes atrasou e ficamos, por
isso, a ver a tela completamente branca. Falo disso por que foi
naquela época que nos entupimos de um Kino mais próximo a 'O
Artista' de M. Hazanavicius, e um pouco de nostalgia, claro ninguém
é de ferro, e é disso que se trata N' “O Artista”. Daí que a
presença do cãozinho se torna obrigatória, e é intertextual, e o
é, por se tratar de presença recorrente no cinema mudo, um
arquétipo. A batata da perna desconhecida e a singela tela que
oculta à sua dona o galã, e ela a este, que lhe é desconhecida,
mas a nós não, nunca são, pois este cinema nos permite saber mais
e adiantado, e por vezes de forma exasperante, o que vai
acontecer, como que nos preparando, nos cozinhando para a lágrima da
qual não se pode fugir, pois começamos a dirigir as cenas e
acabamos vivendo; e nossa vida amorosa é sempre de chorar. O
cinema mudo nos dá esta liberdade, e criamos os diálogos, que
sabemos de cor e interpretamos todo o tempo a nós mesmos e choramos
às bicas, pois sabemos o que vai acontecer. E choramos de
arrependimento, quando nos toca na cena ser o malvado, ou por haver
sofrido a malvadeza. O final feliz também nos faz chorar, talvez
mais ainda, pois é exatamente o que queríamos que acontecesse
conosco, o melhor dos Happy endes, menos que se acenda a luz!