30 de mai. de 2011

Nulisseu. Nulisses.

Depois de cada aventura matam ovelhas e cabras, preparam um banquete, bebem vinho segundo o paladar de cada um, vinhos tão bons a que podem adicionar vinte medidas de água e cada um a soma a seu gosto. Cansados, adormecem na areia da praia ao som do agitado mar salgado. Poderiam haver se mandado, depois de furar o olho do gigante globolho, mas não, houve-se por bem tripudiar o derrotado.

Diante disso nossa aventura se semelha cada vez mais chinfrim. O inimigo é: o chefe, o inadimplente, o Bolsonaro, o palhaço deputado, o eleitor do palhaço, a música alta do vizinho, o exterminador de gatos, o vereador bêbado ou o mosquito da dengue. Todo mundo come todo mundo e ninguém come ninguém. Para comemorar: um maço de alface, um frango de plástico, a cereja falsa sobre o bolo dietético, a cerveja de tudo: de boca grande, a primeira, a que xinga argentino, enfim tudo: menos cevada, lúpulo e malte e se formos metidos a bestas e com sorte, teremos o vinho aquoso do famoso “custo benefício” e o gosto de frutas silvestres, que nestes trópicos nunca provamos, sabor a bosque profundo, que a tempos devastamos.
Tenho a terrível impressão de que os mortos nos governam. Que a própria aventura individual foi copiada do google. Um google remoto, anterior ao Google and Co. E desde já anuncio: não é a virtualidade que incomoda, ou o veículo, mas a pobreza do festim pela insignificância da vitória.
Por isso não há redenção. Por isso Leopold Bloom é Ulisses. Por isso Circe é uma prostituta e aceita cartão de crédito. Pois todas as batalhas foram travadas, essa é a tragédia.

28 de mai. de 2011

Palocci não é catupiri, ou a língua de pau.

Não defenderei Antônio Palocci Filho, por óbvio, não sou advogado. Tudo que Palocci parece precisar é de advogado ou advogados, peritos e contadores. Sou cozinheiro e o gourmet é Antônio Delfim Neto. Mas me disponibilizo, para ambos, como tal, a preço de mercado. Pratico uma cozinha anti-ética. Que é isso? Pegunta aquele que pergunta. E para você respondo: cozinho confiando na tua língua de pau, na tua língua rugosa queimada pelo excesso de sal do dia-a-dia, conto com tua incapacidade gustativa, com tua fome ancestral, com teus vícios palatais, com tua ansiedade que te faz glutão. Substituo alho e cebola por arisco, coloco mais pimenta, açúcar no molho, umani – pra você eu digo: umani é açúcar, é sal, é azedo e é doce é pra de vez em quando - , encho de cebola e você come sardinha por aliche. Sardinha é ótimo, mas não é aliche. Contra é melhor que filé, até músculo é, mas não o é. O Mestre Golfeto sabe: depois da higiene vêm outras querências. Queira! É só querer.       

26 de mai. de 2011

Rios sem Discurso. João Cabral de Melo Neto.


Rios sem Discurso pertence à coletânea Educação pela Pedra, publicada por João Cabral de Melo Neto no ano de 1966, pela Editora do Autor. Rio de Janeiro.

Começo pelo fim: “em que se tem voz a se ele combate” . Um rio combate a seca, a voz se opõe ao silêncio. seca|mudez rio|voz assim rio|seca mudez|voz. Não é de qualquer rio ou qualquer voz imperativo combater, sim um discurso único. Mas este rio-único-discurso sempre é enfrasado a partir de palavras que se comunicam em frases menores formando sentença-rio.

Mas há o isolamento da água em poças, das palavras em situação dicionário. As poças não se comunicam com outras e definham, evaporam e são tragadas pela seca terra. As palavras em dicionarizadas catacumbas estão mortas, mudas; são todas mas nada podem dizer neste isolamento.



                  Rios sem Discurso.

A Gabino Alejandro Carriedo.

Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada:
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.

*

O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez:
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloquência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.



O manipulador diz ao leitor que as palavras sem contexto não têm valor. E que um texto ainda que falto de uma palavra, é sempre texto. E nesse caso cabe ao manipulado leitor ir ao cemitério de palavras e buscar-lhe a palavra certa para atingir o texto pleno, posto que sem isso será sempre o texto um aleijão. João Cabral não lhe gostam as metáforas, prefere a simetria, o espelho é o maior criador de simetrias, por isso João Cabral insiste no poema objeto não metafórico que através do espelho|leitor se remonte pleno como um rio que se faz discurso partindo das poças interligadas em fios e esses fios como outros fios d´água e a tantos outros muitos, até o rio-sentença.

Acontece porém que há um impedimento heraclitiano aonde o rio cortado não volta a ser o mesmo, cortado, o discurso não se remonta simetricamente, assim esse rio é um discurso vazio. Resta-me enquanto manipulado leitor a metáfora, da união dos esforços, da comunhão possível já que nos falta a palavra ou nos sobra grandiloquências. Como dizia Karl Marx em algum lugar de A Ideologia Alemã: l´impuissance mise in action. O poema é a própria impotência posta em ação. Uma vez que para Jean Duboi discurso é “linguagem posta em ação, a língua assumida pelo falante”, para Massaud Moisés: o vocábulo “discurso” ostenta polivalência de sentido segundo o contexto.
Assim os rios sem discursos são poemas metafóricos, é recife, que sempre é: acumulo de corais que se depositam, mas sempre quer ensinar, comover e entreter.





25 de mai. de 2011

Pagão.

Antes mesmo que ele fizesse suas mãos rastejarem pela mesa, puxada pelo fura-bolo e o mata-piolho, qual caranguejo mal projetado, desviando-se dos copos, da garrafa pela metade e do numerador de mesa, para ao final obter um toque com o mesmo indicador na imensa unha postiça e vermelha da espalmada mão dela sobre a toalha axadrezada – gritando: oriundi (a toalha) -, ela tascou-lhe a pergunta: “Você acredita em Deus?”. Sem exitar ele disse que sim não sem antes pigarrear. Ela disse que “É! Mas não parece! ”. Nem sabia a parecença dos pagões, mas o problema não está em parecer ou não parecer, em crer ou descrer se é que há um problema e de uma vez por todas, em havendo não é um problema meu (dele) sei que as coisas são infinitas, e até o infinito o é; assim  o problema é divino e não meu. Sua pergunta só tenta transferir o problema para mim, onde ele vai se colocar concretamente  meio a  imensidão, para não se transformar em mais um mágico, faquir ou charlatão, já que sua primeira tentativa de aproximação falhara ele disse isso. Ela levantou-se repuxou a minissaia repugnando-o e se retirando "pagão"! Ele que fabricara um ateísmo pessoal com filigranas gregas e vedantas, ficou até terminar o vinho para pagar a conta, sempre paguei essa conta disse, faltava isso pagão! 

24 de mai. de 2011

Tecendo a Manhã.

Tecendo a Manhã é um poema publicado na coletânea Educação pela Pedra de 1966, pela Editora do Autor, Rio de Janeiro. Poema fundamental da poética de João Cabral. A “tecedura” do poema obedece a um rigor estrutural, associando o sentido coletivo de sua construção e a solidariedade das ações humanas.

Tecendo a Manhã.


Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de ouros galos
que com muitos outros galos se cruzem
e os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

                         2.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Se texto é tecido e o tecido é produto da tecedura da linha, a linha aqui é a união de todos os gritos de todos os galos, uns acordados pelos outros, para que despertem o próximo. João Cabral quer o poema|tecido como uma tenda e ela deve abrigar a todos. (a manhã) é também amanhã livre de amarras, de esqueletos, leve e luminosa como um balão. Os galos em uníssono tecem a manhã, já os homens (operários que tecem) unidos tecem o amanhã. O poema é um manifesto, e como tecido é um pano, um lenço (vermelho por suposto) que deve ser agitado, entretendido, esticado, por e para todos. Pode-se, se se quer, ouvir o grito do manifesto comunista: “operários de todos os povos, uni-vos.   

Felicidade.

Felicidade.

Moroso, mais lento que o adagio. Se a urgência, o faz patinar o aperto errar, demora-se. Extrovertido secreta sua marca brilhante, prova de destemor e caráter. Resoluto. Sua certeza. Carregar-se,coisa pouca, mínima e exata. Essa bastança, obra salomônica, secreção ao dispor da necessidade. Não desperdiça além do caminho e de si. Imprescindível, nem míngua ou sobra além do próprio ser. Sua timidez orgulhosa. Sem alegrias ou tristezas. Vai lento, moroso, adágio. Urgente e duradouro seguir. Sempre. Lento e vagaroso. Inadiável seguir. Sempre feliz o caracol recolhe-se à mínima vibração. Tímido, enche-se daquilo que é, e lá dentro da concha, precisa, conforme, tem-se feliz, aceite, nada maior que ele próprio. Um santo.


23 de mai. de 2011

Fábula de Anfion. João Cabral de Melo Neto.



Fábula de Anfion


  1. O deserto.
( Anfion chega ao deserto)

No deserto, entre a
paisagem de seu
vocabulário, Anfion,

ao ar mineral isento
mesmo da alada
vegetação, no deserto

que fogem as nuvens
trazendo no bojo
as gordas estações

Anfion, entre pedras
como frutos esquecidos
que não quiseram

amadurecer, Anfion,
como se preciso círculo
estivesse riscando

na areia, gesto puro
de resíduos, respira
o deserto, Anfion.

* O deserto

(Ali, é um tempo claro
como a fonte
e na fábula.

Ali, nada sobrou da noite
como ervas
entre pedras.

Ali, é uma terra branca
e ávida
como a cal.

Ali, não há como pôr vossa tristeza
como a um livro
na estante).

*
Sua flauta seca

Ao sol do deserto e
no silêncio atingido
como a uma amêndoa,
sua flauta seca:

sem a terra doce
de água e de sono;
sem os grãos do amor
trazidos na brisa,

sua flauta seca:
como alguma pedra
ainda branda, ou lábios
ao vento marinho.
*
O sol do deserto

(O sol do deserto
não intumesce a vida
como a um pão.

O sol do deserto
não choca os velhos
ovos do mistério.

Mesmo os esguios,
discretos trigais
não resistem a

o sol do deserto,
lúcido, que preside
a essa fome vazia)

*
Anfion pensa ter encontrado a esterilidade que procurava.
Sua mudez está assegurada
se a flauta seca:
será de mudo cimento,
não será um búzio

a concha que é o resto
de dia de seu dia:
exato, passará pelo relógio,
como de uma faca o fio
2 O acaso
O encontro com o acaso

No deserto, entre os
esqueletos do antigo
vocabulário, Anfion,

no deserto, cinza
e areia como um
lençol, há dez dias

da última erva
que ainda o tentou
acompanhar, Anfion,

no deserto, mais, no
castiço linho do
meio-dia, Anfion,

agora que lavado
de todo canto,
em silêncio, silêncio

desperto e ativo como
uma lâmina, depara
o acaso, Anfion.


*
o acaso ataca e faz soar a flauta.

Ò acaso, raro
animal, força
de cavalo, cabeça
que ninguém viu;
ó acaso, vespa
oculta nas vagas
dobras da alva
distração; inseto
vencendo o silêncio
como um camelo
sobrevive à sede
ó acaso! O acaso
súbito condensou;
em esfinge, na
cachorra de esfinge
que lhe mordia
a mão escassa;
que lhe roía
o osso antigo
logo florescido
da flauta extinta:
áridas do exercício
puro do nada.

*
Tebas se faz

Diz a mitologia
(arejadas salas, de
nítidos enigmas
povoadas, mariscos
ou simples nozes
cuja noite guardada
à luz e ao ar livre
persiste, sem se dissolver
diz, do aéreo
parto daquele milagre:

Quando a flauta soou
um tempo se desdobrou
do tempo, como uma caixa
de dentro de outra caixa.

  1. Anfion em tebas
Anfion busca em tebas o deserto perdido

Entre tebas, entre
a injusta sintaxe
que fundou, Anfion,

entre Tebas, entre
mãos frutíferas, entre
a copada folhagem

de gestos, no verão
que, único, lhe resta
e cujas rodas

quisera fixar
nas, ainda possíveis,
secas planícies

da alma, Anfion,
ante Tebas, como
a um tecido que

buscasse adivinhar
pelo avesso, procura
o deserto, Anfion.
*






Lamento diante de sua obra.

“Esta cidade, Tebas,
não a quisera assim
de tijolos plantada,

que a terra e a flora
procuram reaver
a sua origem menor:

com já distinguir
onde começa a hera, a argila,
ou a terra acaba?

Desejei longamente
liso muro, e branco,
puro sol em si

como qualquer laranja;
leve laje sonhei
largada no espaço.

Onde a cidade
volante, a nuvem
civil sonhada?
*
Anfion e a flauta.

Uma flauta: como
dominá-la, cavalo
solto, que é louco?

Como antecipar
a árvore de som
de tal semente?

Daquele grão de vento
recebido no açude
a flauta cana ainda?

Uma flauta: como prever
suas modulações,
cavalo solto e louco?

Como traçar suas ondas
antecipadamente, como faz,
no tempo, o mar?

A flauta, eu a joguei
aos peixes surdo-
mudos do mar.

Poema de João Cabral de Melo Neto. A Fábula de Anfion, publicado junto com Psicologia da Composição e a Fábula de Antiode, em “ O Livro Inconsútil”, Barcelona, 1947.

Anfion, de acordo com a mitologia grega, era filho de Júpiter e Antíopa. Dotado de talento para a música, Anfion recebeu uma lira de Apolo. Ao som dessa lira, construiu a muralha de Tebas; as pedras iam-se colocando umas sobre as outras, sem qualquer esforço. João Cabral substituiu a lira por uma flauta rústica e interpretou o mito com liberdade de criação, associando os motivos temáticos “pedra”|”palavra”.

A Fábula de Anfion é um poema narrativo onde o herói procura despojar a poesia de sua afetividade. O poeta persegue a objetividade da palavra escrita. “... ar mineral isento mesmo da alada vegetação” “... entre pedras... frutos esquecidos... gesto puro de resíduos, respira o deserto...”



e não “estados de alma”. “ Ali, não há como pôr vossa tristeza como a um livro na estante”. O sol do deserto não faz crescer o pão, nem faz a vida vaidosa. O sol do deserto não gera mistérios onde não os há. O sol do deserto vê, compreende, ilumina, por fim preside ele próprio a fome. O sol do deserto é o poema pedra, diz aos românticos.

Anfion se depara com esqueletos no deserto, são esqueletos do velho vocabulário, esqueletos de um vocabulário que tentou seguir Anfion pelo deserto, mas Anfion sabe que é inútil fugir, mesmo ativo como uma lâmina, ele se depara com o acaso. O acaso é o instinto, a vida biológica inescapável, ineludível é a velha sintaxe do mundo, posta no poema como o acaso.


Ó acaso, raro...”
O acaso frustrou o projeto de Anfion ( depuração, mineralização dos objetos), por aparecer inexplicavelmente com toda vitalidade biológica.
O acaso é uma força instintiva. Anárquica. O acaso instintivo e anárquico rompe com a aridez da vida ascética ( deserto) perseguida pelo poeta.

A flauta, eu a joguei aos peixes surdo-mudos do mar”

A flauta como casualidade, fluidez descontrolada, é recusada pelo poeta, pois continuará a persecução ao rigor criativo. Só o poeta disciplina as palavras, palavras-coisas, palavra-pedra. Rigor e formalidade.
A busca pelo poema|parede|muro de inexpugnável aridez é frustrada. A flora|sentimento acaba por ocupar o muro|poema|cidade e nele já não se pode divisar onde começa a hera e termina mineralização objetivada.
O Herói lamenta-se diante da obra, recusa o sentimento|flauta, pois este sentimento colhido ainda em semente|cana|bambu enlouquece e se transforma numa poderosa árvore sonora, e por não poder dominá-la atira-a ao mar para os que não falam e não ouvem.

Há uma busca por libertar-se da sintaxe do mundo. Da injustiça mesma, da ordem das coisas, da vida. Sintaxe injusta “Entre Tebas, entre a injusta sintaxe que fundou...”, mas o poeta é lúcido e percebe a impossibilidade de construir com uma sintaxe outra, isenta e depurada e mineralizada. Afinal construímos partindo do “vocábulo esqueleto” que rebrota como a hera e toma a obra.