16 de jul. de 2019

tempo é dinheiro.




Em meio ao sono pesado, uma pomba arrulha, Casio se desperta bruscamente, seria hora de ouvir sabiás pocas e não rolas. O despertador se deteve às quatro e quinze. Salta da cama para dentro da calça engruvinhada sobre o tapete de arraiolos, mais um salto sai e pela porta; não quer repetir o que se passou da última vez que se atrasou. Sua chefa não perdoa.
Já na rua, Casio indaga aos bolsos: chaves, carteira, celular, reloje de pulso? Ficaram sobre o criado-mudo. O comércio está se abrindo, bancas de jornais, padarias… pouca gente pela rua. Bom sinal, mas já se ouve as portas de aço se enrolando … Que horas serão? Casio se acerca a um transeunte com roupas de grego, por um momento pensa em Diógenes, mas logo se dá conta de equivoca sinapse… aquele é o do barril.
_ Bom dia! Por favor, que horas tem?
_ Quê? Quer que lhe dê a hora? Ah, jovem, hoje não se dá nada, que mania que aqui se tem, quando não têm nada a pedir, pedem a hora. A hora, meu querido, é tudo que tenho, nada mais, nada menos! Me apresento, Cronos. O deus do tempo. Mas como me simpatizei consigo, Casio… Como sei seu nome? Já disse, sou um deus. Te vendo a hora por um real.
Casio, apalpa os bolsos, e encontra umas moedas, cinquenta centavos.
_ Está bem, concedo-lhe um desconto. Cronos pega as moedas e diz: Sete e trinta. E desvanece num piscar de olhos. “ É cedo” pensa Casio e caminha tranquilo; deixa o tempo passar; só começa a trabalhar às nove. Passeia pelo parque, bela manha ensolarada.
Quando chega ao sex-shop onde trabalha, a chefe o recebe com um olhar furioso, diabólico. De aspecto imponente. Suas ancas largas lutam contras as costuras da saia de couro preto. Os enormes peitos se comprimem no vale que formam e querem saltar pelo decote obtuso. Seu pescoço curto, faz pensar que a cabeça está sobre uma bandeja. Seiko grita:
_ Casio! Está uma hora atrasado. Apontando o digital na parede. Agora compreende o desconto feito pelo deus. Resmunga: Oxe! Cronos! Munheca!
_ Deixe de histórias! Vocifera Seiko. Desde a seção de sadomasoquismo com um chicote de couro estalando no ar: para o Dark Room! Vá tirando a roupa.
Casio pensativo se lembra que para os norte-americanos tempo é dinheiro, para os hindus o tempo não existe; os brasileiros sempre perdem hora, nunca é tarde, mas não existe jantar grátis..




17 de jun. de 2019

A mão do homem morto!


A mão do homem-morto.

_ Sabe o que acontece quando um cachorro vê um homem pendurado de cabeça para baixo?
Azevedo, Manfredo e eu mesmo dirigimos nossos sonolentos olhos desde nossas cartas para o Nogueira.
_ Pois, o cachorro acredita que é ele quem está ao revés – prosseguiu Nogueira – e dará um grande salto para cima a fim de se por na posição correta.
Ninguém fez comentário. Afinal o que se poderia cometar? As estórias do Nogueira, uma vez contados, ficam tão hermeticamente fechados, parecem ovo de galinha.
Nogueira tem o costume de nos contar estórias que cabem na metade de um twiter. Isso exaspera Azevedo, que pigarreou para amortecer seu nervosismo. Há vinte horas seguidas jogávamos pôquer. Todos estávamos irritados, mais ainda Azevedo que estava numa rixa de horas com o azar, horas!
_ Vou pedir uma pizza. Anunciou Manfredo.
_ Um momento! Engrossou Azevedo – Quem dá cartas agora?
_ Você – respondeu Manfredo.
_ É sempre a minha vez, porra!
_ Vai ficar nervosa? - Manfredo sorria levemente tentando apaziguar Azevedo.
O pedido saiu assim meio de peperone com catupiry meio calabresa acebolada. Manfredo voltou a seu posto enquanto Azevedo soltava fogo pelas ventas, atirava as nossas cartas e não as distribuía.
_ Nogueira, uma.
_ Eu, duas.
_ Manfredo, nada.
_ Eu também quero duas, disse Azevedo que parecia empalidecer de repente, como uma vela, como um peixe do escuro fundo do mar.
_ Vocês sabem qual é a jogada conhecida como “A mão do homem morto?” - Nogueira voltando à carga. - Nem as pigarreadas de fogo do Azevedo surtiram efeito.
_ É uma quadra de ases, que Billie Selvagen, famoso pistoleiro do velho oeste, tinha na mão quando lhe deram um tiro pelas costas…
_ AAAAARRREEi!!!!! Foi o que ouvimos sair da boca do Azevedo. Sua cara vermelha, sua língua saindo por entre os dentes, parecia um aliem, como se a mordesse… caiu para trás com as mãos fechadas sobre o tapete verde levando todas as cartas da mesa, fichas, cinzeiros, xícaras de café, latas de cerveja… ficou estendido no chão. Abrimos a janela. Entrava uma briza fresca da madrugada junto com os primeiros claros do dia. Manfredo colava os ouvidos no peito inerte de Azevedo. Nos assustamos com a campainha. A pizza.
_ Está morto – disse Manfredo – negaceava com a cabeça. Um infarto.
_ Que devemos fazer, nesses casos? Perguntei.
_ Retirar a quadra de ases da mão dele! Disse Nogueira.

21 de mai. de 2019

alucinação.


Me apresento?
- Pois, Dino Sauro. E digo: Desde que fechei minha videolocadora ganho a vida descarregando e pirateando filmes e shows de música sertaneja universitária para vender pela cidade. Meu amigo Artur Dias Ciénaga vende muito lá na baixada, perto do mercadão. Artur se especializou em vender música com flauta andina… acho que pelo sotaque. Vou ao que interessa, acabo de passar por uma experiência horrível no banheiro.
Estava só experimentando uma coca que me vendeu meu dealer Aécio el Rey de la Falorpa. Notei um forte cheiro de éter e giz, mais giz que éter. Esse canalha temperou com tanto geso que por pouco não se forma uma rolha no nariz. Bom pelo menos posso falar aos neófitos que sou professor e lousa e giz. Guardei o espelhinho com o pino no armarinho do lavabo, foi então que ouvi um ruído estranho vindo de algum lugar dali de dentro.
Fiquei atento ao ralo da ducha, ao ralinho da pia do lavabo, olhei na água parada do vaso sanitário… então o vi, como um flash. Um olho que me observava desde o interior do ralo da ducha.
Soltei um grito, quase quebro o box, bati a porta do banheiro e meu coração batia a ponto de explodir. “ Será que foi o giz do Aécio? - pensei - Impossível, estava tão batizada que não provocaria alucinações nem num terra planista.”
Já passou uma hora. Decido pegar um cabo de vassoura e ir ao banheiro. O primeiro que vejo é a mangueirinha da ducha sobre o tapete de borracha. De repente se agita como uma serpente e umas antenas cumpridas começam a sair pela água do vaso sanitário. As antenas arrastam o resto da coisa. Um tentáculo com uma boca de ventosa horrível com dentes de lampreia se inclinam na minha direção como se estivesse se preparando para me atacar. Mais antenas aparecem por todos os lados, saem da ducha, do ralo, da pia do lavabo e até globo da luz. Começo a dar pauladas a esmo, jogo o cesto do lixo, a toalha, tudo que está a meu alcance. O tentáculo vira uma massa de gel, shampoo, antenas e bocas… dou um pulo para trás, bato a porta atrás de mim. Ainda tentava recompor meu folego e soa a campainha. Pelo olho mágico vejo dois policiais.
- Policia – disse um – temos provas de que vende cds piratas. Delito contra a propriedade intelectual.
taquepariu, aquele civil vadio atrás duns troco ,miúdos apertou o Artur e ele bateu com sua imensa língua nos dentes daquela bocarra” - penso - mas eles voltam à carga
- Também sabemos que possui drogas. Delito de tráfico e associação criminosa.
Porra, até o Aécinho? Estou rodeado de dedos-duros!”
- Vocês tem ordem judicial, digo ao policial que está mais dentro do que fora de casa.
- Claro que temos – e completa com um sorriso melifluo - : Posso usar o banheiro?
- Ah! Esse truque é velho! Eu vi umas cem vezes no C.S.I LA - dizia e já lembrava do pino e o espelho no armarinho - e lá do fundo de mim surge o instinto de sobrevivência.:
- Pelo corredor segunda porta a direita.
Com um obrigado inaudível ele avança pelo corredor e entra no banheiro. O outro e eu ficamos frente a frente, ele na escada eu na soleira. Imediatamente ouvimos os gritos, barulhos agudos de vidros quebrando, ruido de … mastigação com boca aberta?
- Que que tá acontecendo? - grita o policial – entrando, me empurrado, tirando a pistola do coldre fazendo mira como se fora Horácio.
Abre a porta do banheiro com um coice. Ouço um disparo. Mais gritos, logo silêncio.
Recolho tudo que cabe no meu fusca. Creio que é um bom momento para visitar o casal de amigos Luiz e Dimea que foram criar cabras para fazer queijo numa cabana na finca Juncal num povoado afastado no Uruguai.

20 de mai. de 2019

Fakenews.


Meu revólver é bem calado, só conhece seis palavras, quase iguais. Sei que no mundo não há duas coisas iguais. Nem gente, nem revolveres, ou as garrafas de Old Parr, nem um Cohiba, nada, mas seria capaz de distinguir meu revólver entre centenas: a empunhadura, o guarda mato, o cão, mesmo que não o tivesse limado para que não engastalhe na roupa na hora da pressa, mesmo assim o distinguiria.
Pode parecer extravagante que o amante de arma de fogo se refugie numa igreja, mas que fazer se Armando Colto me persegue empunhando uma pistola automática de cor preta azulada com seis balas calibre 45 e que - estão gravadas com seu nome - ele me avisa.
Na pressa percorro o altar e salto para atrás dele no momento que Colto dispara três balas cuspindo fogo. Uma rebota no crucifixo e vem deixando um traço pelo chão de mármore, passa de raspão a meu pé direito. Outros outros três estampidos se ouve como resposta, para dissuadi-lo de se aproximar.
Um mão na empunhadura do meu revólver e a outra no punho dela levanto a cabeça acima do parapeito do sacrário. Vejo os olhos pequenos de Armando e demasiadamente próximos um do outro. Ele está ansioso para demonstrar como soa sua automática. Dois tiros e fazem os círios do altar voarem espatifados, soam mais dois em devolução, salto e me escondo no confessionário. Outro disparo e logo se ouve a resposta.
Levanto-me lentamente e avanço pelo corredor central de revolver em punho. Colto joga sua automática entre os bancos por debaixo dos genuflexórios e se aproxima levantando os braços e cabeça baixa, e dançando como faz boxeador sem talento, para tentar mostrar que sabe os próximos movimentos.
_ Contei teus disparos – diz – teu tambor está vazio.
Puxo o cão com força e cuidado, solto-o e o estalido ressoa na nave e o fogo se vê.
O silêncio congela o ambiente, Armando Colto jaz sobre os ladrilhos hidráulicos, mirando-me com expressão de espanto, enquanto a vida se lhe escapa por um perfeito buraco no meio da testa.
_ Ainda me sobram duas, seu imbecil, você contou os ecos também, como quem aposta em fakenews como verdade.



7 de mai. de 2017

Gongora Bufonia.




Aqui jaz o leitor deste epitáfio.

Tatue estas palavras tuas ou lavre-as
livre-as desta larva livro livre 
louve em guitarra sóis que
 sois vós.

Déjà era cigarro por cigarra
aqui jaz se procura sentido pós zunido
não há senão macabro subentendido.


Gongora bufonia converto em górgona.
Anaximandro, quis te converter em espelho
a Impetuosa, andava desperta na gangorra, archè ápeiron

Dominique.

Morto se jaz o cemitério por falta de gnomo
vamos por porto às nossas penas,
pele suave veludo de azeitona verde 


como se migalhas,

Dominique, de nosso piquenique
nique, nique sempre alegre...

2 de mai. de 2017

Medo.

Medo.

O medo é uma mão
que deforma uma superfície
transparente
que esconde um incêndio.
Medo é as luas tenebrosas de Marte.
Medo
medo ao escuro
medo à penumbra
medo à forma escura no escuro
medo à forma clara no escuro.
Medo de descer uma escada que não sobe.
Medo, fumaça negra fazendo argolinhas.
Medo, argolinhas virando garras,
medo, garras de felinos
medo, garras de galo.
Medo, rabo de coelho
o garoto arranhado pela idade.
Tinha dez, doce, quinze?
O homem arranha o espelho
ao ver o menino fiquei gelado.
Gelo que percorre a espinha
quem é o desgraçado que ronca no meu colchão?
É tua imaginação?
Que merda estou fazendo no chuveiro da casa de um desconhecido, tomando banho sem cuecas?
Sorte, foi Você me explicar o sonho, ainda no meio da noite.


O Pedido.

O pedido.


Um casal elegante jantava num concorrido e luxuoso restaurante. O homem levantou sua taça e piscou ao maître, era o sinal combinado. O maître abriu a porta que separava a cozinha da sala e entrou de pronto um violinista tocando umas notas de Gloomy Sunday. Atrás dele vinha uma banda de mariachis que acompanhavam um homem que cantava True Love com a voz de um menino de coral, mas me parece que tardaram muito em castrá-lo. Em seguida vieram três moças vestidas com maiôs de ciclistas, junto a elas um anão num monociclo se contorcia enquanto ia para frente e para trás Um homem gordo de fraque com lantejoulas multicoloridas mantinha oito pratos de louça girando na extremidade de varas flexíveis. Uma bailarina negra fazia malabares com tochas acesas. Quatro saltimbancos atuaram no trampolim e balancim. Três moças asiáticas vestidas com saias rodadas ocultavam e desvelavam seus corpos entre uma onda de bandeirinhas de cores ondulantes. Por fim, um garção se aproximou com um carrinho de sobremesas, e sobre ele um equilibrista do Himalaia, meio semsal.
O silêncio espectante enchia o local quando o homem se levantou de sua cadeira, se ajoelhou e abriu uma caixa com um enorme brilhante diante dos olhos dela, e lhe perguntou:
_ Quer se casar comigo?
Com sorriso laqueado ela se pôs de pé e disse:
_ Não!
Deu meia volta e se dirigiu para a porta oferecendo a visão do decote infinito do vestido em suas costas, onde se viam as marquinhas brancas do biquíni. Um ar pesado parecia percorrer as mesas. Todos os comensais de sentiram, repentinamente, participes e confusos, e dissimulavam seu espanto se ocupando de seus pratos, e o ruído dos talheres sobre a porcelana rompeu o incomodo silêncio. Os artistas se foram, lentamente. O homem fez novo sinal ao maître:
_ Traga-me a conta, por favor. Hoje não comerei sobremesa.


21 de fev. de 2017

Al Dente

Al dente.
Começaram a discutir na cozinha. Quando ficava nervoso, nunca a olhava diretamente, agora tinha o olhar perdido nos passarinhos imantados na porta da geladeira. Jogou o jornal sobre a mesa forrada de plástico. Algumas folhas soltas voaram preguiçosas, como arraias. Ela contraiu as mandibulas e parecia que seus dentes se quebravam, como se mastigasse tâmaras. Um dente caiu no chão. Os dois notaram que haviam perdido o controle da situação. Houve um silêncio longo, incômodo. Ela pegou uma faca. A luz fluorescente iluminava a borda da mesa. Se agachou e pegou o dente do chão. Botou o dente sobre a tábua e com a faca cortou em lâminas muito finas. Esparramou sobre o espaguete, os files de dentes. Amavam o sabor do alho com 'la pasta'.
À mesa, a tormenta já havia passado, entretanto se discutiu se era espaguete alho e azeite, al aglio et olio, como dizem os oriundis. Havia ainda a questão da pimenta calabresa...




pausa para rezar

1787. Discussão interminável no Congresso do EUA. Benjamin Franklin propôs um descanso para 'rezar', quem sabe uma ajuda dos céus desenredasse o assunto! Alexander Hamilton retruca que não há necessidade de ajuda 'estrangeira'! Os dois eram ateus, mas isso não os impediu de assinar a Declaração de independência: “Sustentamos como evidentes por si mesmas estas verdades: “todos os homens são criados iguais; que são dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis; dentre os quais está : a vida, a liberdade e a busca pela felicidade.”

Ubá


...Ubá... havia combinado comigo e disse ao Beto que passaria essa tarde e noite, aqui, só então seguiria, tenho muito tempo, no entanto, quando me dou conta, estou no trevo que aponta para Coimbra, tudo em seguida Ervália e começa a descida do vale para a Serra do Brigadeiro, deveria ter passado a noite em Ervália, afinal estou em férias, ninguém me espera em lugar algum, se seguir assim construo meu finnegans wake só com nomes de cidades mineiras Ubá, Coimbra, Ervália, Canaã, Araponga, Pedro do Glória...Fervedouro, sigo pela estrada a cerzir as margens do pequeno ribeirão, mas se diz Rio Preto, nesse baixadão dessa invernada estreitada entre elevações montanhosas que bloqueiam os raios do sol, fazendo do meio da tarde uma tarde suspendida que de subto escurecerá sem passar pelo entardecer. Os vidros do carro abertos, a temperatura agradável, o som desligado, só o barulho lerdo do motor que me permite ouvir um carcará. O whatsapp silenciado pela ausência de sinais. Dou toda a atenção à geografia, a fauna é a já dita, um carcará, um boi ao longe, um quero-quero, e nada e nem carros no sentido contrário encontro, não quero pensar em coisas ruins, como furar um pneu, então para fugir inclusive do pensamento de temer, finjo destemor, paro num itororó logo após uma das muitas pontezinhas que cruzam o ribeirão. Cruzo a cerca. Caminho pelo pasto uns passos. Desço até suas águas cristalinas. Admiro e fotografo um pequeno cardume de girinos e outro de possíveis lambaris. Com a mão em concha arrisco um gole da água, é doce, tem cheiro doce. Na infância engoli um lambarizinho vivo para aprender a nadar. Não sei se sei. Uma folha de taioba, me serviu por fim de copo. Pensei em Narciso e uma imagem, que não descifro, reflete na água corrente, então tomo coragem e levanto a cabeça, é um boi. No alto da outra margem do rio, ele balança a cabeça com uma mancha branca na testa entre os olhos, sobre o restante baio, a mancha se parece à sombra de um ciclista curvado sobre o guidão. Eu e Ele ambos imóveis, a eternidade de um eco, seus olhos negros e imensos, penso que, me autorizavam. Mas sei que essa gente só é fiável quando ruminam, remediando, tento subir o barranco andando de costas, para que ele permaneça sob mira. Mas não é tão simples. Ele balança firmemente a cabeça, penso que quer dizer o oposto que havia pensado. Agora tenho acesso ao gramado do pasto do lado oposto ao dele. Subo com os cotovelos. Corro até a cerca e deixo parte da camiseta no arame farpado, e um risco nas costa, que tateio com o dedo, arde e sangra um pouco. Quando chego ao carro, percebo que o pneu traseiro está furado. Olho para o boi e vejo que apareceu do nada todo um rebanho que secundam o boi cara de ciclista. Estão na outra margem. Tento manter a calma. Tenho vontade de deitar no chão. Debaixo do carro. Dormir e acordar na minha cama na casa onde nasci. Tiro uma foto e envio com a localização, se por acaso, pelo whats para o Beto que não me abandona, desde lá, Ribeirão Preto, sei que o sinal pode aparecer em qualquer momento e sumir, quem sabe o Beto saiba como trocar pneus, para que lado desapertam as porcas, horário ou anti-horário, não sei se adiantaria de algo, se tento e nem mexe, em nenhum sentido. Deito de frente com os braços cruzados sobre o capô, com o queixo sobre o antebraço miro os bois que ainda estão lá e miram-me. Olho para o boi da mancha branca. Resolvo espantá-los e dou um berro Xoooooo! Não fizeram um movimento. Um torpe batido de pé, sequer. No entanto fui percebendo que se esboçava uma reação lá detrás a empurrar leve e continuamente os da frente, se isso é certo não sei, sei que mergulharam em bloco no barranco do ribeirão, e apareceram compactos à cerca ao lado do passageiro ausente do carro. Olhei para a cerca, frágil, três fios de arame, não poderia conter aquela gente toda. Pulei sobre a chave de rodas, ela rangeu e cedeu, pensamento correto do sentido anti-horário, para desapertar, nada é casual. Não me lembra como foram as demais porcas, sei que soltei-as todas. Entrei no carro, dei partida, e fiz uma careta tremenda para o boi da mancha branca de sombra de ciclista dobrado sobre o guidão, penso que ele sorriu.
Senti um alívio tão grande que só fui descobrir que não trazia o pneu furado, ao olhar pelo retrovisor uns cem metros adiante, para ver com um pouco de saudade o boi com a mancha branca na testa, e vi o pneu no meio da pista. Voltei com tanta segurança que fui à beira da cerca e pude fazer um carinho na cara do boi. Definitivamente, agora partia com saudades, ainda sem partir, permanecia ali, ouvindo tom waits feroz como um cão rosnando. Os morros pelados recortados pelos passos das vacas que se foram e deixaram a trilha, e é sobre essa sabedoria que esta estrada se fez e todas as que virão lá adiante para aonde lanço meu olhar e tudo é pasto em variados tons de verde, muitas vezes no alto dos morros dos morros altos, na sua silhueta umas árvores a fazer crista. Lá longe a serra se apresenta em tons verdes escuros, sigo serpenteando como o riacho, os pastos parecem mais povoados, os morros de cada lado vêm se aproximando e o vale ganha forma de v, as curvas são mais secas, os barrancos roubam a cena. Careço parar em Careço, perguntei como uma criança feliz diante dessa cidade palavra valise. Espreitei um café. Um bolinho de chuva. Tempo ruim para cruzar a serra, pode chover de repente, se acaso, melhor parar, esperar, não nas baixadas, hein! É, sem perder tempo. Vou sem parar. Aquela lonjura, aquele horizonte serrado vem chegando, a lonjura está perto, a serra é um monte, o verde é total, petróleo. E la vou cruzando, curvando, subindo, subindo, subindo, a nuvem escura bem no alto do pico, estou no meio da nuvem, chovendo, descendo, olhando, freando, descendo, freando, descendo. Desde lá do alto o vale visto se apresentava mais verde do lado oriental a vegetação mais alta, mais espessa. Fui me relaxando, e desfrutando da estrada.




Parte insignificante da população pode passar da religião à cultura.

Parte insignificante da população pode passar da religião à cultura.
Parte insignificante da população pode deixar o refúgio que é a religião, seja ela qual for, para se abrigar na cultura, na razão, na autonomia



oitavo dia

Então, foi para um bar na rodoviária, era o único que não fechava, e por vezes o sol saia em meio as trevas, fez-se o pequeno ajuste. O galo cantou fora de hora. O esforço fora imenso, dar vida à Terra, ao rio, ao mar, os pássaros... Necessito mais anarquia paisagística, pensou, mais sombras... pode ser uma questão de origens... girava no tamborete e a visão do mundo... a falta de humor em diferentes cores, a insistência do chinês em sua tese repetida com apresentações diferentes a cada dose de cachaça... tudo é excessivo, ainda assim é um grande engenho, com o qual poderia recriar meu próprio espírito, mais agudo, tirar peso das preocupações... Ah! Isso é com eles. Cheguei ao extremo, sei. Não fiz falar as árvores, nem os animais a conversarem com pessoas, que rissem ainda vá, nem fiz os pássaros falar, só pios, para que não brigassem em pleno voo... Outra volta no tamborete... Ah! Está bom assim!




Havia três dias que não tomava o café da manhã. Era sempre da mesma maneira. Acordava olhava para o céu, e logo baixava a cabeça. Hoje, no entanto, o céu estava cheiinho de nuvens.

Havia três dias que não tomava o café da manhã. Era sempre da mesma maneira. Acordava olhava para o céu, e logo baixava a cabeça. Hoje, no entanto, o céu estava cheiinho de nuvens.   

Estes são os que gostaram daqueles anos, donde a alegria estava proscrita,

Estes são os que gostaram daqueles anos, donde a alegria estava proscrita, se punia gravemente antes, com a morte por muitas vezes, e até hoje não se pode perguntar o porquê. Sem nenhum traço de pudor, tomaram de assalto o cerne do poder no Brasil. Os três poderes, descaradamente irmanados.  

Cave amanten


Humbert humbert The rapist therapist.


Fim de ganas week
Domingua a noite
com ou sem manha de manhã é fecunda-seira.
Comecedinho a ser, mana.




Lit.





Théâtre des ris et des pleurs
Lit! où je nais, et où je meurs,
Tu nous fais voir comment voisins
Sont nos plaisirs et chagrins.

- Isaac de Benserade



Palco para rir e chorar
Cama, aqui nasci aqui morrerei.
Em ti vivem como vizinhos
nossos prazeres e tristezas.
- Heterodoxidon Traidore.


In bed we laugh, in bed we cry;
And born in bed, in bed we die;
The near approach a bed may show
Of human bliss to human woe.

_ um tal Dr. Johnson






Cave amanten

sempr'ab ti

Moralidade? Se não passa de uma pequena dose de prudência.


Imoral, logo eu, que nem uma gota de prudência bebi!

Musil/Aquiles




Musil. Porta Aquiles ao mundo contemporâneo.


Conhecimento da realidade/realdade. Todos os ideais da ilustração. Diz que a sociedade para que não cheguemos a realidade.;

raiz de menos um é i.


A impossibilidade de se entrar em contato direto com a realidade.


A impossibilidade de se entrar em contato direto com a realidade. Como se cada individuo tratasse de resguardar a realidade na sacralidade. Bom, se isso já era difícil quando o contato era intermediado unicamente pela linguagem, seja a fala. Nesse momento estamos diante de um instrumento, uma ferramenta.



Não dá para tomar partido sem correr o risco de alimentar uma mentira.
Mundo que vivemos, em que

domínio do fetichismo das coisas sobre as coisas em si.

O homem não pode se ver no espelho. São muitas camadas de fantasias.

Domínio da fraseologia sobre a palavra.

Domínio da idolatria sobre sobre a mirada.

A fraseologia.
Não há substituição Cultura da imagem pela da palavra. Oclusão.

liberdade civil. Verdade, beleza, conhecimento. Livre dentro de um labirinto?

infarto

A única seqüela do infarto era o medo de dormir, acordava sempre em meio a noite, provável que fosse para se certificar da vida. Mas naquele dia o medo havia crescido tanto que sequer pegava no sono leve. 

A Barca de Caronte


A Barca de Caronte, porque também há a barca de Flégias.

A lua traça seu rastro trêmulo nas escuras águas do lago. Caronte, aguarda diante da enorme proa em forma de cunha. A barca cabeceia bruscamente pela ondas, sacudindo os marejados passageiros que se apertam como sardinhas a bordo. O velho barqueiro discute com um guerreiro que ainda esta vestido com sua armadura ensagüentada e o pescoço varado por uma lança:
_ Não e não, Heitor! Por mais heróico que fosse em Tróia, não posso te deixar embarcar sem pagar o óbolo, aliás, como toda gente.
_ Caronte, meu velho, os aqueus amarraram meu cadáver ao carro Aquiles e me arrastaram. Disse Heitor, e suponho que foi ai que perdi o porta-moedas. _ Sinto muito. Já deixei muita gente embarcar na carteirada, como Hércules e me custou um ano de cadeia comum, porque sou filho de Nix, um semideus. Isso aqui é uma democracia com suas normas, regras, leis e não uma satrapia aonde todos fazem o que sai da cabeça do quepensacomoquefazfeder. _ Oh, Heitor! Se na barca de Caronte quer viajar, um óbolo terá que pagar. Cantam em coro umas mulheres com longas túnicas negras. _ Helas, já ouviu o coro grego! Então, Caronte aponta com a pá do remo para a praia, terá que vagar durante cem anos pelas margens do Estígia, então subirá grátis na barca. São as regras. Vamos, pista!
_ Não há mais direitos, nos tratam como gado! Diz Psiquê vomitando pela borda do barco. _ Se não está contente vá nadando, senhora! Caronte repara em um novo passageiro, um homem de aspecto solene que veste um manto de linho egípcio.
_ Isósceles! Não te esperava tão cedo, homem!
_ É, logo agora que acabei de desenhar esse triângulo tão cult... se lamenta Isósceles, enquanto deixa o óbolo na mão esquerda de Caronte. Heitor foi se afastando cabisbaixo e quando comprova que ninguém o observa se esconde aproveitando a sombra vinda de uma ilha ao fundo. Dali distingue um homem vestido com camisa aberta no peito e calças de linho escuro. Antony Quinn, o ator. Sim, amigo. Zorba o Grego! - dança uns passos de sirtaki, parece que soa Mikis Theodorakis. _ Não lembra? Caronte lhe fixa os olhos com aspereza e com cara de poucos amigos parece não reconhece-lo. Veja, Caronte, foi tudo tão repentino. Estava no estúdio e ... bem... Quinn fuça nos bolsos, porra! Acho que não tenho moedas!
Nisso, Heitor aproveita a distração de Caronte. Entra na água e se agarra à uma corda e de um salto ágil cai na popa e se esconde detrás do timão. E dali ouve Caronte vociferar: Volto a repetir e repito quantas vezes seja necessário, que não senhor Quinn! Que não aceito Elo, nem Visa e nenhum cartão de crédito!




O progresso em retrocesso. Volta pela pena negra asa que matança brutal se alça e longe de arredar-se, branca brasa adaga e bainha, cu e calça.


O progresso em retrocesso.
Volta pela pena negra asa
que matança brutal se alça
e longe de arredar-se, branca brasa

adaga e bainha, cu e calça.