Alargou o nó da
gravata, enquanto chutava os sapatos para um canto da sala ao mesmo
que tempo a mão direita deixa cair da garrafa sobre a pedra de gelo
o whisky ferruginoso espesso como mel. Ouvia, ao rodar o copo
entre as mãos, o sino da aliança esquecida na mão esquerda.
Sentou-se diante do computador e mecanicamente rodou os feeds das
noticias postadas pelos amigos. Completou o copo rodou-o entre as
mãos. Clicou na música tântrica do amigo iogue, cansado se deixou
enlear e abstraído se fixou na foto de um outro post, duma paisagem
urbana e remota, o carro claro em formas arredondadas, de
para-lamas salientes e também curvos, foi ampliando sobre um
transeunte que vestia um impermeatto, o homem caminhava ao seu
encontro em meio à rarefeita névoa, se distraiu, olhar perdido na
mulher de gabardine preta, que andava adiante. Outro gole de whisky
e aterrizava suave e lentamente numa terra longínqua. Apertou o
passo, em busca do fru-fru que a seda da gabardine preta fazia à
frente. O homem do impermeatto cinza levantou o chapéu e abaixou a
cabeça ao cruzar com a mulher. Nosso herói não pode saber se ela
ignorou o aceno, só que ela seguia impávida. Torceu o pescoço
para saber se o homem do impermeatto a olhava, e não viu homem
nenhum, rua nenhuma, calçada nenhuma, a névoa se espessava atrás
dele melhor ir mais rápido com isso creio que ela subirá pelo
elevado, acelerou o passo e pôs-se lado a lado com ela, não posso
olhar, não olhou, pensou na indelicadeza da atitude estava sem
chapéu sem gravata sem sapatos um desconforto de sonâmbulo se
avizinha que mulher é essa que estou fazendo aqui em meio a névoa
só em meias então virou o rosto para vê-la e seu gato que miava
roçando seus pés o despertou.
25 de fev. de 2014
24 de fev. de 2014
Vindicando o Whisky
.
A
densidade que te dá um bom whisky é inversamente proporcional a que
te dá o mau. Com um belo copo nas mãos, de preferencia bocudo e com
um vidro generoso, daqueles que os dedos podem dar um apertão suave
e com isso sentir a consistência do que carrega. De cara há a
comunicação visual entre o conteúdo, que é o whisky, e o
continente, que é você mesmo, a ponto de tragá-lo.
O
âmbar do malte, que as vezes pode ser bem escuro, e que lhe concede
uma consistência, que sabemos fictícia, pura literatura do
espirito, mas que por momentos se espessa e se torna um bálsamo
pastoso, e curativo, primeiro inundando a boca depois fazendo
massagem na goela, descendo pela boca do estômago, o estômago em
si, depois. O visco do líquido, entre tosco e meigo, se é que isso
é possível, te subjuga com sua natureza selvagem, e te confirma a
forma com que pode te furar por dentro sem que possas enfrentá-lo de
todo, até o ponto que te corrige, e dita as vias pelas quais hás de
te inserir nele, mais do que o contrário, ele em você, porque
começa então o ritual da purificação, quer dizer, o ritual em que
os sacrifícios mútuos dão os seus frutos maravilhosos. Um bom
whisky, então, uma vez vencida esta conjunção enigmática, permite
embelezar a solidão, a companhia, a música, a paisagem interior, um
charuto ou qualquer coisa que te envolva, monumental ou falto de
brilhos.
Dizem
que o verão é péssima geografia para os maltes, porque o corpo não
está para calores, senão que para refrescamentos com uma cerveja,
ou um drinque gelado, mas a miúde havemos de combater o abatimento
pelo calor sufocante com mais abatimento, num exercício de abandono
consciente, como se atravessássemos o deserto sob um edredom, que de
certa modo nos protege do sol.
Sem
se deixar levar pelos excessos, para não nos saturarmos de
realidades longínquas da realidade, o whisky de gosto amadeirado te
proporciona um instante de desvelo, lucubração, de aterrizagem
lenta, de repouso imerecido, no meio de um mundo que pouco a pouco
passa do seu vertiginoso expressionismo a umas cores fixas e planas,
de linhas firmes, que imitam a natureza. Se chegar a cravar-te na
pele este quadro, então haverás encontrado um local para habitar, e
a alma do malte em ti, e não haverá nenhuma opção de perda.
21 de fev. de 2014
Touro Mouro
Nunca
fui comunista. Nunca vivi no comunismo, seja, viver segundo os
preceitos comunistas, dentro do comunismo. Vivi e vivo e viverei no
capitalismo, seja o capitalismo no capitalismo. Esquerda, sim! E se
possível à esquerda da esquerda. Meu primeiro ato blackbloccista
foi pichar a catedral
por ocasião do aniversário do touro mouro, e gritava:
“Troa
na praça o tumulto!
Altivos pincaros - testas!
Águas de um novo dilúvio
lavando os confins da terra.
Touro mouro dos meus dias.
Lenta carreta dos anos.
Deus? Adeus. Uma corrida.
Coração? Tambor rufando...”
Altivos pincaros - testas!
Águas de um novo dilúvio
lavando os confins da terra.
Touro mouro dos meus dias.
Lenta carreta dos anos.
Deus? Adeus. Uma corrida.
Coração? Tambor rufando...”
Vladimir
Vladimirovitch Maiakóvski, via Haroldo de Campos. Tinha o livrinho
que era uma ''tridução'' como diziam com seu irmão Augusto e Décio
Pignatári.
A
segunda foi pichar a frase ''Abaixo a cultura burguesa'' na entrada
do campus. O filósofo Hector Benoit mantinha semanalmente umas
discussões políticas engajadas e lia a revista ''Contra-Corrente''
que era do grupo. Mas sempre fui independente, me deixava seduzir,
mas jamais fui cooptado. Eu vinha da roça, roça, roça mesmo. Já
tinha lido o Manifesto e Ideologia Alemã, e os fragmentos de
Heráclito de Éfeso, quais adorava, por fragmentados... já havia
tentado ler Ulisses de Joyce e a teoria da mais valia. Gostava do
Trotsky, quer dizer, do seu cavanhaque que lhe afilava o rosto... e
tentava imitá-lo sempre que possível, gostava dos títulos que
Lenin dera a algumas de suas obras, como Was Tun?
(O que fazer
?),
ou Un paso adelante dos pasos atrás. O divertido é que comecei a
fazer curso de alemão, para lê-los todos no original, inclusive
Fenomelogie des Geistes, de Hegel, que um dia comprei, de bolso, na
Alemanha, meus amigos alemães riam, posto que nem eles ''conseguiam
ler'', e eram universitários, um Zanharzt (dentista), o que não
quer dizer muito, mas outro era físico.
Ai veio o PT, mas antes saímos a ''nuclear'', e nucleávamos por
toda parte, na rodoviária, em Bonfim, na Filô... Um episódio
hilário se deu por ocasião da primeira participação de um
candidato do PT à prefeitura de Ribeirão Preto. Um tal senhor David
Aidar, que veio até o nosso núcleo para nos falar de seus projetos
e propostas, falou até em pegar armas, já naquele momento eu
entendia o saco-de-gato do mundo e suas confusões e
''interpretações'' do mundo político e dos conceitos, de passagem
digo que eram tão só confusões e acima de tudo confusas. Eu me
apego e me apegava à esquerda por uma tal de ''emancipação'' do
sujeito, e entendia o comunismo com um elo para que ela se
alcançasse, evidentemente que no meu entender, neste estágio
estaríamos no Anarquismo. Era para mim o modo de me livrar
definitivamente de tipos como o Aidar, que abundavam e hoje
transbordam, não só na política profissional, mas por toda a
parte, sujeitos confusos para os quais a cadeia e a cadeira elétrica
é solução para todos os males, e a camisa de força já é
aconchego ou coisa dos direito-humanistas.
Penso
a emancipação como a não dependência crônica de um indivíduo
(capaz de produzir sua vida) frente a seus pares na sociedade e
frente a ela. Um tipo de ética cujas opções não visem um fim
ético para sua ação, mas sejam éticas desde que a opção se dá,
dada. A vida boa, no sentido de vida ética, sendo no momento e não
no futuro, como estudar para ter diploma, ter diploma para ser rico,
ser rico para … mas ter prazer em estudar, em fazer escultura, em
pescar, em filosofar, em tricotar, em fazer pizzas, em amar.. em..
Assim, a emancipação afinaria a moral e a moralidade, que se
fundiriam num só fazer ético, numa só vida boa, sendo cada uma,
uma, e salvaguardadas as diferenças, aonde o eu e a alteridade não
se confundem, mas que todos parássemos frente ao sinal vermelho,
sempre salvaguardando a regra, dada a possibilidade de aleijões
morais. Eu não sou comunista.
DesDeus!
Antes
havia luz, não muita, a suficiente para iluminar os dias e as
coisas. Era a luz de um branco fosco, que foi agarrando uns tons de
pérola, nevoento, entre o cinza proletário e o cinza de risada
malvada que as vezes baixa de algum lugar, de não se sabe onde, e
senta no meio da gente, entre preguiça e orgulho, pronta a te
abraçar. Ele não a notava, distraído como estava, a observar os
objetos com a ideia que cada objeto era igual ao mundo, e o mundo
igual que o objeto, sob uma naturalidade que de tão humana era quase
animal.
Entretanto,
anoiteceu, anoiteceu pela primeira vez, não sabia ao certo quando,
em que instante ou de que maneira, mas havia vindo na calada da luz
para se estabelecer lá, pelos arredores, para sempre, muda e
impávida, com o gesto inconcreto e neres de cortesia. Como se a
noite se soubesse escuridão e já não haveria de estar ali se
demonstrando a ele. Esta primeira noite não era bem escura, não era
toda escura, mais bem era fosca, um escuro fosco, que ainda se podia
se ver e pensar-se nela, e se divisar no meio da própria escuridão.
Reconhecê-lo nela, diria. Ainda que não distinguia de sua raiz os
seus galhos, a semente de onde brotara e por onde se espalhava, e
para aonde, e o local aonde por força haveria de morrer, sim, se
movia como um traço grosso num quadro seco de cores, como um campo
de neve com sua brancura branca e sua branca brancura a fazer
espremer os olhos entre as pálpebras para sacar uma gota de mar, um
mar profundo, como um espelho do mar profundo, como uma negritude
quase-quase negra, como o fosco num quarto escuro, como a última
alba antes da primeira alba. Assim aquela noite, chegou a ser o
completo escuro, e já não podia defini-la, porque no labirinto da
escuridão o labirinto se destruía e os caminhos desapareciam, os
contornos se desfaziam, e o escuro já não era escuro, nem
consciente de o ser, nem ele de ali viver, de viver ali abandonado e
seguro, talmente um bebê voando sem pontos cardeais numa bolha de
opaco liquido amniótico.
O
escuro que já não era escuro, que era puro não-ser, poderia ser a
ausência de tudo ou ao contrário, de todas as coisas comprimidas
numa só, ele inclusive? Poderia ser a sabedoria de tudo ou,
ao contrário, a ignorância definitiva, naquela em que tudo é
possível e tudo pode nela recomeçar?
Lá
onde estava, às foscas, tateando para se mover na devastada mente,
tentando decidir a cor, a natureza, a resolução dos seus próprios
pensamentos.
Calçadas da infâmia.
A estiagem prolongada,
secando o minguado rio Piracicaba. Quem viu o rio Pardo?
Esquálido. O complexo Cantareira secando, com isso não deixa
gota para o Atibaia fluir, desautorizando o fragmentário grego
Heráclito, o rio que passou não volta mais... isso noutras bandas
do estado aqui em Ribeirão...aqui a história é outra, aqui,
fashion é lavar a calçada com xampu, com a água cristalina,
aquífera, escorrendo pela sarjeta. A vassoura virou veículo de
varrer estacionado atrás da porta. A onda é wap, mas quem não tem
wap, tem esguicho, e quem não tem esguicho aperta a ponta da
mangueira, e o jorro se abre em leque e vai varrendo o xampu, as
fezes dos cães... Mas não é tudo, mutirões do dinheiro público
capinando as calçadas estéreis, capinadas, lavadas, enxaguadas,
regadas e nada produzem, nem a mera possibilidade de por elas
caminhar sem ''trupicar''.
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