8 de nov. de 2012

NEGRINHA - texto integral - Monteiro Lobato.



NEGRINHA

Monteiro Lobato

Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta?? Não. Fusca, mulatinha escura, de cabelos
ruços e olhos assustados.
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos de vida, vivera-os pelos cantos escuros
da cozinha, sobre farrapos de esteira e panos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava
de crianças.
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada pelos padres, com lugar
certo na igreja e camarote de luxo no céu. Entaladas as banhas no trono uma cadeira de balanço na sala
de jantar, — ali bordava, recebendo as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma
virtuosa senhora, em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”,
dizia o padre.
Ótima, a D. Inácia.
Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos,
não a calejara o choro da sua carne, e por isso não suportava o choro da carne escrava. Assim, mal vagia,
longe na cozinha, a triste criança, gritava logo, nervosa:
Quem é a peste que está chorando aí?
Quem havia de ser? A pia de lavar pratos?? O pilão?? A mãe da criminosa abafava a boquinha
da filha e corria com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões desesperados:
Cale a boca, peste do diabo!!
No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que
entanguem pés e mãos e fazem-nos doer...
Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com olhos eternamente assustados. Órfã aos
quatro anos, ficou por ali, feita gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a idéia dos grandes.
Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava
ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas não andava, quase. Com pretexto de que, às
soltas, reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num
desvão de porta.
Sentadinha aí, e bico!! Hem??
Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas. — Braços cruzados, já, diabo!!
Cruzava os bracinhos, a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. O relógio batia
uma, duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir
a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se, então, feliz um momento.
Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim.
Que idéia faria de si essa criança, que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo,
coruja, barata descascada, bruxa, pata choca, pinto gorado, mosca morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha,
coisa ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve
em que foi — bubônica. A epidemia andava à berra, como novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada
assim — por sinal, achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que
não teria um gostinho só na vida, nem esse de personalizar a peste...
O corpo de Negrinha era tatuado de sinais roxos, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa,
todos os dias, houvesse ou não motivo. A sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões
a mesma atração que o ímã exerce para o aço.
Mão em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos
em sua cabeça, de passagem. Coisa de rir, e ver a careta...
A excelente D. Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora
de escravos e daquelas ferozes, amigas de ouvir contar o bolo e estalar o bacalhau.

Nunca se afizera ao regímen novo — essa indecência de negro igual a branco; e qualquer coisinha, a polícia!!
Qualquer coisinha”; uma mucama assada ao forno, porque se engraçou dela o senhor; uma novena de
relho, porque disse: — “Como é ruim, a sinhá!”....
O 13 de maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava,
pois, Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Simples derivativo.
Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...
Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade: cocres, mão fechada
com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a
concha (bom! bom! bom! gostoso de dar!) e o a duas mãos, o sacudido. A gama dos beliscões: do miudinho,
com a ponta da unha, a torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda
de tapas, cascudos, pontapés e safanões à uma — divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante:
para doer fino, nada melhor.
Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um castigo maior para
desobstruir o fígado e matar saudades do bom tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente.
Não sabem?? Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha — coisa de rir — um pedacinho
de carne que ela guardava para o fim. A criança não sofreou a revolta e atirou-lhe um dos nomes
com que a mimoseavam, todos os dias.
— “Peste”?? Espere aí!! Você vai ver quem é peste. E foi contar o caso à patroa.
D. Inácia estava azeda, e necessitadíssima de derivativo. Sua cara iluminou-se.
Eu curo ela! disse, desentalando as banhas do trono e indo para a cozinha, qual uma perua
choca, a rufar as saias. — Traga um ovo!!
Veio o ovo. D. Inácia mesma pô-lo na chaleira de água a ferver e, de mãos à cinta, gozando-se
na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera
criança que, encolhidinha a um canto, trêmula, olhar esgazeado, aguardava alguma coisa de nunca visto.
Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora exclamou:
Venha cá!! Negrinha aproximou-se. — Abra a boca!!
Negrinha abriu a boca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa então, com uma colher, tirou
da água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, prática que era
D. Inácia nesse castigo, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente,
pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:
Diga nomes feios aos mais velhos outra vez!! Ouviu, peste??
E voltou contente da vida para o trono, a virtuosa dama, a fim de receber o vigário que chegava.
Ah! Monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha de
Cesária; mas que trabalheira me dá!
A caridade é a mais bela das virtudes! exclamou o padre.
Sim, mas cansa...
Quem dá aos pobres, empresta a Deus! A virtuosa senhora suspirou piedosamente: — Inda
é o que vale...
Certo dezembro vieram passar as férias com “Santa” Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas,
lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas.
Negrinha, do seu canto, na sala do trono, viu-as irromperem pela casa adentro como dois anjos
do céu, alegres, pulando e rindo numa vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente
para a senhora, certa de vê-la armada para desferir sobre os anjos invasores o raio dum castigo
tremendo.
Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era um crime brincar?? Estaria tudo
mudado e findo o seu inferno — e aberto o céu??!
No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria
dos anjos.
3
Mas logo a dura lição da desigualdade humana chicoteou sua alma. Beliscão no umbigo e nos
ouvidos o som cruel de todos os dias:
Já, para o seu lugar, pestinha!! Não se enxerga?? Com lágrimas dolorosas, menos de dor
física que de angústia moral — sofrimento novo que se vinha somar aos já conhecidos, a triste criança
encorujou-se no cantinho de sempre.
Quem é, titia? perguntou uma das meninas, curiosa. — Quem há de ser?! disse a tia num
suspiro de vítima. — Uma caridade minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus.. Uma
órfã... Mas, brinquem, filhinhas!! A casa é grande. Brinquem por aí a fora!!
Brinquem!!” Brincar! Como seria bom brincar! refletiu com suas lágrimas, no canto, a dolorosa
martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco!
Chegaram as malas; e logo:
Meus brinquedos!! reclamaram as duas meninas. Uma criada abriu-as e tirou-os fora.
Que maravilha! Um cavalo de rodas!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa
assim, tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que
fala “papá”... que dorme...
Era de êxtase, o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse
brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial.
- É feita??... perguntou extasiada.
E, dominada pelo enlevo, um momento em que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a
arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão, o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criaturinha
de louça. Olhou-a com assombro e encanto, sem jeito sem ânimo de pegá-la.
As meninas admiraram-se daquilo. — Nunca viu boneca??
Boneca?? repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca?? Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.
Como é boba! disseram. — E você, como se chama?
Negrinha.
As meninas, novamente, torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha perdurava,
disseram, estendendo-lhe a boneca:
Pegue!!
Negrinha olhou para os lados, ressabiada, com o coração aos pinotes. Que aventura, santo
Deus! Seria possível?? Depois, pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor
Menino, sorria para ela e para as meninas, com relances de olhos assustados para a porta. Fora de si,
literalmente... Era como se penetrara o céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe viesse
adormecer ao colo. Tamanho foi o enlevo que não viu chegar a patroa, já de volta. D. Inácia entreparou,
feroz, e esteve uns instantes assim, imóvel, presenciando a cena.
Mas era tal a alegria das sobrinhas ante a surpresa estática de Negrinha, e tão grande a força
irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez na vida
soube ser mulher. Apiedou-se.
Ao percebê-la na sala, Negrinha tremera, passando-lhe num relance pela cabeça a imagem do
ovo quente, e hipóteses de castigos piores ainda. E incoercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos
olhos.
Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo: estas palavras,
as primeiras que ouviu, doces, na vida:
Vão todas brincar no jardim!! e vá você também!! mas veja lá!! Hem??
Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu nela a fera
antiga. Compreendeu e sorriu-se.
Se a gratidão sorriu na vida, alguma vez, foi naquela surrada carinha...
Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma — na princesinha e na mendiga. E
para ambas é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o
momento da boneca — preparatório, e momento dos filhos, — definitivo. Depois disso está extinta a
mulher.
Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha alma.
Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que ela trazia em si, e que desabrochava, afinal,
como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ser humano. Cessara de ser coisa e de
ora avante lhe seria impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!...
Assim foi, e essa consciência a matou.
Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa reentrou no ramerrão
habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada.
D. Inácia, pensativa, já a não atenazava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de coração,
amenizava-lhe a vida. Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita.
Mal comia e perdera a expressão de susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos,
cismarentos.
Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro de seu doloroso inferno,
envenenara-a. Brincara ao sol, no jardim. Brincara!...
Acalentara dias seguidos, a linda boneca loura, tão boa, tão quieta, a dizer papá e a cerrar os
olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação. Desabrochara-se de alma.
A repentina retirada de tudo isso fora forte demais para a débil resistência de uma alma, com
um mês de vida apenas. Enfraqueceu, definhou, como roída de invisível doença consuntora. E uma
febre veio e a levou.
Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Ninguém, entretanto,
morreu jamais com maior beleza. O delírio rodeou-se de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de
anjos... E bonecas e anjos rodamoinhavam em torno dela, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada
por aquelas mãozinhas de louça, abraçada, rodopiada.
Veio a tontura, e uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num
disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e o cuco pela última vez lhe apareceu, de boca aberta.
Mas, imóvel, sem rufar as asas.
Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou... E tudo se esvaiu em trevas.
Depois, vala comum. A terra papou com indiferença sua carnezinha de terceira — uma miséria,
quinze quilos mal pesados...
E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das
meninas ricas:
Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca??
Outra de saudade, no nó dos dedos de D. Inácia: — Como era boa para um cocre!...
Monteiro Lobato – 1927




Negrinha, tese para uma analise critica.

O texto é árido, por monotônico, e monótono, por desértico, a tal ponto e modo que cansa em suas quatro páginas. Causa o primeiro estranhamento ao deixar a impressão, desde as primeiras linhas, que a personagem principal não ficava de pé. Como se tratasse de um animal, um réptil, tombado sobre algo podre, sendo ele mesmo podre. Estranha-se o fato de o conto se ambientar em casa de senhora rica,  o que proíbe a verossimilhança intratextual requerida; qui o texto fura, faz água, porque uma casa rica cheia de trapos imundos onde se pousa o invertebrado, ser sem alma, não é verossimilhante! principalmente o trapo imundo!
Negrinha, como não ficava sobre as pernas, desde os começos, o movimento, ou tal imaginação está interdita, está interdito também perceber, no texto, se esse ser\bicho se locomove. Como se traslada?? por mágica?? magia??
 - ah a pontapés!
Movimenta-se desde a escura cozinha até o canto da sala. Sem alma e sem movimentos próprios, ainda que o narrador tenha permitido ao cuco, ao menos o movimento, de hora em hora. Assim Negrinha não apresenta qualquer ato que a assemelhe aos  animais, domésticos ou selvagens, ausente a rebeldia, aparente ou interior, pois sua presença seria sinal de vida, mas nem sequer  há interior.
Sendo personagem principal, fala muito pouco, entretanto fala muitíssimo menos que personagens fugazes como as visitas de novembro, mas estas nas poucas linhas que as descrevem, angelicais, nos permitem saber de suas sensibilidades. A própria mãe esquece do afago, do carinho e castiga. Negrinha não é nem um verme.
Me parece leviano dizer: a esperança transmitida é a de que: a questão social estaria resolvida com o desaparecimento dos negros, definhando os seus filhos.
A personagem sem alma e sem movimentos, que se descobre gente e se anima ao se deparar com o inanimado, uma boneca. Mas, estranhamente a descoberta da própria alma não transporta a personagem a compartilhar o mundo dos vivos, ainda que maus estes e mal o mundo, porque a única opção permitida é a morte, incrível, lenta, por definhamento. Não há sequer a grandeza de um enforcamento, coisa de pobres, ou envenenamento, suicídio de médios etc.
Novamente, pergunto se seria opção de Negrinha, incapacitada de abrigar a alma, sabe-se lá o porquê, preferir a morte lenta.
É incrível que Negrinha – com seus sete anos de idade – não tivesse alma até se deparar com a boneca. Que estranha e rara fenomenologia, já que estranhamente, dentro do texto, a simples visão do cuco fazia sua alegria, entretanto quando animada pelo toque ao inanimado, o que seria motivo suficiente para  enfrentar a empreitada da vida, porque a vida vale a pena, apesar...
É o que deveria ser uma mensagem positiva frente as maldades da escravidão que acabara, e o racismo nascente, nascendo disfarçado, apesar do sofrimento, a vida vale a pena. Ou, estou louco e deveria dizer: dado os maus-tratos do mundo me deixo morrer!
 Digamos que  o conto Negrinha não oferece nada mais que isso: não há saída ao racismo senão que pela morte, vide Negrinha.
Voltemos a literatura, a economia, ausência de descrição de aspectos físicos, alem da pretura, inexistência de aspectos psicológicos, deixa no ar mais esta pergunta: Negrinha é um objeto mínimo ?? e uma resposta: Sim, o quanto basta a se poder lançar toda a sorte de impropérios, porque não ficou achincalhe encalhado em dicionário a espera de vestir alguém, todos foram usados. Não houve maldades que se possa fazer que não foram descritas, economias mesmo somente com os quinze quilos de carne preta, fusca, ruça ou...

Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta?? Não. Fusca, mulatinha escura, de cabelos
ruços e olhos assustados”
Aqui se pode usufruir de um estilo, truque narrativo, que pretende mostrar a vaguidade em que andava o narrador, e assim deixar transparecer, que a narrativa flui naturalmente, como se não fosse premeditada, como se o narrador não tivesse claro, objeto e objetivo, no momento de tecer, e com espanto se desse conta da necessidade de pintar o quadro.
 J. L. Borges dizia  prestar muita atenção na abertura das obras, narrativas, e menciona aberturas espetaculares que aguçam o interesse pelo que virá, como Em busca do tempo perdido ou Don Quixote etc. Não é o caso da abertura de Negrinha de Monteiro Lobato. Afinal é um texto de 1927 e rica literatura nacional já havia passado por debaixo da ponte que liga o 19 e o 20, e  é bastante infantil a abertura, para ficar no âmbito literário.
Mas, afinal, quem está a narrar?? O narrador, mas o narrador é D. Inácia?? Numa frase – a primeira, o cabeçalho – descritiva encontramos: Negrinha, Preta, Fusca, Mulatinha escura.
Dos cabelos: ruços.
Dos olhos: Assustados.

  • Quem é a peste que está chorando aí? Quem pergunta é dona Inácia.


Quem havia de ser? A pia de lavar pratos?? O pilão?? Aqui o narrador pensa por D. Inácia. 
Dá ares que tenta a técnica do fluxo de consciência, que já havia sido praticada por Virginia Wolf entre outros e viria a alcançar seu apogeu em Ulisses de James Joyce, entretanto se houve tal tentativa em Negrinha, o efeito não ocorreu. É por isso que me apego a questão, senão vejamos. 
A mãe da criminosa abafava a boquinha... aqui o narrador narra, mas quem é o narrador??
...da filha e corria com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões desesperados:
  • Cale a boca, peste do diabo!! aqui fala a mãe de neguinha.
Novamente cabe a pergunta a respeito do narrador, porque o texto deixa a ideia de um único pensamento, pois o pensamento do narrador e o de Dona Inácia é uniforme, normatizado, e aplicam os mesmos marcadores da diferença. Pois senão:
Aqui D. Inácia:
“ — Quem é a peste que está chorando aí?”
e aqui o narrador:
Quem havia de ser? A pia de lavar pratos?? O pilão?? A mãe da criminosa...”
ela pergunta pela peste e ele deixa claro que a pergunta é tonta, sendo claro que se tratava da “criminosa”.

Mais adiante aquela impressão da ausência de movimentos que se tem, no principio do conto, se confirma: “ levada a pontapés...” “...Aprendeu a andar, mas não andava, quase...”


Enfim
...Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Ninguém, entretanto,
morreu jamais com maior beleza. O delírio rodeou-se de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de
anjos...
na sua parca existência 'almada' foi capaz de desenvolver a ideologia dominante, uma tragédia. A morte ...com maior beleza. O delírio rodeou-se de bonecas, todas louras, de olhos azuis... a coisa diz-se em si e por meio de si.

Aqui dou voz as vozes estranhas do narrador: Num determinado momento D. Inácia diz: Brinquem!!
então entra o narrador, primeiro falando por Negrinha : Como seria bom brincar! refletiu com suas lágrimas, no canto,... para depois se instaurar: … a dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco! Até mesmo o Manual de Redação da Folha consegue identificar essa parcialidade narrativa, veja bem, que não é proibido seu uso num conto, porque também não é isso que discuto.

Sentiu-se elevada à altura de ser humano. Cessara de ser coisa e de
ora avante lhe seria impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!...
Assim foi, e essa consciência a matou. É nisso que insisto, “a consciência de não ser coisa, a matou”. O narrador não explica o porquê sua carnezinha de terceira recheada com a 'vibração' de não coisa não pode suportar a vida 'sentida'. Não carece dizer que carne é de terceira.

Nisso reside a monotonicidade de Negrinha, como um deserto, em qualquer parte é o mesmo, constituído do mesmo. Negrinha dá nome ao conto. E tudo dentro do conto diz o mesmo: Negrinha. Toda a 'rica' sinonímia da época está presente, ora à boca de Inácia ora na pena do narrador e por vezes em ambos corações a um só tempo, porque não se distinguem ainda que se revezem. As achincalhações por muitas, por vezes aparecem amontoadas na mesma frase, misturando-se, qualificando-se entre si umas as outras. As maldades da boa mulher se repetem, mesmo a pior delas, volta aparecer como ruminação.
O conto Negrinha não tem qualidade literária. Tem contexto histórico, mas não se contextualiza, é pontual, para quem não conhece a história do Brasil, nele pouco saberá da escravidão, exceto sua violência, e a impossibilidade dos negros como Negrinha de suportarem a liberdade. É essa a noticia que nos dá o conto Negrinha. Negrinha não tem alma, e quando a ganha de uma boneca de porcelana, não suporta o peso, a carga da civilização e definha.
É uma proposta, e pode existir e existe ao lado de tantas outras. Entretanto creio que deva ser uma opção de cada indivíduo, não creio que deva ser 'curricular'. Se editores quiserem imprimi-la, que o façam, somos livres, a livre iniciativa já diz outro tanto, temos o direito de nos exprimir, porém a União não deve 'bancar' novas edições de coletâneas de tão pouca qualidade literária, para não dizer nenhuma.

7 de nov. de 2012

Hoje não sei o que dizer.






Hoje não sei o que dizer.



Há sempre um livro nestas páginas em branco, uma vida nesta cronologia sem espaço.
Sou um estranho neste jardim.
Rapazes e moças " Chefs" do ElBulli- Alqueria - por cinco meses. Neurocirurgiões operando o próprio Deus, Michelangelos descascando o mármore em que Davi se esconde. Então mandam: espátula, sim; faca, sim; Coador chinoix, sim: manteiga clarificada, sim; redução de carne,sim; prato para empratar, sim.
Andam de um lado para o outro carregando a certeza que irão decidir o futuro da vã humanidade.
Há uma compenetração e seriedade que tangem o obtuso. Uma ubiquidade: ser, prato e ingredientes -necessária - . Mas a flauta é mais feliz que o flautista e a música se perde no vácuo dos ouvidos moucos.
Chego a achar que falta vida ao prato, uma fumacinha talvez - aquela fumaça quase protagonista nos filmes cults filmados em San Francisco e bairros pobres de N.Y. - que seja uma fumacinha subindo do filé, como sinal de vida, ou de vida vazando,que viver é vazar em..., algo além da obtusidade fulgurante do fenótipo "belo". E por pequeno que seja, um dedal, ele transbordará se uma cabeça de alfinete ai for vertida, por sua falta.
Acético, pasteurizado é este mundo privado de qualquer barroquismo - ainda que se permita um certo rococó da bisnaga de redução de balsâmico ziguezagueando pelo prato, da erótica gota de caldo de carne grosso como fosse um purê finíssimo, colocada ali para que jamais termine de incidir sobre o fundo branco de um prato que em sua demasia é branco.



6 de nov. de 2012

Meta. Mito.


Meta. Mito.
Refúgio.




Consciente ou não dos nossos limites, revoltados contra eles, ou não; somos infalíveis construtores de mitos, ainda que à nossa semelhança, e para tanto largamos para trás as restrições de que padece a nossa existência. Ao mesmo tempo estímulo e refúgio, o mito pode nos induzir à passividade, se praticamos a contemplação. Caso contrário, a ação mitológica, e se a imitamos, como ação, a convertemos em meta, em modelo, creio que é isso que nos convém emular.
Hoje como na antiguidade vale a mesma cosmogonia dos deuses, eles se apaixonavam e lutavam como homens, é certo porém que venciam a morte.
Deixando de lado as personagens imaginárias, a história está cheia de homens e mulheres reais que se transformaram aos olhos de seus coetâneos em figuras míticas. Getúlio, Roberto Campos, Lula, Dilma, Golberi, Hebe, Ana Terra, Luísa Erundina, Hilda Hilst, Aírton Senna, FHC, Delfim Neto, Pelé, Paulo Francis, Joana D'Arc, Alexandre o Magno. Projetamos nos mitos nossos sonhos e frustrações.
A mente da criança mergulha com entusiasmo no universo mágico, He Man, Dart, sei lá faz tempo que não sou criança, mas ao mesmo tempo estes heróis são humanos e lendários, quase sempre partem da realidade, ainda que revestida de imprevistos luxuosos.
Nunca me esquivei com desânimo ao contato com a cara áspera da realidade, é uma tentação, por demasia, banal, rasa. Afinal dizemos sempre: Cara feia é fome.
Não me deixo enredar pela dimensão épica a que se propõem acentuar às meras competições esportivas, são meras competições esportivas, ou mesmo ludicidades banais, mesmo até e por vezes lúbricas. Daí e desse convívio e de contrastarem-se, nessa lubricidade, vem a distorção; os discursos céticos e pessimistas. É a mais pura impotência. L'impuissance mise en action. A impotência posta em ação. O acionamento da impotência.
Em momentos de dureza e dificuldade, nem a resignação derrotada nem a utopia imprudente são as opções mais recomendadas, mas, quiçá, a ambição responsável, mas se o muro infranqueável rachou!
Creio que nos falta alguma audácia, a audácia necessária, para ir além, tudo sem abandonar a lucidez. Aqui reprendo reaprendo o sentido do mito, que a miúde está ou é percebido como um convite a audácia. Não podemos nos permitir nem a indiferença nem a inibição.
Passos para adiante e com determinação, é o grito de guerra, e como referência o empenho e a capacidade de liderar. Não se trata de nos darmos poderes desumanos, mas nos ancorarmos em valores cívicos e nobres. Temos que ser mais ambiciosos, como classe, enfim, como sociedade.
É duma sociedade com riqueza cultural, social e econômica que brota o indivíduo rico econômica-social e culturalmente. O movimento contrário só nos faz onanistas ególatras.    

24. bah! histórias...


QUARTA-FEIRA, DEZEMBRO 06, 2006

24. bah! histórias...

HISTÓRIA DEVERAS INTERESSANTE DE COMO UM PRETENSO ESCRITOR DESOBRIGADO OBRIGOU-SE A EXPLICAR A PRETENSO CRÍTICO NÃO PASSÍVO LEITOR DA HISTÓRIA QUE AMBOS SABIAM  NA QUAL NÃO PODIA HAVER COMEÇO NEM FIM NEM DEVERAS INTERESSANTE HISTÓRIA.
Zénão tem à mão ainda o maço de folhas envoltas num almaço impermeabilizado por uma fina camada de gordura onde se lê: O Beijo
- E este O Beijo?
- Este será o último capitulo do livro, por ser ele possível, não quererá acabar em desdobramentos, mas num beijo.
- Capitulo ou epílogo? Pergunta Zénão.
- Não importa serão as últimas páginas e por agora quero sua critica.
- E sua própria opinião?
- É sempre favorável às minhas crias.
- E onde entra esta poesia que li? Pergunta Zénão.
- Imaginei o personagem usando-a como instrumento de demonstração de sensibilidade, uma criança que empurra o copo cheio de leite só para vê-lo ele o leite derramar.
- Já têm nome esses personagens?
- Têm. Luis e Inês.
- Não era Laura?
- Não era Laura! Era?
- Não sei, acho que era!
- Você acha que ia por o nome dela?
- Não sei não, por que não?
- Acho que ela não ia gostar!
- Por que não?
- Você viu hoje?
- O que? Ela dançando com você?
- Então eu não esperava por aquilo! Ela tem atitudes que nem me surpreendem mais, dada a constância da inconstância.
- Mas se colocasse o nome dela isso ia mexer com você e permitir mais liga.
- Onde você viu isso?
- Vê os compositores, quando compõem para elas.
- Não é isso não Zenão, isso é pra acalmá-las.
- Deixa isso pra lá, como é o enredo então?
- É simples e ao mesmo tempo complexo.
- Como assim?
- Ela lhe dá papinha. Hahaha!
- E o que significa isso?
- Sabe Zénão, Luis não consegue transpor o círculo, parece que Virgilio o abandonou. E ela olhando desde dentro o vê invisivelmente familiar, mas não o permite descer, e nem não impede.
- Quer saber? Disse Zénão e continuou, Luis quer o perigo, mas o teme. Cobiça, mas odeia a dádiva. Acabará por ser vencido e não aceita. sabe que viver é uma luta continua e absurda e inapelavelmente fatal.
- Resulta em que, meu querido?
- Adaptar-se ao poder da fraqueza.

- Acho que sim Luis sabia que era mais fácil trepar com ela que a amar, como naquele dia que ela falou do tal Molyna e Luis já sabia e Luis jogador não quis umas cinco vezes fazer os caprichos dela e ela ardendo de desejo tanto que até seus olhos estavam brilhilubrificados e Luis dizia “eu te amo”. Quase a obrigava a dizer o mesmo por um pouco de sexo. Então Luis escarnecia dele mesmo para ela relaxar e então ela o deixava e saia atrás do Molyna, tudo porque Luis realmente a amava. O sexo em si é para Luis uma efeméride, e muitas vezes sustinha-se com putas e punhetas, e definitivamente queria com Laura sexo e amor.
- Isso é do mais refinado masoquismo! Diz Zénão.
- Como assim?
- Como? Negar sexo à mulher que insistentemente se ama! Que é isso senão masoquismo!
- Calma! No caso sádico também se ele só fazia seus próprios caprichos.
- Esse Luis estava era com muito medo, isso sim!
- Pode ser.
- Pode ser não, é, ele tinha era medo dela!
- Medo como?
- Medo! Medo do sexo com ela.
- Medo nada andava platônico cada qual com sua história que não incomodava o outro, nem ciúmes, nem desdém.
- Nossa você está louco, meu amigo, pensei que tinha se curado. Cadê o desejo?
- Às vezes o desejo...
- Quê que é isso?
- Não deixará contá-la nunca, quantas mudanças tanta interferência?
- Conte.
- Você não acha interessante se jogar tanto, a ponto de não restar outra coisa senão o jogo.
- Sim, mas não lerei.
Lere lerei lere lerei... Cantarola Luis. E segue - O texto exige de mim, ele arranca de mim o que eu não queria dizer à luz do consciente, imagina agora que eu que sou personagem escapulido do escritor e por ele esculpido, matreiramente a esguivar entre as bananeiras limitantes verdejantes que ele plantou para ser o meu jardim, dizer a ele que esse era o modo mais cruel e possível de viver uma paixão, mas eu queria que ao ler soubesse de s

5 de nov. de 2012

Os Arbitros e a Conspiração.


Os Arbitros e a Conspiração.


O Arbitro é uma mistura de deus e homem. Deus pelo poder definitivo. Sua onipresença no campo de jogo. Sua onisciência etc. Homem, pela humanidade do erro. Este final de semana houve por bem e por mal, mundo afora, da arbitragem cometer erros importantes, que em campeonatos 'justos' 'apertados' como o inglês, podem ter influência direta não só no resultado da partida, mas no resultado final do campeonato. O mesmo aconteceu em Valência, Mestalla. Aconteceu ontem na bela arena do America mineiro, no jogo do Galo. No jogo entre Ponte Preta e Fluminense – verdadeiro roubo – duas falhas 'clamorosas' do colegiado. Em outra partida do Pó-de-arroz. Aliás, o Flusão sem tais ajudas teria uns 9 pontos menos. Ou será que não se trate da minha vontade de ver o Atlético mineiro campeão, por ser uma equipe mais anódina que o tricolor das laranjeiras.
Entretando devo agradecer a existência destes abnegados senhores, porque não poderia apitar, como já tentei, uma partida entre casados e solteiros aqui do bairro e depois do prélio almoçar sossegadamente com minha mãe.
O certo é que acertam muito, mais acertam que erram. É um trabalho difícil. E mais digo: Cumprem função social das mais importantes: serem os culpados pelos fracassos alheios. Além de servirem de álibi a seguirmos com fé na grandeza do nosso time, ainda que tudo o mais diga em contrário.
Se venta é porque venta, se faz calor é porque faz calor, é o horário de verão o negócio é queixar. Não chovia, agora chove é certo, está aberta a temporada de queixas pela chuva.
Todavia, agradeço a valentia desses heróis não reconhecidos. Mas também sei que temos que manter viva a conspiração, pois que senão, acaba a farra.  

2 de nov. de 2012

FEITICEIRO DAS PALAVRAS, CABOCLO UNIVERSAL


JOÃO GUIMARÃES ROSA 


-Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente - depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucaia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde um criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda parte. 
Grande Sertão: Veredas 
Vivo no infinito; o momento não conta. Vou lhe revelar um segredo: creio já ter vivido uma vez. Nesta vida também fui brasileiro e me chamava João Guimarães Rosa 

Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente. Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como o sofrimento dos homens. 
"Às vezes, quase acredito que eu mesmo, 
João, seja um conto contado por mim." 
Que nasci no ano de 1908, você já sabe. Você não deveria me pedir mais dados numéricos. Minha biografia, sobretudo minha biografia literária, não deveria ser crucificada em anos. As aventuras não têm princípio nem fim. E meus livros são aventuras; para mim são minha maior aventura. 
Em 1967, João Guimarães Rosa seria indicado para o prêmio Nobel de Literatura. A indicação, iniciativa dos seus editores alemães, franceses e italianos, foi barrada pela morte do escritor. A obra do brasileiro havia alcançado esferas talvez até hoje desconhecidas. Quando morreu, em 19 de novembro de 67, Guimarães Rosa tinha 59 anos. Tinha-se dedicado à medicina, à diplomacia, e, fundamentalmente às suas crenças, descritas em sua obra literária. Fenômeno da literatura brasileira, Rosa começou a escrever aos 38 anos. Depois desse volume, escreveria apenas outros quatro livros. Realização, no entanto, que o levou à glória, como poucos escritores nacionais. Guimarães Rosa, com seus experimentos lingüísticos, sua técnica, seu mundo ficcional, renovou o romance brasileiro, concedendo-lhe caminhos até então inéditos. Sua obra se impôs não apenas no Brasil, mas alcançou o mundo. 
"A beleza aqui é como se a gente a bebesse, em copo, taça, longos, preciosos goles servida por Deus. É de pensar que também há um direito à beleza, que dar beleza a quem tem fome de beleza é também um dever cristão." 

Grande Sertão: Veredas 
Três dias antes da morte, Guimarães Rosa decidiu, depois de quatro anos de adiamento, assumir a cadeira na Academia Brasileira de Letras. Homem de temperamento emotivo e sensível, foi traído pela emoção. Os quatro anos de adiamento eram reflexo do medo que sentia da emoção que o momento lhe causaria. Ainda que risse do pressentimento, afirmou no discurso de posse: "...a gente morre é para provar que viveu." 
Joãozito, como era chamado pela família, nasceu em 27 de junho de 1908, em Cordisburgo, cidadezinha mineira próxima a Curvelo e Sete Lagoas, área de fazenda e engorda de gado. Viveu lá durante dez anos. João era filho de Floduardo Pinto Rosa e de Francisca Guimarães Rosa. O casal teve outros 5 filhos. Todos depois de João. 

"Não gosto de falar em infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá excesso de adultos, todos eles, os mais queridos, ao modo de policiais do invasor, em terra ocupada. Fui rancoroso e revolucionário permanente, então. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom, de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas." 
Aos seis anos, Guimarães Rosa leu o primeiro livro, em francês, LES FEMMES QUI AIMMENT. Aos dez anos, vai para Belo Horizonte, morar com o avô. Está no ginasial, e freqüenta a mesma escola que Carlos Drummond, o futuro amigo.

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"Ficamos sem saber o que era João 
e se João existiu 
de se pegar" 
Carlos Drummond de Andrade 
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Até ingressar na Faculdade de Medicina, João Guimarães Rosa obtém licença para freqüentar a Biblioteca da Cidade de BH, dedicando o seu tempo, além dos estudos, às línguas, à História Natural e aos Esportes. Em 1930, formado, o médico vai exercer a profissão em Itaguara, onde fica por dois anos. Guimarães revela-se um profissional dedicado, respeitado, famoso pela precisão dos seus diagnósticos. O período em Itaguara influi decisivamente em sua carreira literária. Para chegar aos pacientes, desloca-se a cavalo. Inspirado pela terra, costumes, pessoas e acontecimentos do cotidiano, Guimarães inicia suas anotações, colecionando terminologias, ditos e falas do povo, que distribui pelas histórias que já escreve. 
"Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago..." - foi o que pensei na ocasião. De pensar assim me desvalendo. Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter. Apertou em mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo; que, quando notei que estava com dor-de-cabeça, e achei que por certo a tristeza vinha era daquilo, isso até me serviu de bom consolo. E eu nem sabia mais o montante que queria, nem aonde eu extenso ia. 
Grande Sertão:Veredas 
Nos tempos da Faculdade, Guimarães Rosa dedica-se também à literatura. Levado pela necessidade financeira, escreve contos para a revista O Cruzeiro. Concorre quatro vezes, em todas sendo premiado com cem mil réis. Na época, escreve friamente, sem paixão, preso a moldes alheios. Em 32, ano da Revolução Constitucionalista, o médico e escritor volta a Belo Horizonte, servindo como voluntário da Força Pública. A partir de 34, atua como oficial médico em Barbacena. Paralelamente, escreve. Antes que os anos 30 terminem, ele participa de outros dois concursos literários. Em 1936, a coletânea de poemas MAGMA recebe o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras. Um ano depois, sob o pseudônimo de VIATOR, concorre ao prêmio HUMBERTO DE CAMPOS, com o volume intitulado CONTOS, que em 46, após uma revisão do autor, se transformaria em SAGARANA, obra que lhe rendeu vários prêmios e o reconhecimento como um dos mais importantes livros surgidos no Brasil contemporâneo. Os contos de Sagarana apresentam a paisagem mineira em toda a sua beleza selvagem, a vida das fazendas, dos vaqueiros e criadores de gado, mundo que Rosa habitara em sua infância e adolescência. Neste livro, o autor já transpõe a linguagem rica e pitoresca do povo, registra regionalismos, muitos deles jamais escritos na literatura brasileira. 




ROSA - VAQUEIRO DOS SERTÕES DOS GERAIS 
Foto de "O Cruzeiro", tirada em 1952, quando aos 44 anos de idade, foi rever seu velho sertão. Viagem de muitas e muitas léguas, transportando uma boiada 



Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flor. O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nestas fantasias. Dormi nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo o que é bonito é absurdo - Deus estável. Ouro e prata que Diadorim aparecia ali, a uns dois passos de mim, me vigiava. Sério, quieto, feito ele mesmo, só igual a ele mesmo nesta vida. 
Grande Sertão: Veredas 
"Chegamos novamente a um ponto em que o homem e sua biografia resultam em algo completamente novo. Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida, e, a rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico, conheci o valor do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte." 
Duas coisas impressionavam o Guimarães Rosa médico: o parto e a incapacidade de salvar as vítimas da lepra. Duas coisas opostas, mas de grande significado para ele. Segundo a filha Wilma - que lançou na década de 80 o livro RELEMBRAMENTOS, GUIMARÃES ROSA, MEU PAI, uma coletânea de discursos, cartas e entrevistas concedidas pelo escritor -, ele passava horas estudando, queria aprender, rapidamente, a estancar o fluxo do sofrimento humano. Logo constatou que seria uma missão difícil, se não impossível. A falta de recursos médicos e o transbordamento de sua emotividade impediram que ele prosseguisse a carreira de médico. Para a filha, João Guimarães Rosa nasceu para ser escritor. A medicina não foi o seu forte, nem a diplomacia, atividade a que se dedicou a partir de 1934, levado pelo domínio e interesse por idiomas. Rosa tinha conhecimento profundo de húngaro, russo e chinês, além de falar alemão, inglês, francês, romeno e italiano, entre outras línguas. O conhecimento de línguas estrangeiras seria um aliado de Guimarães Rosa, especialmente no que diz respeito à tradução da sua obra, já que o escritor mineiro se notabilizou pela invenção de vocábulos, além do registro da linguagem sertaneja brasileira, inacessível a tradutores estrangeiros. 



O homem nasceu para aprender, 
aprender tanto quanto a vida lhe permita. 

Em 38, Guimarães Rosa é nomeado consul-adjunto em Hamburgo, permanecendo na cidade até 42. Durante a Segunda Guerra, passa por uma experiência que detona seu lado supersticioso. É salvo da morte porque sentiu, no meio da noite, uma vontade irresistível, segundo suas palavras, de sair para comprar cigarros. Quando voltou, encontrou a casa totalmente destruída por um bombardeio. A superstição e o misticismo acompanhariam o escritor por toda a vida. Ele acreditava na força da lua, respeitava curandeiros, feiticeiros, a umbanda, a quimbanda e o kardecismo. Dizia que pessoas, casas e cidades possuíam fluidos positivos e negativos, que influíam nas emoções, nos sentimentos e na saúde de seres humanos e animais. Aconselhava os filhos a terem cautela e a fugirem de qualquer pessoa ou lugar que lhes causasse algum tipo de mal estar. Seguindo a missão diplomática, Guimarães Rosa serve, em 42, em Baden Baden; de lá, vai para Bogotá, onde fica até 44. O contato com o Brasil, no entanto, era freqüente. Em 45, vai ao interior de Minas, rever as paisagens da infância. Três anos depois, é transferido para Paris. 
1946. "Eu ando meio febril, repleto, com um enxame de personagens a pedirem pouso em papel. É coisa dura e já me assusta, antes de pôr o pé no caminho penoso, que já conheço". 

O calor do dia abrandava. Naqueles olhos e tanto de Diadorim, o verde mudava sempre, como a água de todos os rios em seus lugares ensombrados. Aquele verde, arenoso, mas tão moço, tinha muita velhice, muita velhice, querendo me contar coisas que a idéia da gente não dá para se entender - e acho que é por isso que a gente morre. De Diadorim ter vindo, e ficar esbarrado ali, esperando meu acordar e me vendo meu dormir, era engraçado, era para se dar a feliz risada. Não dei. Nem pude nem quis. Apanhei foi o silêncio dum sentimento, feito um decreto: 
- Que você em sua vida toda toda por diante, tem de ficar para mim, Riobaldo, pegado em mim, sempre!... - que era como se Diadorim estivesse dizendo. 
Grande Sertão: Veredas 


Entre outubro e novembro de 1949, Guimarães Rosa e a mulher Aracy realizam uma viagem turística à Itália. No ano seguinte, nos meses de setembro e outubro, o casal refaz o roteiro, visitando as mesmas cidades. Como de costume, o escritor utiliza cadernetas para gravar sensações, descrever tipos e paisagens, anotar expressões, burilar algumas outras. Essas anotações não têm um objetivo específico. Anota como um viajante curioso, como um permanente estudante da vida e da natureza, sempre voltado pra o seu trabalho, documentando, armazenando idéias, exercitando-se no manejo da língua portuguesa. 

"Arco íris proxíssimo! parece andar com o trem. Seu verde é belo - bórico - vê-se o roxo, anil. Não tem raízes, não se encosta no chão. Está do lado oeste, onde há nuvens estranhas, escuras, de trombas d'água. E cidades e aldeias sobre montes, grimpas. Do lado do mar, o sol se abaixa. Tudo claro. como o trem divide o mundo" 
Grande Sertão: Veredas 




CORPO DE BAILE, a partir da 
3ª edição desdobra-se em 3 volumes independentes. A imagem é sugestão de capa preparada pelo própio Rosa, com um curioso recado: "dois meninos, um deles de 7 e o outro de 8 anos, e uma cachorra". Desistiu disso depois, bem como cortou a indicação de duas novelas Guimarães Rosa retorna ao Brasil em 51. No ano seguinte, faz uma excursão ao Mato Grosso. O resultado é uma reportagem poética: COM O VAQUEIRO MARIANO. Em 1956, no mês de janeiro, reaparece no mercado editorial com as novelas CORPO DE BAILE, onde continua a experiência iniciada em Sagarana. A partir de o Corpo de Baile, a obra de Guimarães Rosa - autor reconhecido como o criador de uma das vertentes da moderna linha de ficção do regionalismo brasileiro - adquire dimensões universalistas, cuja cristalização artística é atingida em Grande Sertão Veredas, lançado em maio de 56. Em ensaio crítico sobre CORPO DE BAILE, o professor Ivan Teixeira afirma que o livro talvez seja o mais enigmático da literatura brasileira. As novelas que o compõem formam um sofisticado conjunto de logogrifos, em que a charada é alçada à condição de revelação poética ou experimento metafísico. Na abertura do livro, intitulada CAMPO GERAL, Guimarães Rosa se detém na investigação da intimidade de uma família isolada no sertão, destacando-se a figura do menino Miguelim e o seu desajuste em relação ao grupo familiar. Campo Geral surge como uma fábula do despertar do autoconhecimento e da apreensão do mundo exterior; e o conjunto das novelas surge como passeio cósmico pela geografia rosiana, que retoma a idéia básica de toda a obra do escritor: o universo está no sertão, e os homens são influenciados pelos astros. 



Ilustração de Djanira para Campo Geral 
"Mãe, que é que é o mar, mãe? Mar era longe, muito longe dali, espécie de lagoa enorme, um mundo d'água sem fim. Mãe mesma nunca tinha avistado o mar, suspirava. 'Pois mãe, então o mar é o que a gente tem saudade?' 
Campo Geral 

| Guimarães Rosa e "Grande Sertão 

1 de nov. de 2012

Perfil.



Era um rapaz de boa família, com certa preguiça, tinha inteligência, mas foi gasta cochichando frases suspeitas em orelhas cheirosas, a boa saúde foi perdida na boemia, outros valores foram esperdiçados no atrito com o nada. Resta-me de tudo um pouco, somado a certa prática da vida, ausência completa de preconceitos, um grande desprezo pelos homens e mulheres, no mais um conhecimento profundo da inutilidade de meus atos e uma enorme tolerância pela canalhice geral. Por momentos a extrema franqueza. Sou ainda capaz de afeições, caso queira se certificar, estarei a disposição física e moralmente, ou seus restos, para tudo o que quiser de mim.