6 de jul. de 2016

Gaiola!
Quantos anos podia ter? Dez ou nove anos, andava pelo quarto ano primário. Depois do recreio, nos colocávamos em filas, ordem unida, e Dona Yone, inspetora, passava em revista. Naquele dia, ou neste dia que esta imagem esmaecida ainda me chega, como um fóton dos confins do universo, alguma euforia se mantinha em nosso bando. Cacildo sempre a frente. Todos em silêncio, menos nós. Dona Yone soltou a cacholeta, que me acertou o pé da nuca, e o sopapo sendo forte o bastante pra me levar ao princípio das filas. Logo com a mesma volúpia, transferia Cacildo para meu lado. Riamos, não havia outro remédio. Todos riam de nós, e nós de nós. Pelas orelhas, Dona Yone nos trasladou para debaixo do relógio, que ficava no corredor das salas de aula. Ali como dois palhaços, esperamos a que todas as filas passassem, com seus risinhos. Por fim vinha Dona Yone, seu passo lento e pesado, e as palmas das mãos, na ponta dos braços vinham  rechonchudas e viradas para trás, como todo ser com aquelas banhas todas. Os braços lhe pareciam remos. Com a delicadeza que lhe era possível, nos conduziu à sala de Dona Josefa, a diretora. Ruim. Mulher ruim, está para nascer até hoje. Não creio que tenha nascido. Encheu-me de palmatórias. Por fim fui conduzido só a uma sala, conjugada à biblioteca. Lá fiquei trancafiado, no escuro, até o fim das aulas. Só depois soube que Cacildo sofreu toda sorte de pancadas. Dez anos.  Lembro que chorei muito, em silêncio, ouvi o sinal da quarta aula. Por fim chegou o último sinal. Dona Yone me soltou, não me disse nada. Fui para casa. Quando cheguei, olhei de cara para a gaiola, onde, como era costume então, tinha um Canário, que cantava com o primeiro raio de sol, e quando tocava no rádio umas músicas caipiras de Lourenço e Lourival. Abri instintivamente a portinhola, e ele se foi. Estava ali desde que só tinha penugens. Talvez, como me disseram, sofresse para viver por conta,  estava domesticado, pode ter sido efêmera sua vida livre, mas com certeza, intensa, fosse o  tempo que fosse. Nem bestas, nem feras, nem jovens, nem velhos, nem povos, nem nada devem estar numa gaiola. Pensei então, ainda que naquele então, não se me ocorria por inteiro este pensamento.

5 de jul. de 2016

Piada do alfaiate,

(De Th. Cathcart y D. Klein, Platón y un ornitorrinco entran en un bar…

Um homem provava seu terno, sob medida, e dizia ao alfaiate:
  • Essa manga está sobrando! Tem uns cinco centímetros, pelo menos, a mais.
  • Espere, não, olhe, se Você dobrar o cotovelo... viu?! Perfeita, não é! Disse o alfaiate.
  • Tá bem – continua o fregues – Mas, olha só o colarinho! Quando dobro o cotovelo, o colarinho vai lá pra trás!
  • E daí? - insiste o alfaiate – Levante a cabeça e o queijo... viu? Perfeito, não é?
  • Ah! não! Mas agora é o ombro esquerdo que está mais baixo que o direito!?
  • Nenhum problema. Jogue o corpo para a esquerda e o quadril para a direita e pronto, viu... recomposto, não é? O homem saiu da alfaiataria vestido com o terno, o cotovelo dobrado, a cabeça empinada, o queixo alto, inclinado para a esquerda. Parecia que havia parado num movimento de bambolê. Quando chegou a um cruzamento, se encontrou com dois transeuntes.
  • Olha só como caminha esse pobre homem, que pena! Disse um deles.
  • Já tinha reparado, mas você viu seu terno, seu alfaiate deve ser um gênio, um cara todo torto e o terno cai perfeitamente.





Antinous.

                                                 “The rain outside was cold in Hadrian’s soul. The boy lay dead On the low couch, on whose denuded whole, To Hadrian’s eyes, whose sorrow was a dread, The shadowy light of Death’s eclipse was shed.”  ANTINOUS Fernando Pessoa


Renato não acreditava que aquele romance estivesse lhe impressionado tanto, e mais que a qualquer outro. Sempre esteve a subjugar o conceito de belo. Antinous seria tão belo? Como a estátua que tinha à sua frente, naquela sala do Vaticano. Renato pensava, Adriano substituiu, uma vez morto o rapaz, a carne do amado pela sublimação da pedra. Uma maneira de perpetuar o amor.
Renato recordava que quando morreu Isabel quase enlouqueceu. Tanto que rasgou todas as fotos, menos duas, a que tinha no criado mudo e a que levava na carteira. E delas nem tinha os negativos. Mas ali estavam. Os olhos de Bel sempre tinham uma mirada penetrante, espetavam desde a profundidade, mais ainda, quando faziam amor. Os olhos de Antinous, mas, se, não olhavam para ninguém. Antinous, de mármore, foi feito para que lhe admirassem, e basta. Era belo, sim. Renato disse-se que não, não faria suspirar aos homens, por mais belos e bem feitos que fossem.
Vagando em seus pensamentos, mudou de sala e estava agora aonde predominavam os bustos. Queria compreender Adriano, necessitava saber, o porquê de o imperador languescer até a sua morte por esse rapaz que o mármore imortalizará, enquanto exista quem o admire.
- Por deus, mas que você faz? Saia daqui agora mesmo! Depravado, gritava um guarda do museu.
Renato girou-se. O vigilante andava na sua direção e outros visitantes se entreolhavam surpresos, enquanto outros faziam cara de nojo.
Os lábios de Renato haviam encontrado a boca entreaberta do busto de Adriano, e notava-lhe como o coração batia e que o desejo dominava todas as partes do seu corpo. Os olhos de mármore do Imperador também o olhavam com igual desejo e lhe diziam em silêncio: compreende o que é a beleza? Sabe o que é o prazer de possuí-la?
- Sei o que é o prazer, até ao êxtase, agora que conheço quem fez da beleza o único sentido da vida e isso não pode ser pecado , disse Renato em voz alta.




4 de jul. de 2016

Manézões e Michelzin, o superdotado.



      O dia que Michelzin nasceu todo mundo se espantou. Seu primeiro choro foi um grito bem modulado, um si bemol. Soava bem, acima de tudo, melódico para sua idade, dois minutos. Em seguida, fez uma tentativa de saudar com simpatia os seus progenitores, boquiabertos e babões. Se saiu ainda melhor quando piscou-lhes o olho, fazendo troça.
      Michelzin não parava de fazer demostrações, umas mais extraordinárias que as outras. Depois de uma hora de nascido, já mantinha uma conversa com enfermeira, agradecendo o trabalho feito, abraçava a mãe dizendo que não se preocupasse, que logo, logo encontraria a mulher de sua vida, e construiria sua família.             Apertava a mão do pai, assegurando-lhe que seriam bons colegas, que analisariam detidamente a situação econômica da empresa de propinas que o pai dirigia, e encontrariam uma saída segura para a crise pela qual passava o setor.
       Quando Michelzin se põe de pé, já caminhando rumo ao obstetra que assistiu ao parto, que pensou em segurá-lo para que não caísse, a fera o fintou e saiu em disparada pelos corredores do hospital, se deparou com as pessoas espantadas, incapazes de entender o que acontecia e não continham a baba e não podiam ferchar a boca. Então, Michelzin se retira para um canto para refletir, uns segundos depois diz a todos em voz alta e firme:
  • Dizer-vos-ei: será que não falta-lhes-ia um pouco de empenho e aplicação ao trabalho?

Todos os presentes estavam petrificados. A essas alturas, se supõe, como mínimo, que Michelzin já chegou aos paraísos ficais, fazendo das suas. Ou quem sabe.... a coisa mais edipianas...

Getúlio.



          Olga passava roupa, quando Delgado começou a gritar, ofender e a esmurrá-la. Depois do terceiro golpe, esfrega o ferro de passar na cara dele. Delgado grita e ao tentar sujeitá-la  caem agarrados e lutando. Olga desfere um, dois, três, quatro golpes com o ferro de passar e racha o crânio de Delgado. Morto. Por sorte, Getúlio não estava. De vez em quando ele saia, e ao fim de um tempinho voltava para a casa. Getúlio era assim.
          Olga arrumou a malinha com umas trocas de roupa, algum remédio e qualquer coisa mais, se acaso necessitasse. Preferia não olhar para trás. O táxi a esperava. Acabava de trancar a porta e ao virar-se uns olhos arregalados procuravam os dela. Era Getúlio, não poderia levá-lo. Tinha que ir embora.
           Havia cinco anos que Getúlio chegara àquela casa, entrado na vida de Olga e Delgado. Desde os primeiros momentos, Getúlio cuidava dela, depois dos espancamentos que tanto sofria. Por isso estava sempre a seu lado. Era um bálsamo para ela,, depois de um grito, um soco, e bastava sentir o seu contato, o que  para Olga já era um alivio.


          Agora tudo se acabava. Nunca, jamais será tarde. Cinqüenta e tantos anos. Olga se cansou de ser agredida. Era uma mulher de idade. Mas, na prisão não querem gatos, lhe disse uma policial por telefone.

Eu, ou o Homem que despe as mulheres.

Eu, ou o Homem que despe as mulheres.



            Ia ao pet shop comprar vermífugo para Xico ãÃo – meu gato - que anda perder pelos mais que os que tenho, quando encontrei Pedrão, o Belo, que anda a vender esperança na praça XV. Na real, só vende bilhetes de loteria, mas não é isso que quero falar, se não de sua inveja incurável, que é oposta ao vinho, só piora com o passar dos anos, e sempre  quer saber como estou sempre rodeado de mulheres, sendo Feio.
            É assim que ele me chama, Feio, sem artigo. Gostaria que me chamasse Gabo e eu o chamaria de Mestre. Mas, repertório é repertório. O fato é que pouco a pouco ele vai arrancando meus segredos mais secretos, ainda que saiba, pobre Belo, nunca poderá aplicar, porque não se pode ser superior a si mesmo.
           -  Eu, Belo, gosto das mulheres, por óbvio, mas gosto da maneira que elas gostam que gostem delas. Essa é a chave. Mais de uma vez te disse meu amigo, Belo, que não se pode amar uma mulher se não a ouvir, a escutar. Ouvi muita as mulheres, mas tenho amigos que são surdos e outros que são   portentosos ouvidos. No entanto, Belo, te digo mais:”Quando olho para uma mulher eu a desnudo, a dispo, sendo que há quem as mire e as vista”. Logo, ele quis saber o que queria dizer com isso, então lhe disse : “ Das mulheres gosto de tudo: seu rosto, seu penteado, o lóbulo de suas orelhas, as unhas dos pés, o cotovelo esquerdo, a sinuosidade do pescoço, suas pálpebras, a roupa que vestem, a maneira como se penteiam, como movem as mãos quando falam, como dizem que não gostam de camarão, etc”. E a tudo isso, acrescentei, "te garanto, gosto de verdade e esta sinceridade de meu olhar, elas pegam no vôo", e completei: “Sabem, que diante delas está um cara, que gosta delas por ser como são”. Quando cheguei em casa, Penélope, que tricotava uma roupinha para ãÃo, me perguntou, por onde o senhor andou? 

3 de jul. de 2016

Sob a Estrela da Manhã.

              Os exames contundentes, aos médicos não restavam dúvidas, e me disseram que, quando o tumor cerebral, que haviam detectado, se desenvolvesse – podia acontecer amanhã ou em três meses – me sentiria muito cansado, muito, como se estivesse a horas caminhando numa subida sob o sol do meio dia de algum fevereiro, então dormiria e já não despertaria.

              Quando sai da consulta fui direto para rodoviária. Tomei o ônibus que me deixava na beira da estrada, na entrada para voltar ao sítio. Aproveitei o trajeto para ir parindo a sentença, e mais tarde, depois do jantar, sai ao quintal para olhar o céu. Noite escura, sem lua, pude contemplar as milhares de estrelas e a massa densa e leitosa da Via láctea, entre os clarões das cidades distantes. Meu pensamento andava por milhões de coisas miúdas como as estrelas; dei conta que se quisesse não deixar pendencias para os meus, haveria de voltar à cidade, ir ao banco, ao cartório, à funerária. Decidi fazer no dia seguinte, logo pela manhã.

              Despertei com a alba, fui até a estrada. Não tardou e vi ao longe as luzes do ônibus. No silêncio de uma estrada ainda erma, ouvi todos os mecanismos do cambio, o bufar do freio. A porta se abriu, embarquei, paguei a passagem ao motorista e fui lá para os assentos do fundo. Ao longe ouvi uns gritos, era um vizinho de sítio pedindo que esperassem; chegou bufando pelo cansaço de correr por aquela subida. Entrou, e quando vinha pelo corredor me saudou com um aceno de cabeça e um sorriso de velhos conhecidos. A porta se fechou e o motor roncou mais forte. Clareava. Notei que estava muito cansado, muito, como se tivesse caminhado a subida do sítio à estrada sob um sol de fevereiro ao meio dia. Fechei os olhos, o ronco do motor me ninava, no céu ia a estrela da manhã, adormeci.