Cheiro de Chuva que há tempos choveu.
É tarde. Caminho depressa. Um paralelepípedo mal colocado é uma arapuca para pessoas apressadas e distraídas. Invisível. Camuflada numa calçada duma rua inesquecíveis, pronta para ser ativada por qualquer pé. O meu. Tropeço. E começa a chover. A traição. Aquelas pequenas coisas que atrapalham o dia. A chuva na cidade é um incômodo. E me dói constatar. Como se traísse minhas origens. Sinto o cheiro da chuva e ainda não completo o entendimento, esta locução vale por escuto chover. Não faça caso. Há poucas coisas tão bonitas quanto o som in crescendo da chuva. Sinto o cheiro e escuto a chuva. Inda mais quando está canção começa subitamente, num som metálico. As gotas trombando com as folhas de zinco lá do coberto. Contra as persianas de alumínio. A excitação de saber que será um dia diferente. De se ficar em casa só em meias, e ter licença de assim subir ao sofá. De brincar nos corredores da escola, porque não dará para ir ao pátio. Aquele verde intenso do mato molhado, o cheiro de terra molhada. A chuva trazia essa alegria intensa, da festa inesperada, desprevenida. Além de ser um prólogo para acabar a luz. Resmungos generalizados, era o que sobrava. Ao mesmo tempo, adorava o anacronismo da rede elétrica. Procurar as velas, a vó nunca se lembrava aonde. Era outra alegria encontrá-las, ascendê-las. E o vô se punha a contar histórias, as aleluias sem poste de luz e as tanajuras… e íamos comendo a noite, lentamente, quando a luz voltava, alguma dor era visível nos rostos, porque não é fácil quebrar a magia. E nada já não era o mesmo. Se a narração fosse cortada ao meio pela volta da luz, vinha um final abrupto, em falso. Como se tivéssemos vergonha daquilo que fazíamos a luz de velas. No dia seguinte descobria o sentido de ufanoso, o mistério do de vez, do maduro. Escuto a chuva, e tento encontrar o rastro dessa alegria pueril. A determinação das Tanajuras com seus vôos estabanados, incertos, que mal descobrem o mundo da luz, e já cavam outra toca.
A nossa é uma sociedade doente, mas voltar a viver no passado é de dementes. Cômico.