14 de mai. de 2013

Escorpião e Félix - por Karl Marx!

IMAGINAÇÃO Escorpião e Félix - por Karl Marx,
 na Folha de S.Paulo Na íntegra, a primeira tradução do alemão da estrambótica novela que o autor de "O Capital" escreveu antes de completar 20 anos KARL MARX

TRADUÇÃO TERCIO REDONDO


 CAPÍTULO X Como havíamos prometido no capítulo anterior, segue aqui a comprovação de que a mencionada soma de 25 táleres pertence pessoalmente ao bom Deus. Esses táleres não têm dono! São dotados de excelsos pensamentos, nenhum poder humano os possui; mas o glorioso poder que navega sobre as nuvens abarca o universo e, consequentemente, os mencionados 25 táleres; as vestes desse poder são tecidas com os fios do dia e da noite, do Sol e das estrelas, das gigantescas montanhas e das infindáveis planícies de areia, ressoam como as harmonias, como o estrondo de cascatas, e chegam lá onde a mão do homem não alcança, resvalando assim os mencionados 25 táleres, e... Não posso continuar, estou intimamente abalado, olho para o universo, para mim mesmo e para os 25 táleres cuja substância reside nestas três sentenças: o ponto de vista dessas moedas é o infinito, soam como a voz dos anjos, lembram o Juízo Final e o fisco... e Escorpião, estimulado pelas histórias do amigo Félix, arrebatado pela melodia inflamada e subjugado pelos sentimentos juvenis do companheiro, enamorou- se de Margarida, a cozinheira, supondo que ela fosse uma fada. Presumo a partir desse fato que as fadas têm barba, pois Madalena Margarida -não se trata da Madalena arrependida- ostentava barba e bigode, como um glorioso guerreiro. Tenros fios encaracolavam-se em seu formoso queixo e, qual escarpa sobre o mar solitário, contemplada de longe pelos homens, esses fios sobressaíam na chata panela do rosto, orgulhosos e conscientes de sua grandeza, e rompiam os ares, agitavam os deuses e comoviam os homens. Parecia que a deusa da fantasia havia sonhado uma beleza barbada e se enredara nos domínios encantados de um rosto jubado, mas, ao despertar, era a própria Margarida que sonhara, e eram ruins os seus sonhos: ela era a grande meretriz da Babilônia, o Apocalipse de João e a ira de Deus, que deixara um restolhal afiado brotar de sua pele vincada por linhas onduladas a fim de que a beleza não incitasse ao pecado e a virtude fosse preservada, como a rosa é preservada pelos espinhos, e para que o mundo compreendesse e não morresse de amores por ela. Capítulo XII "Um cavalo, um cavalo! Um reino por um cavalo!", dizia Ricardo 3º. "Um homem, um homem! Eu mesma por um homem!", dizia Margarida. Capítulo XVI "No princípio era o verbo e o verbo estava com Deus e o verbo era Deus e o verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória." Belos e inocentes pensamentos! A associação de ideias conduziu Margarida mais adiante; ela acreditava que o verbo habitava as coxas, assim como, na história de Shakespeare, Tersites imagina Ajax com as vísceras na cabeça e a razão na barriga; e então Margarida, e não Ajax, concebeu convictamente a ideia de que o verbo se fizera carne; ela viu nas coxas a expressão simbólica do verbo, vislumbrou sua própria glória e resolveu lavá-las. Capítulo XIX Mas ela tinha grandes olhos azuis, e olhos azuis são comuns como a água do rio Spree. Desses olhos irrompe uma tola e saudosa inocência, uma inocência que lamenta a si mesma, uma inocência aquosa; quando o fogo se aproxima, ela ascende num vapor cinzento; nada mais se acha por trás desses olhos; seu mundo é todo azul, sua alma, um vapor azulado. Os olhos castanhos, contudo, são um reino ideal; um infinito e gracioso universo noturno aí dormita, eles expelem raios d'alma, soam como as canções de Mignon, como a terna, cálida e longínqua terra habitada por um próspero deus que se banqueteia de sua própria profundidade e se funda no universo de sua existência irradiando a infinitude e padecendo a infinitude. Sentimo-nos paralisados por um encanto, desejamos apertar em nosso peito o melodioso, profundo, inspirado ser, sugar o espírito de seus olhos e fazer canções a partir de seus olhares. Amamos o mundo rico e agitado que se nos abre; em seu poscênio enxergamos gigantescos pensamentos solares, supomos a existência de um sofrimento demoníaco; e figuras que se movem delicadamente encenam uma dança diante de nós, acenam em nossa direção e retrocedem envergonhadas, como as Graças assim que as reconhecemos. Capítulo XXI Reflexões filológicas. Félix desvencilhou-se dos abraços do amigo de modo nada suave, pois não percebera o caráter profundo e sensível de suas quimeras e, além disso, estava ocupado em dar continuidade... à digestão, à qual, agora e de uma vez por todas, ordenamos que encerre seu extraordinário mister, pois está impedindo a sequência da ação. Assim também pensava Merten, pois um violento golpe fora desferido por sua ampla e histórica mão, justo na direção de Félix. O nome Merten lembra Karl Martel, e Félix acreditou ter sido acariciado por um martelo, tal o prazer proporcionado pelo choque elétrico. Esbugalhou os olhos, cambaleou e pensou em seus pecados e no Juízo Final. Eu, contudo, pensei na matéria elétrica, no galvanismo, na douta carta de Franklin a sua amiga "geométrica" e em Merten, pois minha curiosidade está extremamente atiçada, desejosa de descobrir o que há por trás desse nome. Não resta dúvida de que o nome descende em linha direta de Martel: o sacristão me garantiu isso, embora esse período seja muito contraditório. O "l" transformou-se num "n", uma vez que Martel é inglês, como todo conhecedor de história sabe; e em inglês o "a" frequentemente tem o som de "eh", que coincide com o "e" de Merten. Desse modo, Merten poderia ser uma outra forma de Martel. De acordo com o exposto, uma vez que entre os velhos alemães o nome se originava de diversos adjetivos e expressava o caráter de seu portador -como Krug, o cavaleiro; Rauprach, o conselheiro da corte; Hegel, o anão-, Merten parece ter sido um homem rico e honesto, embora fosse um alfaiate e nesta história encarne o pai de Escorpião. O que acabamos de dizer funda uma nova hipótese: em parte porque fora um alfaiate, em parte porque seu filho se chamava Escorpião, parece muito provável que seu nome tenha derivado de "Mars", o deus da guerra (genitivo Martis, acusativo grego Martin, Mertin, Merten), pois o ofício do deus da guerra é o corte, visto que ele corta braços e pernas e, usando uma serra, aparta da terra a felicidade. Além disso, o escorpião é um animal venenoso, que mata com o olhar; sua picada é fatal, seu olhar, fulminante; ele é uma graciosa alegoria para a guerra, cujo olhar mata e cujo resultado são cicatrizes que sangram internamente e jamais se fecham. Merten, entretanto, tinha um caráter pouco pagão, tendo pelo contrário uma fé bastante cristã; desse modo parece mais provável que descenda de San Martin. Com uma ligeira troca de vogais chega-se a Mirtan; o "i" soa na fala popular como "e", como, por exemplo, na locução "gieb mer" em vez de "gieb mir", e o "a", em inglês, como já dissemos, tem frequentemente o som de "eh", transformando-se no decorrer do tempo em "e", especialmente numa cultura em expansão, de modo que muito naturalmente nasce o nome Merten, com o significado de alfaiate cristão. Embora essa derivação seja absolutamente provável e esteja muito bem fundamentada, não podemos, sem mais, chegar à concepção de uma nova pessoa, concepção que poderia debilitar nossa fé em San Martin, que por sua vez só pode ser lembrado como padroeiro, já que ele, até onde sabemos, jamais se casou, não podendo por isso ter deixado um descendente. O dilema parece se resolver da seguinte maneira: todos os membros da família Merten tinham em comum com o "Pároco de Wakefield" o fato de que logo se casavam e, muito cedo, de geração em geração, ostentavam a coroa de mirto, que vinha a ser a coroa nupcial. Daí se explica, a não ser que tenha havido um milagre, que Merten tenha nascido e apareça nesta história como o pai de Escorpião. "Myrthen" perderia forçosamente o "h", uma vez que ao celebrarmos o "Heirathen", as bodas, destaca-se na palavra justamente o "eh", que significa matrimônio. Vale dizer, o "he" é o elemento que se retira, de modo que "Myrthen" se transforma em "Myrten". "Y" é um "v" grego e não é letra alemã. Como já se demonstrou, a família Merten era uma velha estirpe genuinamente alemã, sendo ao mesmo tempo uma família de alfaiates muito cristã, de maneira que o "y" estrangeiro e pagão houve de se transformar num germânico "i"; dado, porém, que o casamento fora o elemento de destaque na família e que o "i" constitui uma vogal estridente e colérica, em contraste com a ternura e a suavidade dos casamentos realizados no seio dessa família, a vogal transformou-se em "eh" e, mais tarde, para que a ousada modificação não ficasse demasiado evidente, transformou-se em "e", cuja brevidade alude à firme determinação com que se consumavam os casamentos, e assim, na multívoca palavra alemã Merten, o termo "Myrthen" atingiu sua forma mais acabada. De acordo com essa dedução poderíamos vincular tanto o alfaiate cristão de San Martin quanto a autêntica coragem de Martel e ainda a decidida resolução de "Mars", o deus da guerra, à abundância de casamentos, coisa que avulta em ambos os "es" de Merten, de modo que esta hipótese congrega todas as anteriores, ao mesmo tempo que as revoga. É de opinião diversa o escoliasta que, com grande aplicação e persistente esforço, escreveu comentários sobre o velho historiador cuja obra nutre nossa história. Embora não possamos partilhar de sua opinião, ela merece uma apreciação crítica, pois emana do espírito de um homem que juntou sua enorme erudição a uma grande proficiência na produção de fumaça, envolvendo os pergaminhos com sacras exalações tabagísticas e enchendo-os de oráculos em meio à exaltação pitonisíaca do incenso. Ele pensava que "Merten" deveria originar-se de "Mehren" e "Meer", que significam respectivamente "proliferar" e "mar", isso porque os casamentos na família Merten se multiplicavam como a areia do "mar", e porque, além disso, a ideia de alfaiate está contida na ideia de "Mehrer", de "aumentador", dado que ele eleva macacos à condição de homens. Ele teceu sua hipótese a partir dessas profundas e bem fundamentadas investigações. Ao ler essas hipóteses fiquei vertiginosamente perplexo; o oráculo tabagístico fascinou-me, mas logo a fria e discriminadora razão despertou e surgiram os argumentos contrários que seguem abaixo. A ideia de um aumentador, que, se preciso fosse, eu aceitaria ver combinada à ideia de um alfaiate -como quer o escoliasta- não pode de modo algum ser relacionada à ideia de um diminuidor, pois isso constituiria uma "contradictio in terminis"; para as damas seria o mesmo que confundir Deus com o diabo, identificar uma piada numa roda de chá, colocarem-se elas mesmas no lugar dos filósofos. Se, entretanto, Merten deriva de Mehrer, a palavra teria perdido um "h", ou seja, não teria aumentado, algo que se revela substancialmente contraditório em relação à sua natureza formal. Portanto "Merten" não pode absolutamente derivar de "Mehrer", e que se tenha originado de "Meer" é questão logo desmentida pelo fato de que a família Merten jamais caiu na água e jamais claudicou; pelo contrário, sempre foi uma devota família de alfaiates, fato que contradiz a ideia de um mar revolto, concluindo-se então que o citado autor, a despeito de sua infalibilidade, errou, sendo a nossa dedução a única correta. Após esta vitória estou exausto para prosseguir e quero apenas me regalar na ventura da autossatisfação que, segundo Winckelmann, constitui um momento mais valioso do que toda a glória póstuma, embora eu esteja igualmente seguro desta, assim como Plínio, o Jovem. Capítulo XXII "Quocunque adspicias, nihil est, nisi pontus et aer, Fluctibus hic tumidis, nubibus ille minax, Inter utrumque fremunt immani turbine venti, Nescitcui domino pareat unda maris. Rector in incerto est, nec quid fugiatve petatve, Invenit, ambiguis, ars stupet ipsa malis." "Para onde quer que olhes, verás apenas Escorpião e Merten, Aquele afogado em lágrimas, este obnubilado pela ira. Entre ambos retumba uma infinda torrente de palavras. O mar revolto não sabe a que senhor obedecer. Eu, o reitor, vacilo, e aquilo que deixo, aquilo que escrevo Não mais encontro; diante do escândalo a arte se recolhe aos cantos." Assim, nos "libri tristium", Ovídio conta a triste história que, como a que narrarei em seguida, seguiu às que a precederam. Como se vê, ele não tinha outro recurso, e eu, de minha parte, narro como segue: Capítulo XXIII Ovídio vivia em Tomi, aonde fora lançado pela ira do deus Augusto, pois tinha mais gênio que bom senso. Aqui, entre os bárbaros selvagens, fenecia o terno poeta do amor, e fora o próprio amor que o derrubara. Sua cabeça pensativa apoiava-se na mão direita, e o olhar saudoso vagueava pelo Lácio distante. O coração do cantador estava partido e, no entanto, mantinha a esperança, sua lira não podia se calar e ele apagava as saudades e a dor com canções melodiosas e docemente expressivas. O vento norte açoitava os membros do frágil ancião, infundindo-lhe estranhos calafrios, pois fora criado nas terras quentes do sul; lá os exuberantes e calorosos jogos da fantasia eram adornados com trajes suntuosos, e quando esses rebentos do gênio tornavam-se demasiado livres, a graça sacudia sua divina e velada grinalda por sobre os ombros, de modo que as dobras agitadas espargiam tépidas gotas de orvalho. "Logo serás cinzas, pobre poeta!", e uma lágrima rolou pela face do velho quando... o potente baixo da voz de Merten, que estava profundamente comovido, elevou-se diante de Escorpião. Capítulo XXVII "Ignorância, pura ignorância!" "Porque (isto se relaciona a um capítulo anterior) seus joelhos se dobraram mais para certo lado!", mas faltava a certeza, a certeza; e quem pode assegurar, quem pode asseverar qual é o lado direito e qual o esquerdo Se me disseres, mortal, de onde vem o vento ou então se Deus tem um nariz na cara, dir-te-ei onde estão o lado direito e o esquerdo. Tomar a loucura e a insensatez pela sabedoria é algo que não extrapola o plano dos conceitos relativos! Ah, será vão todo o nosso esforço e insensata a nossa nostalgia até descobrirmos o que sejam direita e esquerda, pois ele disporá os bodes à esquerda e as ovelhas à direita. Caso ele se vire, caso tome outra direção por ter sonhado à noite, então os bodes ficarão à direita e os devotos à esquerda, de acordo com nossos miseráveis pontos de vista. Por isso, se explicares para mim o que são direita e esquerda, o nó da criação estará desfeito por completo; se "Acheronta movebo", deduzo onde irá parar tua alma, do que deduzo também em que patamar te encontras, pois aquela relação primordial se tornaria mensurável. Enquanto, da parte do Senhor, tua posição já foi determinada, tua posição aqui em baixo pode ser medida pelo tamanho de tua cabeça; tenho vertigens; se um Mefistófeles aparecesse, eu seria um Fausto, pois, evidentemente, todos somos um Fausto, visto não sabermos qual lado é o direito e qual o esquerdo. Nossa vida é, portanto, um circo; andamos em círculo procurando pelos lados até cairmos na areia e o gladiador nos tirar a vida; precisamos de um novo salvador, pois -excruciante pensamento! Roubas-me o sono, roubas-me a saúde, matas-me- não podemos discriminar o lado esquerdo e o direito, não sabemos onde ficam. Capítulo XXVIII "É na Lua, evidentemente, que encontraremos as pedras lunares; no peito da mulher, a falsidade; no mar, a areia; na terra, as montanhas", redarguiu um homem que bateu à minha porta e não esperou ser convidado para entrar. Rapidamente pus meus papéis de lado e lhe disse que muito me alegrava o fato de não o ter conhecido antes, pois isso aumentava ainda mais o prazer em conhecê-lo; e disse ainda que ele ministrava uma grande sabedoria, que ele apaziguava todas as minhas dúvidas. Porém, por mais que eu falasse a toda pressa, ele falava ainda mais rápido; tons sibilantes irrompiam por entre seus dentes; ao examiná-lo com mais atenção, percebi arrepiado que ele parecia um lagarto ressequido, nada mais que um lagarto que se esgueirara pelas fendas de um muro decaído. Ele era atarracado e sua estatura semelhava à do fogão; seus olhos eram mais verdes que vermelhos e mais lembravam um alfinete que um raio; ele mesmo mais parecia um duende que um homem. Um gênio! Percebi-o imediatamente e com toda a segurança, pois o nariz brotava da cabeça feito Palas Atena, que brotara da cabeça de Zeus pai todo-poderoso, e isso me explicava sua delicada ardência purpúrea, que sugeria uma origem etérea. Essa cabeça podia ser descrita como calva e descoberta, a não ser que tomássemos por chapéu uma espessa crosta de pomada, a qual, juntamente com outros produtos atmosféricos e primevos, proliferava no lombo dessa montanha primitiva. Nele tudo indicava elevação e profundidade, mas a forma de seu rosto parecia revelar um arquivista, pois as bochechas eram como tigelas lisas e profundas, protegidas da chuva por protuberantes ossos de dimensões enormes, de modo que aí se podiam depositar papéis e decretos governamentais. Resumindo, disso tudo depreendemos que ele seria o Deus do amor em pessoa, caso não se assemelhasse a si mesmo, que seu nome seria gracioso como o amor, caso não lembrasse bem mais um cipreste. Pedi que se acalmasse, pois dizia ser um herói. Objetei-lhe modestamente que os deuses tinham uma compleição mais fina, que os "Heroden", ou seja, os arautos, eram donos de uma voz mais singela, menos complexa e mais harmoniosa, e que Eros, por fim, era uma beleza transfigurada, uma natureza verdadeiramente bela, o único ser em que a alma e a forma podiam reivindicar os atributos da perfeição, não sendo, portanto, passível de comparação com o amor de meu visitante. Ele retrucou dizendo possuirrr uma forte osssatura, uma sssombra tão boa ou até melhor que a de outras pessoas, já que lançava mais sombra do que luz, que sua noiva podia se refrescar e prosperar à sua sombra e se tornar ela mesma uma ssssombra, que eu era um homem rrrrude, um gênio de fancaria e um idiota, que ele se chamava Engelbert, que seu nome sssoava melhor que Essscorpião, que eu me engannnara no capítulo XIX, pois os olhos azuis sssão mais belos que os cassstanhos, que os olhos da pomba são mais espirituosos e que ele mesmo, embora não fosse uma pomba, era surdo à razão, que, além disso, ele apreciava seu direito de primogenitura e possuía um tanque de lavar. "Vossa Senhoria deve unir-se a mim em matrimônio e se postar à minha direita, e tu deves deixar tuas investigações sobre esquerda e direita; Vossa Senhoria reside em frente e não à direita ou à esquerda." A porta se fechou, uma aparição celeste despontou de minha alma; o gracioso colóquio se encerrara, mas pelo buraco da fechadura ouvia-se uma voz que sussurrava como um espírito: "Klingholz, Klingholz!" Capítulo XXIX Sentei-me, pensativo, pus Locke, Fichte e Kant de lado e me entreguei a um exame mais aprofundado para saber que relação poderia haver entre um tanque de lavar e a primogenitura, e de repente senti como se um raio me atravessasse, as ideias então se avolumaram, meus olhos se abriram e uma figura luminosa se postou diante de mim. A primogenitura é o tanque de lavar da aristocracia, pois um tanque de lavar serve apenas para lavar. A roupa é alvejada, emprestando um brilho pálido àquilo que foi lavado. Da mesma forma, a primogenitura recobre de prata o filho mais velho da casa, empresta-lhe, portanto, a pálida cor argêntea, enquanto os outros membros da família são oprimidos pela pálida cor romântica da necessidade. Aquele que se banha nos rios arroja-se contra o elemento revolto, luta contra sua ira e peleja com braços fortes; aquele, porém, que está no tanque de lavar permanece constrito e observa apenas os cantos formados pelas paredes. O homem comum, quer dizer, o não primogênito, luta contra a vida furibunda, joga-se ao mar encapelado e, nas profundezas, rouba pérolas valendo-se das prerrogativas de Prometeu; a configuração interna da ideia surge magnificamente diante de seus olhos, e ele executa o seu esforço, mas o primogênito fica apenas com os pingos d'água, receia ter os membros deslocados e assim entrega-se ao tanque de lavar. Descobriu-se, descobriu-se a pedra filosofal! Capítulo XXX Em nossos dias não é possível escrever uma epopeia, como deduzimos de dois estudos recentemente realizados. Primeiramente tecemos profundas reflexões sobre os lados direito e esquerdo, despojando, portanto, essas poéticas expressões de sua roupagem poética, assim como fez Apolo com a pele de Márcias, e transformamos essas expressões numa figura duvidosa, no desfigurado pavião que tem olhos para não ver e é um Argo pelo avesso; este possuía cem olhos para achar aquilo que se perdera; e ela, a que investe contra o céu, a dúvida, possui cem olhos para tornar não vistas as coisas vistas. Mas o lado, o lugar, é um critério fundamental da poesia épica, e à medida que não há mais lados, como comprovadamente sucede conosco, essa poesia só poderá despertar de seu sono de morte quando o alarido das trombetas despertar Jericó. Além disso, encontramos a pedra filosofal, todos a apontam e eles... Capítulo XXXI Eles, Escorpião e Merten, jaziam no chão, pois a aparição sobrenatural (isto se relaciona a um capítulo anterior) a tal ponto lhes havia abalado os nervos que a força de coesão de seus membros se dissipou no caos da expansão -que, como o embrião, ainda não se livrara da condição universal para assumir uma forma particular-, e assim o nariz de ambos mergulhou no umbigo, e a cabeça pousou na terra. Merten vertia um sangue espesso que continha muito ferro; quanto, exatamente, eu não saberia dizer, pois a química como um todo ainda está pouco desenvolvida. Especialmente a química orgânica torna-se diariamente mais complexa por meio da simplificação, visto que diariamente se descobrem novas substâncias elementares, as quais, em comum com os bispos, têm a propriedade de receber nomes de terras pertencentes aos infiéis, ficando "in partibus infidelium"; trata-se de nomes que, além disso, são tão compridos quanto o título de um membro de diversas sociedades científicas e quanto os nomes dos príncipes do império alemão, nomes que representam os nomes livre-pensantes porque não se relacionam a nenhuma língua. Aliás, a química orgânica é um herege que busca explicar a vida por meio de um processo inerte! Blasfema contra a vida, assim como eu o faria se tentasse deduzir o amor a partir da álgebra. Tudo isso está evidentemente fundamentado na doutrina do processo, a qual ainda não foi suficientemente elaborada e jamais o será, pois se baseia no jogo de cartas, um jogo de puro acaso em que o ás é protagonista. O ás fundou a moderna jurisprudência, pois certa noite Irnério havia perdido o jogo; ele vinha da companhia de mulheres e estava bem vestido, portava um fraque azul, sapatos novos com longas fivelas e uma véstia de seda carmesim, e, ao se sentar, escreveu sobre o ás uma dissertação que o impeliu adiante, de modo que passou a ensinar direito romano. O direito romano abarca tudo, inclusive a doutrina do processo e a química, pois, como Pácio demonstrou, é o microcosmo que se separa do macrocosmo. Os quatro livros das Instituições são os quatro elementos; os sete livros das Pandectas, os sete planetas; e os doze livros do Códice, os doze símbolos do zodíaco. Mas nenhum espírito havia penetrado o todo; era antes Margarida, a cozinheira, que chamava para o jantar. Escorpião e Merten, sob violenta comoção, haviam cerrado os olhos e confundido Margarida com uma fada. Quando se recobraram de seu terror hispânico, que remontava à última derrota e à vitória de Don Carlos, Merten escorou-se em Escorpião e se elevou como um carvalho, pois Ovídio e Moisés disseram que o homem deve mirar as estrelas e não a terra; mas Escorpião agarrou a mão de seu pai e pôs seu corpo em posição arriscada, dispondo-o sobre os pés. Capítulo XXXV "Meu Deus! O alfaiate Merten é uma mão na roda, mas cobra caro demais por seus serviços!" "Vere! beatus Martinus bonus est in auxilio, sed carus in negotio!", exclamou Clóvis após a batalha de Poitiers, quando, em Tours, os padres lhe explicaram que Merten havia cortado suas calças de montaria, com as quais ele cavalgara o valente rocim que lhe garantira a vitória, e cobraram duzentos florins de ouro pelo serviço de Merten. Mas a história toda se passou assim... Capítulo XXXVI Estavam sentados à mesa: Merten estava à cabeceira, tendo Escorpião à sua direita e Félix à sua esquerda, enquanto o primeiro oficial se mantinha bem afastado, visto haver uma lacuna entre o príncipe e a plebe, constituída na estrutura estatal de Merten pelos membros subordinados, chamados comumente de jornaleiros. Essa lacuna, que não poderia acolher nenhum ser humano, não estava reservada para o espírito de Banquo, mas sim para o cachorro de Merten, que diariamente devia fazer a oração à mesa, pois Merten, que estudara humanidades, afirmava que seu Bonifácio (assim se chamava o cachorro) era o próprio São Bonifácio, o apóstolo dos alemães, referindo-se dessa maneira a uma passagem segundo a qual o santo declarou ser um cão que ladra (cf. epístola 105, pág. 145, Ed. Seraria). Por isso Merten tinha uma supersticiosa veneração pelo cachorro, cujo assento era de longe o mais elegante de todos; esse assento era constituído por um delicado cobertor carmesim da mais fina caxemira, almofadado como um luxuoso sofá e guarnecido por borlas de seda, tendo por alças umas molas engenhosamente interligadas. Assim que a refeição terminava, o assento era levado ao canto solitário de uma alcova afastada, que parecia ser a mesma descrita por Boileau, em seu "Le Lutrin", como o templo de repouso do preboste. Bonifácio não estava em seu lugar, a lacuna estava aberta e as faces de Merten se descoraram. "Onde está Bonifácio", ele perguntou, com o coração angustiado, e toda a mesa se sentiu profundamente abalada. "Onde está Bonifácio", Merten perguntou mais uma vez. Como se assustou, como estremeceram os seus membros, como se lhe arrepiou o cabelo ao ouvir que Bonifácio estava ausente. Num átimo todos saíram à sua procura, ele mesmo parecia ter perdido a fleuma habitual; fez então soar a campainha; Margarida entrou e pressentiu algo ruim, já ia pensando... "Margarida, onde está Bonifácio" Ao ouvir a pergunta, ela se acalmou visivelmente, mas ele bateu com o braço na lâmpada e todos se viram envoltos pela mais completa escuridão; sobreveio então uma noite tempestuosa e prenhe de infortúnios. Capítulo XXXVII David Hume afirmou que este capítulo é o "locus communis" do anterior e disse isso antes que eu o tivesse escrito. Sua prova consistia no seguinte: se este capítulo existe, não existe o anterior; este capítulo afastou o anterior, do qual se originou, mas não no sentido de uma relação de causa e efeito, pois ele tinha dúvidas sobre a questão. Todo gigante e, portanto, todo capítulo de vinte linhas, deixa atrás de si um anão; todo gênio, um filisteu; toda agitação do mar, a lama; e, tão logo os primeiros se retiram, os últimos se apresentam, tomam assento à mesa e esticam sem comedimento suas longas pernas. Os primeiros são demasiado grandes para este mundo; por isso são lançados fora. Os últimos, pelo contrário, deitam suas raízes e nele permanecem, como os fatos nos mostram, pois o champanhe deixa sempre um sabor final desagradável; o heroico César deixa o ator Otaviano; o imperador Napoleão, o rei- burguês Luís Filipe; o filósofo Kant, o cavaleiro Krug; o poeta Schiller, o conselheiro da corte Raupach; o celeste Leibniz, o aprendiz Wolf; o cão Bonifácio, este capítulo. Assim as bases se cristalizam como resíduos, mas o espírito se esfuma. Capítulo XXXVIII A última frase a respeito das bases era um conceito abstrato, não sendo, portanto, uma mulher, pois "um conceito abstrato e uma mulher são coisas muito distintas", exclamou Adelung. Mas eu afirmo o contrário e vou prová-lo cabalmente. Não o farei, contudo, neste capítulo; deixo a questão para um livro não subdividido em capítulos que pretendo escrever tão logo esteja convencido da existência da Santíssima Trindade. Capítulo XXXIX A quem deseja chegar a um conceito claro e não abstrato dela -não me refiro à grega Helena nem à romana Lucrécia, mas à Santíssima Trindade-, a esse não dou outro conselho senão o de que nada sonhe até que não durma. Pelo contrário, sugiro que permaneça em vigília no Senhor e investigue este parágrafo, pois nele repousa o conceito claro. Se, feito uma alta nuvem, nos elevarmos à sua altura, distante cinco patamares do ponto onde nos encontramos agora, iremos deparar com o gigantesco "não"; se descermos à sua metade, seremos assombrados pelo monstruoso "nada", e, se mergulharmos até as suas profundezas, ambos se harmonizarão novamente no "não", que investe contra nós portando a reta, audaciosa e flamejante escritura. "não" - "nada" - "não" Este é o claro conceito da trindade, mas o abstrato, quem o conceberá Pois "quem ascende ao céu e torna a descer" "Quem apanha o vento em suas mãos" "Quem recolhe a água em suas vestes" "Quem estabeleceu os confins do universo" "Como se chama e qual é o nome de seu filho Tu o sabes", indagou Salomão, o sábio. Capítulo XL "Não sei onde ele está, mas uma coisa é certa: estou apalpando um crânio, um crânio!", bradou Merten. Receoso, curvou-se para descobrir no escuro de quem era a cabeça que suas mãos tocavam, e então recuou como que fulminado, pois os olhos... Capítulo XLI Exatamente! Os olhos! São um magneto e atraem o ferro, daí que nos sintamos atraídos pelas mulheres e não pelo céu, pois as mulheres nos miram com dois olhos, e o céu, apenas com um. Capítulo XLII "Provo-lhe o contrário!", disse-me uma voz invisível, e, quando me voltei para ela, contemplei -os senhores não acreditarão em mim, mas garanto, juro que é verdade- contemplei -não se exaltem nem se espantem, pois não se trata das esposas nem da digestão dos senhores- contemplei a mim mesmo, porque eu mesmo me oferecera como contraprova. "Ha! Sou um sósia de mim mesmo!", foi o que me passou pela cabeça, e os "Elixires do Diabo", de Hoffmann,... Capítulo XLIII ... estavam diante de mim, postos na mesa, e foi então que refleti sobre o motivo de o judeu errante ser um berlinense nato e não um espanhol; percebi, porém, que isso se relaciona à contraprova que eu devia produzir, motivo pelo qual, para sermos precisos... não desejamos fazer nada com eles, contentando-nos, porém, com a observação de que o céu está nos olhos das mulheres e que os olhos delas não estão no céu, resultando disso a constatação de que não são os olhos que nos atraem e sim o céu, pois não contemplamos os olhos, mas o céu que neles se encontra. Se nos atraíssem os olhos e não o céu, então nós nos sentiríamos atraídos pelo céu e não pelas mulheres, pois o céu não tem um olho, como dissemos acima; ele não tem nenhum. E, no entanto, ele nada mais é que o infinito olhar amoroso da divindade, o terno e melodioso olho do espírito da luz, e um olho não pode ter um olho. Portanto, o resultado final de nossa investigação é a constatação de que nos sentimos atraídos pelas mulheres e não pelo céu, porque não vemos os olhos das mulheres e sim o céu que neles se encontra, porque nós, por assim dizer, não nos sentimos atraídos pelos olhos, porque não há olhos nenhuns e porque Ahsverus, o eterno, é um berlinense nato -é velho e doente e viu muitas terras e olhos e assim mesmo continua a se sentir atraído pelas mulheres e não pelo céu- e porque existem apenas dois magnetos: um céu sem olho e um olho sem céu. Um paira sobre nós e atrai para cima, o outro está abaixo de nós e atrai para as profundezas. Ahsverus é atraído violentamente para baixo. Vagaria ele eternamente pelas terras deste mundo se as coisas ocorressem de outro modo E vagaria eternamente por essas terras se não fosse um berlinense nato, acostumado às planícies arenosas Capítulo XLIV "Segundo fragmento, tirado do porta-cartas de Halto." Vínhamos de uma casa no campo, fazia uma bela noite tingida de azul-escuro. Eras amparada por meu braço, do qual te querias soltar; mas não o permiti, minha mão te prendia como tu prenderas meu coração, e consentiste nisso. Murmurei palavras cheias de nostalgia e disse as coisas mais belas e elevadas que um mortal pode dizer, pois eu nada dizia, estava mergulhado em mim mesmo; vi então elevar-se um reino cuja atmosfera era a um só tempo suave e pesada, e nessa atmosfera havia uma figura divina, a beleza em pessoa, tal como eu a vislumbrara em sonhos fantásticos sem reconhecê-la; ela rebrilhava com os raios do espírito e sorria, e eras tu a figura. Espantei-me comigo mesmo, pois, graças a meu amor, eu me tornara grande, gigantesco. Vi um mar infinito, mas nele não havia a agitação das torrentes; ele adquirira profundidade e eternidade, sua superfície era um cristal e seu escuro abismo aprisionava trêmulas estrelas douradas que entoavam canções de amor e irradiavam um forte calor, e o próprio mar se achava cálido! Oxalá esse caminho fosse a vida! Beijei tuas mãos doces e suaves, falei do amor e de ti. Uma tênue neblina pairava sobre nossas cabeças, seu coração se partiu, ela chorou copiosas lágrimas e caiu então entre nós; sentíamos-lhe, contudo, as lágrimas e nos calamos. Capítulo XLVII "Ou é Bonifácio ou são as pernas de minhas calças!", exclamou Merten. "Luz, luz, digo eu!", e houve luz. "Por Deus, não se trata das pernas de minhas calças, mas de Bonifácio, acomodado aqui neste canto escuro, e seus olhos ardem num fogo lúgubre, mas... o que vejo" "Ele sangra", e então Merten desmaiou sem dizer mais nada. Os jornaleiros viram primeiramente o cão e depois o dono. Finalmente este se ergueu bruscamente do chão. "O que estão olhando, cretinos Não percebem que São Bonifácio está ferido Instituirei uma investigação minuciosa, e ai, três vezes ai do culpado! Mas agora, rápido! Ponham-no em seu assento, chamem o médico da família, tragam vinagre e água morna e não se esqueçam de chamar o mestre-escola Vito. Sua palavra pode ser muito benéfica para Bonifácio!" Assim ele expediu rapidamente suas ordens. Os circunstantes se abalaram pelas portas em todas as direções. Merten examinou mais atentamente Bonifácio, cujos olhos ainda mantinham um intenso fulgor, e balançou a cabeça inquieto. "Estamos diante de uma desgraça, de uma grande desgraça. Chamem um padre!" Capítulo XLVIII Desesperado, Merten ergueu-se algumas vezes enquanto não chegava nenhum daqueles que mandara chamar. "Pobre Bonifácio! E se eu mesmo tentasse fazer alguma coisa enquanto o socorro não chega Estás exausto, o sangue jorra de tua boca, não queres comer; vejo um violento esforço se processando em teu ventre, eu te compreendo, Bonifácio!", e Margarida entrou trazendo água morna e vinagre. "Margarida! Há quantos dias Bonifácio não evacua Não te ordenei que lhe fizesse semanalmente uma lavagem Vejo que doravante serei obrigado a assumir pessoalmente os encargos importantes da casa! Traga óleo, sal, farelo, mel e uma sonda para o clister!" "Pobre Bonifácio! Teus santos pensamentos e reflexões constipam-te, uma vez que não podes externá-los pela boca nem pela pena!" "Oh, tu, admirável vítima da profundidade das ideias, oh, tu, pia constipação!"

13 de mai. de 2013

A Extraordinária Aventura vivida por Vladimir Maiakóvski no Verão na Datcha



A tarde ardia em cem sóis
O verão rolava em julho.
O calor se enrolava
no ar e nos lençóis
da datcha onde eu estava,
Na colina de Púchkino, corcunda,
o monte Akula,
e ao pé do monte
a aldeia enruga
a casca dos telhados.
E atrás da aldeia,
um buraco
e no buraco, todo dia,
o mesmo ato:
o sol descia
lento e exato
E de manhã
outra vez
por toda a parte
lá estava o sol
escarlate.
Dia após dia
isto
começou a irritar-me
terrivelmente.
Um dia me enfureço a tal ponto
que, de pavor, tudo empalidece.
E grito ao sol, de pronto:
¿Desce!
Chega de vadiar nessa fornalha!

E grito ao sol:
¿Parasita!
Você aí, a flanar pelos ares,
e eu aqui, cheio de tinta,
com a cara nos cartazes!

E grito ao sol:
¿Espere!
Ouça, topete de ouro,
e se em lugar
desse ocaso
de paxá
você baixar em casa
para um chá?

Que mosca me mordeu!
É o meu fim!
Para mim
sem perder tempo
o sol
alargando os raios-passos
avança pelo campo.
Não quero mostra medo.
Recuo para o quarto.
Seus olhos brilham no jardim.
Avançam mais.
Pelas janelas,
pelas portas,
pelas frestas
a massa
solar vem abaixo
e invade a minha casa.
Recobrando o fôlego,
me diz o sol com a voz de baixo:
¿Pela primeira vez recolho o fogo,
desde que o mundo foi criado.
Você me chamou?
Apanhe o chá,
pegue a compota, poeta!

Lágrimas na ponta dos olhos
- o calor me fazia desvairar, eu lhe mostro
o samovar:
¿Pois bem,
sente-se, astro!

Quem me mandou berrar ao sol
insolências sem conta?
Contrafeito
me sento numa ponta
do banco e espero a conta
com um frio no peito.
Mas uma estranha claridade
fluía sobre o quarto
e esquecendo os cuidados
começo
pouco a pouco
a palestrar com o astro.
Falo
disso e daquilo,
como me cansa a Rosta²,
etc.
E o sol:
¿Está certo,
mas não se desgoste,
não pinte as coisas tão pretas.
E eu? Você pensa
que brilhar
é fácil?
Prove, pra ver!
Mas quando se começa
é preciso prosseguir
e a gente vai e brilha pra valer!¿
Conversamos até a noite
ou até o que, antes, eram trevas.
Como falar, ali, de sombras?
Ficamos íntimos,
os dois.
Logo,
com desassombro
estou batendo no seu ombro.
E o sol, por fim:
¿Somos amigos
pra sempre, eu de você,
você de mim.
Vamos, poeta,
cantar,
luzir
no lixo cinza do universo.
Eu verterei o meu sol
e você o seu
com seus versos.

¿O muro das sombras,
prisão das trevas,
desaba sob o obus
dos nossos sóis de duas bocas.
Confusão de poesia e luz,
chamas por toda a parte.
Se o sol se cansa
e a noite lenta
quer ir pra cama,
marmota sonolenta,
eu, de repente,
inflamo a minha flama
e o dia fulge novamente.
Brilhar para sempre,
brilhar como um farol,
brilhar com brilho eterno,
Gente é pra brilhar
que tudo o mais vá prá o inferno,
este é o meu slogan
e o do sol.

Pecados Capitais.

Filme, Feios, Porcos e Malvados  Nino Manfredi em Giacinto Mazzatella. Obra Prima de Etore  Scola.



Os vícios privados fazem a virtude pública, é a mensagem irônica do poema: A fábula das abelhas, escrito 

por Bernard de Mondeville em 1714. Bernard, um médico holandês descreve aí um paradoxo econômico, 

delicioso. A avareza, a luxuria e a gula, que são pecados capitais, resultam úteis e contribuem ao bem geral, 

da colmeia. Se não fosse pelos gulosos, como iam ganhar a vida as doceiras? Se não fosse pelos 

mulherengos, os pródigos, que gastam com flores e presentes o que não têm, como ganhariam a vida as 

floristas, os proxenetas? Se não fosse pelos avarentos que ganham dinheiro com o trabalho dos outros, 

quem daria emprego aos desempregados? O que beneficia a sociedade, então, não é outra coisa senão os 

vícios dos seus membros.

No ano de 1759, Adam Smith publicou A teoria dos sentimentos morais. Ali sustem com cândida beatitude 

que o estado não deve fazer qualquer regulação da economia, que disto se encarregaria a ''mão invisível do 

mercado”, a qual, como um anjo da guarda, organizaria a diversidade dos interesses humanos. Ainda 

segundo Smith, não faria falta leis estatais sobre as condições de trabalho, salários, preço ou qualidade dos 

produtos, porque a livre concorrência, a lei da oferta e da procura, a luta entre produtores para vender a 

melhor preço, e as disputas entre operários e empresários pelos salários acabariam em um copioso 

equilíbrio que a todos beneficiaria. Confesso, crédulo leitor, que começam a rolar as lágrimas da mais pura 

emoção, entre os vincos da minha cara de taipa, diante deste retrato tão maravilhoso da coisa.



O caso é que estas prédicas do arcanjo Adam Smith, e que se tornaram o novo testamento dos neoliberais 


dos últimos dias, levaram-nos às práticas e consequências quais todos conhecemos. Será por isso que há 

este ruído ruinoso a pedir mais selic, menos direitos aos ''domésticas” etc.


Hoje por motivo abolicionista, O Estado, oferece o resultado de fatos – relatados pela Justiça do Trabalho -  

ocorridos até ontem no Brasil, que diz respeito a trabalhadores que viviam em regime de verdadeira 

escravidão, e não se trata do Acre ou da Bolivia, mas de São Paulo no empoado quarto posto na lista que 

enumera empresas com regime escravista de trabalho.


Que lástima que os tribunais de Justiça do Trabalho não sabem da estreita relação entre os vícios privados e 

as virtudes públicas, e assim punam estes senhores, porque bem que poderiam esperar pela autorregulação, 

assim manteriam estes abusos tão delicados, tão perfeitamente injustos, tão despojadamente liberais.             
















A fábula das abelhas. Bernard de Mandeville. 1714.




Uma grande colmeia, repleta de abelhas,
Que viviam com luxo e comodidade,
Porém eram tão famosas por leis e armas
Quanto por copiosos e precoces enxames,
Era tida como o grande berço
Das ciências e da indústria.
Não havia abelhas que possuíssem governo melhor,
Maior volubilidade ou menos contentamento;
Não eram escravas da tirania,
Nem governadas pela desenfreada Democracia,
E sim por reis, que não podiam errar,
Pois seu poder era restrito por leis.
Esses insetos viviam como os homens,
E todas as nossas ações executavam em miniaturas;
Faziam tudo o que se faz na cidade,
E o que é da alçada da espada ou toga,
Embora os trabalhos engenhosos dos membros minúsculos
De tão ligeiros escapassem à vista humana.
Entretanto, não temos máquinas, trabalhadores,
Navios, Castelos, armas, artífices,
Ofício, ciência, loja ou instrumento
Para os quais não possuíssem equivalente;
Estes, sendo sua língua desconhecida,
Devem ser chamados com os nomes que damos aos nossos.
Como concessão, entre outras coisas,
Queriam dados, mas tinham reis,
E estes tinham guardas, do que se pode, acertadamente,
Concluir que algum jogo havia,
A menos que exista um regimento
De soldados que não pratique nenhum.
Grandes números abarrotavam a fértil colmeia,
Porém essa multidão fazia com que prosperassem;
Milhões empenhavam-se em satisfazer
Mutuamente sua cupidez e vaidade,
Enquanto outros milhões labutavam
Para ver destruídas suas obras.
Abasteciam metade do universo,
Porém tinham mais trabalho que trabalhadores.
Alguns, com grande capital e pouco esforço,
Lançavam-se a negócios de fabulosos lucros;
Outros estavam condenados à foice e à espada,
E a todos esses árduos e cansativos ofícios
Nos quais, voluntariamente, desgraçados suam dia após dia,
Esgotando as forças e os membros para poderem comer,
Enquanto outros se dedicavam a mistérios
Aos quais poucos encaminhavam aprendizes,
Que não requeriam outro cabedal senão o descaramento,
E podiam estabelecer-se sem um centavo sequer,
Como trapaceiros, parasitas, gigolôs, jogadores,
Punguistas, falsários, charlatães, adivinhos
E todos os que, inimigos
Do trabalho honesto, astuciosamente
Convertiam em seu próprio benefício
O trabalho do afável e incauto próximo.
A esses chamavam velhacos, mas exceto pelo nome,
Os austeros industriosos eram iguais;
Todos os negócios e cargos tinham algo de desonesto,
Nenhuma profissão era isenta de embustes.
Os advogados, cuja arte tinha por base
Suscitar contendas e dividir causas,
Opunham-se a todos os registros, pois as trapaças
Poderiam dar mais trabalho com propriedades hipotecadas,
Como se fosse ilegal que o patrimônio de alguém
Fosse conhecido sem uma ação judicial.
Postergavam deliberadamente as audiências,
Para embolsar polpudos honorários,
E, para defender uma causa iníqua,
Examinavam e observavam as leis,
Como ladrões que espreitam lojas e casas
Para descobrir qual o seu ponto fraco.
Médicos valorizavam fama e riqueza
Acima da saúde dos depauperados pacientes
Ou de sua própria habilidade; a maior parte estudava,
Em vez de as regras da arte,
Olhares graves e pensativos e atitudes apáticas,
Para ganhar a simpatia do boticário
E elogios das parteiras, sacerdotes
E todos os que lidavam com nascimentos e funerais,
Suportar a incessante tagarelice da tribo,
E ouvir a tia da dona da casa prescrever,
Com um sorriso afetado e um cortês “como vai?”
Para bajular toda a família
E, o que é o pior de todos os tormentos,
Aguentar a impertinência das enfermeiras.
Entre os muitos sacerdotes de Júpiter,
Contratados para invocar as bênçãos do céu,
Alguns havia sábios e eloquentes,
Mas milhares lascivos e ignorantes;
Contudo, todos preenchiam os requisitos que podiam ocultar
Sua preguiça, luxúria, avareza e orgulho,
Pelos quais eram tão famosos quanto alfaiates
Por sonegar retalhos e marinheiros por rum.
Alguns, magros e pobremente vestidos,
Rezavam misticamente por pão,
Com isso querendo dizer uma farta despensa,
Contudo, literalmente, não recebiam nada além.
E, enquanto esses santos labutadores passavam fome,
Alguns preguiçosos a quem serviam
Abandonavam-se ao ócio, com todas as graças
Da saúde e da fartura nas faces.
Os soldados, que eram forçados a lutar,
Se sobrevivessem, auferiam honrarias,
Embora alguns, que se esquivavam de brigas sangrentas,
Houvessem sido feridos na fuga.
Alguns generais valentes combatiam os inimigos,
Outros aceitavam suborno para deixá-los escapar;
Alguns aventuravam-se sempre onde a luta era mais renhida,
Perdiam ora uma perna, ora um braço,
Até que, totalmente inválidos, eram postos de lado,
E viviam com a metade do soldo,
Enquanto outros nunca apareciam no campo de batalha,
E ficavam em casa recebendo em dobro.
Seus reis eram servidos, porém astutamente
Logrados pelo seu próprio ministério;
Muitos, que pelo seu bem-estar arduamente trabalhavam,
Roubavam a própria coroa a quem salvavam;
As pensões eram pequenas, e eles viviam à larga,
Porém jactavam-se de sua honestidade,
Chamando, sempre que extrapolavam seus direitos,
Gratificação a seu logro matreiro;
E, quando entendiam seu jargão,
Mudavam o nome para emolumento,
Relutantes em ser concisos ou explícitos
Com tudo o que se referisse a ganhos;
Pois não havia abelha que não quisesse
Ganhar mais, não direi, do que merecia,
Porém do que ousava permitir que soubessem
Aqueles que lhes pagavam, como jogadores
Que, embora jogando limpo, nunca revelam
Aos perdedores o quanto ganharam.
Mas quem pode enumerar todas as suas fraudes?
O próprio material que na rua
Vendiam como esterco para enriquecer o solo,
Frequentemente, como descobria o comprador,
Era sofisticado com um quarto
De pedras e argamassa imprestáveis,
Embora pouca razão tivesse para queixar-se
Aquele que também vendia gato por lebre.
A própria Justiça, célebre pela equanimidade
Embora cega não perdera o tato;
Sua mão esquerda, que deveria sustentar a balança,
Deixara-a muitas vezes pender, subornada com ouro;
E, conquanto parecesse imparcial,
Quando se tratava de punição corporal,
Alardeava seguir curso regular
Em assassinatos e todos os crimes violentos,
Porém alguns, primeiro mandados ao pelourinho por desonestidade,
Eram enforcados na própria corda com que haviam sido açoitados.
Contudo, pensava-se, a espada que ela empunhava
Reprimia apenas os pobres e desesperados
Que, impelidos por mera necessidade,
Eram amarrados à árvore dos desgraçados
Por crimes que não mereciam tal destino,
Senão para proteger os ricos e poderosos.
Assim, o vício imperava em cada parte,
Embora o todo fosse um paraíso;
Incensados na paz, temidos na guerra,
Tinham o respeito dos estrangeiros,
E, na abundância de riqueza e vidas,
Eram a força preponderante entre todas as colmeias.
Tais eram as bênçãos daquele estado
Que seus crimes conspiravam para torná-lo grandioso;
E a virtude, que com a política
Aprendera milhares de artifícios sutis,
Tornara-se, pela feliz influência,
Amiga do vício, e desde então
O pior elemento em toda a multidão
Fazia algo para o bem comum.
Era essa a estatística que regia
O todo, do qual cada parte reclamava;
Isso, como na harmonia musical,
Conciliava as dissonâncias no geral.
Grupos diretamente opostos
Ajudavam-se mutuamente, como por perversidade,
E a temperança e a sobriedade
Serviam à embriaguez e à gula.
A avareza, raiz do mal,
Esse maldito, perverso, pernicioso vício,
Era escrava da prodigalidade,
O pecado nobre; enquanto o luxo
Empregava um milhão de pobres,
E o orgulho odioso, mais um milhão.
A própria inveja e a vaidade
Eram ministros da indústria;
Sua extravagância predileta, a volubilidade
No comer, vestir-se e mobiliar,
Tornara-se, vício estranho e ridículo,
A própria roda que movia os negócios.
Suas leis e seus trajes eram, igualmente,
Coisas mudáveis,
Pois, o que em certo momento era bem visto,
Meio ano depois tornava-se crime.
Entretanto, enquanto assim alteravam suas leis,
Sempre encontrando e corrigindo imperfeições,
Através da inconstância reparavam falhas
Que a prudência não poderia prever.
Assim, o vício fomentava a engenhosidade
Que, unida ao tempo e ao trabalho,
Propiciava as comodidades da vida,
Seus verdadeiros prazeres, confortos e facilidades,
A tal ponto que mesmos os pobres
Viviam melhor que os ricos de outrora,
E nada mais havia a acrescentar-se.
Como é vã a felicidade dos mortais!
Tivessem eles noção dos limites da bem-aventurança,
E de que a perfeição, cá embaixo,
Está acima do que os deuses podem conceder,
E os queixosos animais ter-se-iam contentado
Com ministros e governo.
Porém eles, a cada sobrevento,
Como criaturas irremediavelmente perdidas,
Maldiziam os políticos, o exército, as frotas,
Enquanto cada um gritava “Abaixo os desonestos!”,
Apesar de cônscio dos próprios defeitos,
Dos demais, barbaramente, não tolerava nenhum.
Um, que conseguira patrimônio principesco
Enganando o patrão, o rei e os pobres,
Atrevia-se a bradar “Que a terra pereça
Por todas as suas fraudes!”; e quem pensais”
Que o patife pregador do sermão censurava?
A um luveiro, que vendera couro grosseiro por pelica!
A menor coisa feita incorretamente,
Ou que obstasse aos negócios públicos,
E já todos os velhacos gritavam disfarçadamente:
“Oh, Deus! Se ao menos houvesse honestidade!”
Mercúrio sorria ante a imprudência,
E outros chamavam-na falta de senso,
Sempre a protestar contra o que amavam.
Porém, Júpiter, cheio de indignação,
Finalmente, irritado, jurou livrar
Da fraude a vociferante colmeia. E assim o fez.
No mesmo momento, ela se foi
E a honestidade encheu seus corações;
Revelaram-se-lhes, como na árvore do conhecimento,
Os crimes dos quais se envergonharam,
E que então, em silêncio, confessaram,
Enrubescendo ante sua torpeza,
Como crianças que, desejando esconder suas faltas,
Pela cor denunciam os pensamentos,
Imaginando, ao serem olhados,
Que os outros veem o que fizeram.
Porém, oh deuses! Que consternação!
Quão grande e súbita foi a alteração!
Em meia hora, no país inteiro,
A carne caiu um pêni por libra;
A máscara da hipocrisia despencou,
Do grande estadista ao palhaço;
E alguns, tão conhecidos pela aparência afetada,
Pareceram estranhos com a sua natural.
O tribunal ficou silencioso a partir de então,
Pois agora os devedores, voluntariamente, pagavam
Mesmo o que os credores haviam esquecido,
E estes desobrigavam os que não podiam saldar as dívidas.
Os que estavam sem razão calaram-se
E desistiram dos esfarrapados e vexatórios processos,
Com o que, já que ninguém prospera menos
Do que advogados em uma colmeia honesta,
Todos, exceto os que tinham grandes posses,
Partiram, levando consigo seus tinteiros.
A justiça enforcou alguns, outros libertou,
E, após esvaziarem-se as prisões,
Não mais sendo necessária sua presença,
Retirou-se com todo o seu cortejo e pompa.
Na vanguarda marcharam ferreiros, com cadeados e grades,
Grilhões e portas com chapas de ferro;
A seguir, carcereiros, guardas e ajudantes;
Á frente da deusa, a alguma distância,
Seu fiel ministro principal,
Dom Algoz, o grande executor da lei,
Empunhando não a espada imaginária,
Mas seus próprios instrumentos, o machado e a corda;
Então, em uma nuvem, a bela de olhos vendados:
A justiça em pessoa, impelida pelo ar;
Em volta de sua carruagem, e na retaguarda,
Seguiram sargentos, esbirros de todas a espécie,
Beleguins e todos aqueles funcionários
Que das lágrimas arrancam seu sustento.
Embora vivesse a medicina enquanto houvesse doentes,
Ninguém prescrevia senão abelhas habilitadas,
As quais dispersaram-se tanto pela colmeia
Que nenhuma precisava de condução;
Deixaram de lado controvérsias inúteis e esforçaram-se
Por livrar os pacientes do sofrimento;
Abandonaram as drogas produzidas em países desonestos
E usaram os produtos da sua própria terra,
Sabendo que os deuses não mandam doenças
A nações sem remédios.
O clero despertou da preguiça;
Não mais delegaram suas incumbências às abelhas auxiliares;
Isentos de vício, serviram pessoalmente
Aos deuses, com oração e sacrifício.
Todos os que eram inaptos, ou sabiam
Serem dispensáveis seus serviços, retiraram-se;
Nem havia trabalho para tantos
(se é que os honestos precisam de algum).
Somente uns poucos permaneceram com o sumo sacerdote,
A quem os demais juraram obediência;
Ele próprio ocupou-se de assuntos divinos,
Cedendo a outro os negócios de estado.
Não escorraçou de sua porta nenhum faminto,
Nem roubou aos pobres seu salário;
Em sua casa os esfomeados foram alimentados,
Os subordinados tiveram pão sem restrições,
E os viajantes necessitados, cama e comida.
Entre os grandes ministros do rei
E todos os administradores subalternos
A mudança foi grande pois, frugalmente,
Passaram a viver de seu salário.
Que uma abelha pobre viesse dez vezes
Pedir o que lhe era devido, uma quantia irrisória,
E por um escrivão bem pago fosse obrigada
A dar algo por fora ou nunca receber,
Seria agora considerado absoluta desonestidade,
Embora antes fosse prerrogativa.
Todos os lugares, antes administrados por três,
Que vigiavam mutuamente suas velhacarias,
E muitas vezes, por camaradagem,
Promoviam os roubos uns dos outros,
Felizmente passaram a ser geridos por um só;
Com isso, foram-se outros milhares.
Nenhuma honra agora poderia satisfazer-se
Em viver devendo pelo que gastava;
Librés ficaram expostas em lojas de penhores,
Desfizeram-se de carruagens por uma pechincha,
Venderam cavalos magníficos às parelhas,
E casas de campo para saldar dívidas.
Evitou-se o gasto inútil tanto quanto a fraude;
Não mais mantiveram exércitos no exterior;
Riram-se da estima dos estrangeiros
E das glórias vãs conseguidas com guerras;
Lutaram, mas pelo bem da pátria,
Quando o direito e a liberdade estavam em jogo.
Olhai agora a gloriosa colmeia e vede
Como se conciliam honestidade e negócios:
O espetáculo terminou; esvaiu-se rapidamente,
E apresentou-se com face bastante diversa,
Pois não só foram-se aqueles
Que somas vultosas gastavam anualmente,
Mas multidões, que neles tinham seu ganha-pão,
Foram diariamente forçadas a fazer o mesmo;
Inutilmente buscara outros ofícios,
Pois estavam todos superlotados.
Caiu o preço da terra e das casas;
Palácios maravilhosos, cujos muros,
Como os de Tebas, foram feitos para o espetáculo.
Puseram-se para alugar, enquanto os outrora garridos,
Bem estabelecidos deuses domésticos ficariam
Mais satisfeitos em morrer no fogo do que ver
A modesta inscrição na porta
Sorrir das soberbas que eles exibiam.
A construção civil foi aniquilada,
Não se empregaram mais artífices,
Nenhum pintor ganhou fama por sua arte,
Canteiros e entalhadores não se tornaram conhecidos.
Os que permaneceram tornaram-se moderados,
Esforçaram-se não para gastar, mas para viver,
E, tendo pago a conta da taverna,
Resolveram lá não mais entrar.
Nenhuma ex-noiva de taverneiro em toda a colmeia
Pôde, então, usar tecidos de ouro e prosperar,
Nem perdulários adiantar tão grandes quantias
Para borgonhas e verdascos.
Foi-se o cortesão que com sua querida,
Diariamente ali jantava um banquete de natal,
Gastando, em duas horas de estada,
O que sustentaria o dia todo uma tropa de cavalaria.
O arrogante Cloé, que para viver à grande,
Fizera seu marido roubar ao Estado,
Agora, contudo, vendeu sua mobília,
Que fora saqueada nas Índias,
Reduziu o dispendioso cardápio,
E usou um ano inteiro os mesmo trajes duráveis:
A era da futilidade e do capricho passou,
E as roupas, bem como as modas, permaneceram.
Tecelões que produziam ricos brocados
E todos os ofícios subordinados
Extinguiram-se. Ainda reinava a paz e a abundância,
E tudo era barato, porém simples.
A bondosa Natureza, livre do jugo dos jardineiros,
Concedia todos os frutos no seu próprio tempo;
Contudo, raridades não se podia mais obter
Quando os esforços para consegui-las não eram pagos.
À medida que minguaram orgulho e luxo,
Gradativamente deixaram os mares,
Agora não os mercadores, mas companhias.
Fecharam fábricas inteiras.
Todas as artes e ofícios foram abandonados.
O contentamento, ruína da indústria,
Fê-lo apreciar seu estoque caseiro
E não buscar nem cobiçar mais.
Assim, poucos permaneceram na vasta colméia;
Não puderam manter nem a centésima parte
Contra as afrontas dos numerosos inimigos,
A quem, valentemente, enfrentavam,
Até encontrar algum refúgio bastante fortificado,
Onde morriam ou defendiam seu território.
Não houve mercenários em seu exército;
Bravamente, lutaram eles próprios.
Sua coragem e integridade
Foram finalmente coroadas com a vitória.
Triunfaram, porém não sem custo,
Pois milhares de abelhas pereceram.
Calejadas dos árduos trabalhos e exercícios,
Consideraram vicio a própria comodidade,
O que aperfeiçoou de tal modo sua moderação.
Que, para evitar extravagâncias,
Voaram para uma árvore oca,
Abençoadas com satisfação e honestidade.