5 de nov. de 2012

Os Arbitros e a Conspiração.


Os Arbitros e a Conspiração.


O Arbitro é uma mistura de deus e homem. Deus pelo poder definitivo. Sua onipresença no campo de jogo. Sua onisciência etc. Homem, pela humanidade do erro. Este final de semana houve por bem e por mal, mundo afora, da arbitragem cometer erros importantes, que em campeonatos 'justos' 'apertados' como o inglês, podem ter influência direta não só no resultado da partida, mas no resultado final do campeonato. O mesmo aconteceu em Valência, Mestalla. Aconteceu ontem na bela arena do America mineiro, no jogo do Galo. No jogo entre Ponte Preta e Fluminense – verdadeiro roubo – duas falhas 'clamorosas' do colegiado. Em outra partida do Pó-de-arroz. Aliás, o Flusão sem tais ajudas teria uns 9 pontos menos. Ou será que não se trate da minha vontade de ver o Atlético mineiro campeão, por ser uma equipe mais anódina que o tricolor das laranjeiras.
Entretando devo agradecer a existência destes abnegados senhores, porque não poderia apitar, como já tentei, uma partida entre casados e solteiros aqui do bairro e depois do prélio almoçar sossegadamente com minha mãe.
O certo é que acertam muito, mais acertam que erram. É um trabalho difícil. E mais digo: Cumprem função social das mais importantes: serem os culpados pelos fracassos alheios. Além de servirem de álibi a seguirmos com fé na grandeza do nosso time, ainda que tudo o mais diga em contrário.
Se venta é porque venta, se faz calor é porque faz calor, é o horário de verão o negócio é queixar. Não chovia, agora chove é certo, está aberta a temporada de queixas pela chuva.
Todavia, agradeço a valentia desses heróis não reconhecidos. Mas também sei que temos que manter viva a conspiração, pois que senão, acaba a farra.  

2 de nov. de 2012

FEITICEIRO DAS PALAVRAS, CABOCLO UNIVERSAL


JOÃO GUIMARÃES ROSA 


-Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente - depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucaia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde um criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda parte. 
Grande Sertão: Veredas 
Vivo no infinito; o momento não conta. Vou lhe revelar um segredo: creio já ter vivido uma vez. Nesta vida também fui brasileiro e me chamava João Guimarães Rosa 

Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente. Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como o sofrimento dos homens. 
"Às vezes, quase acredito que eu mesmo, 
João, seja um conto contado por mim." 
Que nasci no ano de 1908, você já sabe. Você não deveria me pedir mais dados numéricos. Minha biografia, sobretudo minha biografia literária, não deveria ser crucificada em anos. As aventuras não têm princípio nem fim. E meus livros são aventuras; para mim são minha maior aventura. 
Em 1967, João Guimarães Rosa seria indicado para o prêmio Nobel de Literatura. A indicação, iniciativa dos seus editores alemães, franceses e italianos, foi barrada pela morte do escritor. A obra do brasileiro havia alcançado esferas talvez até hoje desconhecidas. Quando morreu, em 19 de novembro de 67, Guimarães Rosa tinha 59 anos. Tinha-se dedicado à medicina, à diplomacia, e, fundamentalmente às suas crenças, descritas em sua obra literária. Fenômeno da literatura brasileira, Rosa começou a escrever aos 38 anos. Depois desse volume, escreveria apenas outros quatro livros. Realização, no entanto, que o levou à glória, como poucos escritores nacionais. Guimarães Rosa, com seus experimentos lingüísticos, sua técnica, seu mundo ficcional, renovou o romance brasileiro, concedendo-lhe caminhos até então inéditos. Sua obra se impôs não apenas no Brasil, mas alcançou o mundo. 
"A beleza aqui é como se a gente a bebesse, em copo, taça, longos, preciosos goles servida por Deus. É de pensar que também há um direito à beleza, que dar beleza a quem tem fome de beleza é também um dever cristão." 

Grande Sertão: Veredas 
Três dias antes da morte, Guimarães Rosa decidiu, depois de quatro anos de adiamento, assumir a cadeira na Academia Brasileira de Letras. Homem de temperamento emotivo e sensível, foi traído pela emoção. Os quatro anos de adiamento eram reflexo do medo que sentia da emoção que o momento lhe causaria. Ainda que risse do pressentimento, afirmou no discurso de posse: "...a gente morre é para provar que viveu." 
Joãozito, como era chamado pela família, nasceu em 27 de junho de 1908, em Cordisburgo, cidadezinha mineira próxima a Curvelo e Sete Lagoas, área de fazenda e engorda de gado. Viveu lá durante dez anos. João era filho de Floduardo Pinto Rosa e de Francisca Guimarães Rosa. O casal teve outros 5 filhos. Todos depois de João. 

"Não gosto de falar em infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá excesso de adultos, todos eles, os mais queridos, ao modo de policiais do invasor, em terra ocupada. Fui rancoroso e revolucionário permanente, então. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom, de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas." 
Aos seis anos, Guimarães Rosa leu o primeiro livro, em francês, LES FEMMES QUI AIMMENT. Aos dez anos, vai para Belo Horizonte, morar com o avô. Está no ginasial, e freqüenta a mesma escola que Carlos Drummond, o futuro amigo.

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"Ficamos sem saber o que era João 
e se João existiu 
de se pegar" 
Carlos Drummond de Andrade 
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Até ingressar na Faculdade de Medicina, João Guimarães Rosa obtém licença para freqüentar a Biblioteca da Cidade de BH, dedicando o seu tempo, além dos estudos, às línguas, à História Natural e aos Esportes. Em 1930, formado, o médico vai exercer a profissão em Itaguara, onde fica por dois anos. Guimarães revela-se um profissional dedicado, respeitado, famoso pela precisão dos seus diagnósticos. O período em Itaguara influi decisivamente em sua carreira literária. Para chegar aos pacientes, desloca-se a cavalo. Inspirado pela terra, costumes, pessoas e acontecimentos do cotidiano, Guimarães inicia suas anotações, colecionando terminologias, ditos e falas do povo, que distribui pelas histórias que já escreve. 
"Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago..." - foi o que pensei na ocasião. De pensar assim me desvalendo. Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter. Apertou em mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo; que, quando notei que estava com dor-de-cabeça, e achei que por certo a tristeza vinha era daquilo, isso até me serviu de bom consolo. E eu nem sabia mais o montante que queria, nem aonde eu extenso ia. 
Grande Sertão:Veredas 
Nos tempos da Faculdade, Guimarães Rosa dedica-se também à literatura. Levado pela necessidade financeira, escreve contos para a revista O Cruzeiro. Concorre quatro vezes, em todas sendo premiado com cem mil réis. Na época, escreve friamente, sem paixão, preso a moldes alheios. Em 32, ano da Revolução Constitucionalista, o médico e escritor volta a Belo Horizonte, servindo como voluntário da Força Pública. A partir de 34, atua como oficial médico em Barbacena. Paralelamente, escreve. Antes que os anos 30 terminem, ele participa de outros dois concursos literários. Em 1936, a coletânea de poemas MAGMA recebe o prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras. Um ano depois, sob o pseudônimo de VIATOR, concorre ao prêmio HUMBERTO DE CAMPOS, com o volume intitulado CONTOS, que em 46, após uma revisão do autor, se transformaria em SAGARANA, obra que lhe rendeu vários prêmios e o reconhecimento como um dos mais importantes livros surgidos no Brasil contemporâneo. Os contos de Sagarana apresentam a paisagem mineira em toda a sua beleza selvagem, a vida das fazendas, dos vaqueiros e criadores de gado, mundo que Rosa habitara em sua infância e adolescência. Neste livro, o autor já transpõe a linguagem rica e pitoresca do povo, registra regionalismos, muitos deles jamais escritos na literatura brasileira. 




ROSA - VAQUEIRO DOS SERTÕES DOS GERAIS 
Foto de "O Cruzeiro", tirada em 1952, quando aos 44 anos de idade, foi rever seu velho sertão. Viagem de muitas e muitas léguas, transportando uma boiada 



Quando a gente dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flor. O que sinto, e esforço em dizer ao senhor, repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nestas fantasias. Dormi nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo o que é bonito é absurdo - Deus estável. Ouro e prata que Diadorim aparecia ali, a uns dois passos de mim, me vigiava. Sério, quieto, feito ele mesmo, só igual a ele mesmo nesta vida. 
Grande Sertão: Veredas 
"Chegamos novamente a um ponto em que o homem e sua biografia resultam em algo completamente novo. Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida, e, a rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico, conheci o valor do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte." 
Duas coisas impressionavam o Guimarães Rosa médico: o parto e a incapacidade de salvar as vítimas da lepra. Duas coisas opostas, mas de grande significado para ele. Segundo a filha Wilma - que lançou na década de 80 o livro RELEMBRAMENTOS, GUIMARÃES ROSA, MEU PAI, uma coletânea de discursos, cartas e entrevistas concedidas pelo escritor -, ele passava horas estudando, queria aprender, rapidamente, a estancar o fluxo do sofrimento humano. Logo constatou que seria uma missão difícil, se não impossível. A falta de recursos médicos e o transbordamento de sua emotividade impediram que ele prosseguisse a carreira de médico. Para a filha, João Guimarães Rosa nasceu para ser escritor. A medicina não foi o seu forte, nem a diplomacia, atividade a que se dedicou a partir de 1934, levado pelo domínio e interesse por idiomas. Rosa tinha conhecimento profundo de húngaro, russo e chinês, além de falar alemão, inglês, francês, romeno e italiano, entre outras línguas. O conhecimento de línguas estrangeiras seria um aliado de Guimarães Rosa, especialmente no que diz respeito à tradução da sua obra, já que o escritor mineiro se notabilizou pela invenção de vocábulos, além do registro da linguagem sertaneja brasileira, inacessível a tradutores estrangeiros. 



O homem nasceu para aprender, 
aprender tanto quanto a vida lhe permita. 

Em 38, Guimarães Rosa é nomeado consul-adjunto em Hamburgo, permanecendo na cidade até 42. Durante a Segunda Guerra, passa por uma experiência que detona seu lado supersticioso. É salvo da morte porque sentiu, no meio da noite, uma vontade irresistível, segundo suas palavras, de sair para comprar cigarros. Quando voltou, encontrou a casa totalmente destruída por um bombardeio. A superstição e o misticismo acompanhariam o escritor por toda a vida. Ele acreditava na força da lua, respeitava curandeiros, feiticeiros, a umbanda, a quimbanda e o kardecismo. Dizia que pessoas, casas e cidades possuíam fluidos positivos e negativos, que influíam nas emoções, nos sentimentos e na saúde de seres humanos e animais. Aconselhava os filhos a terem cautela e a fugirem de qualquer pessoa ou lugar que lhes causasse algum tipo de mal estar. Seguindo a missão diplomática, Guimarães Rosa serve, em 42, em Baden Baden; de lá, vai para Bogotá, onde fica até 44. O contato com o Brasil, no entanto, era freqüente. Em 45, vai ao interior de Minas, rever as paisagens da infância. Três anos depois, é transferido para Paris. 
1946. "Eu ando meio febril, repleto, com um enxame de personagens a pedirem pouso em papel. É coisa dura e já me assusta, antes de pôr o pé no caminho penoso, que já conheço". 

O calor do dia abrandava. Naqueles olhos e tanto de Diadorim, o verde mudava sempre, como a água de todos os rios em seus lugares ensombrados. Aquele verde, arenoso, mas tão moço, tinha muita velhice, muita velhice, querendo me contar coisas que a idéia da gente não dá para se entender - e acho que é por isso que a gente morre. De Diadorim ter vindo, e ficar esbarrado ali, esperando meu acordar e me vendo meu dormir, era engraçado, era para se dar a feliz risada. Não dei. Nem pude nem quis. Apanhei foi o silêncio dum sentimento, feito um decreto: 
- Que você em sua vida toda toda por diante, tem de ficar para mim, Riobaldo, pegado em mim, sempre!... - que era como se Diadorim estivesse dizendo. 
Grande Sertão: Veredas 


Entre outubro e novembro de 1949, Guimarães Rosa e a mulher Aracy realizam uma viagem turística à Itália. No ano seguinte, nos meses de setembro e outubro, o casal refaz o roteiro, visitando as mesmas cidades. Como de costume, o escritor utiliza cadernetas para gravar sensações, descrever tipos e paisagens, anotar expressões, burilar algumas outras. Essas anotações não têm um objetivo específico. Anota como um viajante curioso, como um permanente estudante da vida e da natureza, sempre voltado pra o seu trabalho, documentando, armazenando idéias, exercitando-se no manejo da língua portuguesa. 

"Arco íris proxíssimo! parece andar com o trem. Seu verde é belo - bórico - vê-se o roxo, anil. Não tem raízes, não se encosta no chão. Está do lado oeste, onde há nuvens estranhas, escuras, de trombas d'água. E cidades e aldeias sobre montes, grimpas. Do lado do mar, o sol se abaixa. Tudo claro. como o trem divide o mundo" 
Grande Sertão: Veredas 




CORPO DE BAILE, a partir da 
3ª edição desdobra-se em 3 volumes independentes. A imagem é sugestão de capa preparada pelo própio Rosa, com um curioso recado: "dois meninos, um deles de 7 e o outro de 8 anos, e uma cachorra". Desistiu disso depois, bem como cortou a indicação de duas novelas Guimarães Rosa retorna ao Brasil em 51. No ano seguinte, faz uma excursão ao Mato Grosso. O resultado é uma reportagem poética: COM O VAQUEIRO MARIANO. Em 1956, no mês de janeiro, reaparece no mercado editorial com as novelas CORPO DE BAILE, onde continua a experiência iniciada em Sagarana. A partir de o Corpo de Baile, a obra de Guimarães Rosa - autor reconhecido como o criador de uma das vertentes da moderna linha de ficção do regionalismo brasileiro - adquire dimensões universalistas, cuja cristalização artística é atingida em Grande Sertão Veredas, lançado em maio de 56. Em ensaio crítico sobre CORPO DE BAILE, o professor Ivan Teixeira afirma que o livro talvez seja o mais enigmático da literatura brasileira. As novelas que o compõem formam um sofisticado conjunto de logogrifos, em que a charada é alçada à condição de revelação poética ou experimento metafísico. Na abertura do livro, intitulada CAMPO GERAL, Guimarães Rosa se detém na investigação da intimidade de uma família isolada no sertão, destacando-se a figura do menino Miguelim e o seu desajuste em relação ao grupo familiar. Campo Geral surge como uma fábula do despertar do autoconhecimento e da apreensão do mundo exterior; e o conjunto das novelas surge como passeio cósmico pela geografia rosiana, que retoma a idéia básica de toda a obra do escritor: o universo está no sertão, e os homens são influenciados pelos astros. 



Ilustração de Djanira para Campo Geral 
"Mãe, que é que é o mar, mãe? Mar era longe, muito longe dali, espécie de lagoa enorme, um mundo d'água sem fim. Mãe mesma nunca tinha avistado o mar, suspirava. 'Pois mãe, então o mar é o que a gente tem saudade?' 
Campo Geral 

| Guimarães Rosa e "Grande Sertão 

1 de nov. de 2012

Perfil.



Era um rapaz de boa família, com certa preguiça, tinha inteligência, mas foi gasta cochichando frases suspeitas em orelhas cheirosas, a boa saúde foi perdida na boemia, outros valores foram esperdiçados no atrito com o nada. Resta-me de tudo um pouco, somado a certa prática da vida, ausência completa de preconceitos, um grande desprezo pelos homens e mulheres, no mais um conhecimento profundo da inutilidade de meus atos e uma enorme tolerância pela canalhice geral. Por momentos a extrema franqueza. Sou ainda capaz de afeições, caso queira se certificar, estarei a disposição física e moralmente, ou seus restos, para tudo o que quiser de mim.  

31 de out. de 2012

O Juízo.




Laura estava dentro do cristal de um vitral, melhor dito, estava dentro da própria luz que o varava. A luz a forçava a baixar a cabeça à fugir os olhos da luz. Também assim a luz a cegava. Então cerrava os olhos. Ainda assim a luz a cegava. Quer responder a uma pergunta que não foi feita. Tartamudeia ao responder: sim sou o que sou. Agora a luz parece mais leitosa menos aguda e tépida. como se estivesse dentro de um copo-de-leite cheio de leite que permitisse a ela levantar a cabeça e abrir os olhos, mas ela nada vê senão que o leitoso branco dentro dos olhos sendo os próprios olhos lácteos. Não ouve perguntas ela não pensa em respostas, nem o pensamento existe, apenas o leite por toda parte, parece não lembrar de nenhuma pergunta mas ela responde lentamente: sim, também. Os séculos passam entre uma não-pergunta e outra. A luz se apaga lentamente. O branco abruma demoradamente. Imêmore. Completamente.



30 de out. de 2012

O encafifado.


QUINTA-FEIRA, OUTUBRO 26, 2006


9. O encafifado.  Original desde: luises.

Já que falava de Luis e devo ao leitor paciente o que pode dar alguma luz a Luis.
Seu avô (dele) Luis da Silva, fora traído pela noiva, matou o amante balofo estrangulando-o com uma corda que o destino lhe deixara sobre a mesa e nesta hora exata foi-lhe o: clique aqui. Clicou. Tencionou a corda com a força infinita dos fracos, no vasto pescoço. Vagou pelo mundo fugindo da vergonha que carregava até ser encontrado por Inês da Silva que procurava um asno que lhe atravessasse o rio da vida. Inês casou-o com ela mesma. Luis da Silva levava o rascunho de uma mulher traidora e sempre quis passar a limpo sobre Inês da Silva, terminou por entender seu caráter milenar, fossilizado e imutável. Inês da Silva uma solução do resigno. E como fruto desta milenaridade e resignação veio um filho a quem deram o nome de Luis da Silva Filho que sem ter por que se encolerizar ou mesmo resignar-se foi casado por sua mãe com Inês Pereira e geraram Luis da Silva Neto e teriam gerado mais se a carraspana crônica, a concupiscência e o tabagismo entranhado, este que incendiou o colchão onde dormiam torpes de suas atividades sólitas. Luis da Silva Neto foi levado pela vizinha Dona Inês que o tratou como filho igual aos outros que nos anos que Luis ali viveu viu nascer e morrer mais que seus pequenos dedos podiam contar, até o dia em que vazou da casa lotada de fantasmas e viventes. Perambulou por ai, andou, virou, mexeu, sem nada saber ou carregar que não fosse o nome e a pequena fábula que Dona Inês disse lhe pertencer. Até o dia da chegada a Campinas.
Entre a saída de casa de Dona Inês e a chegada a Campinas não existiu. Dormiu para acordar e acordou para dormir. E terminou por dormir num alpendre que dava para a calçada da rua Padre Vieira esquina com Ferreira Penteado. Não seria diferente das tantas outras vezes, e a cada ocasião um recinto distinto, se não passasse o que vou lhes relatar.
Era o ano de mil novecentos e sessenta. José Itaca havia desistido de tentar um filho, tinha ainda forças para tanto, mas sua Inês não. Respeitoso pelos não-poderes de sua esposa, também não mais quis. Ela propôs: vamos adotar um menino. José um doce sem viés de azedume relutará, com argumentações pontuais, vencedoras. Bom marido, trabalhador. Igual a este? Mais nenhum. Dizia Inês à vizinha: você vê Dona Inês, ele dorme cedo, não vai a bares, acorda cedo, melhor não contrariá-lo.
Tal qual disse dona Inês, Jose acordou cedo. Ia à padaria e assustou-se com a visita. Depois do susto ao abrir a porta, José Itaca não acordou Luis. Sereno, retomou o afazer, foi à padaria União, como diariamente, pensou em gastar o tempo, para que este resolvesse, mas quando nisto pensou apertou-lhe o peito, mudou de idéia comprou dois filões a mais, um tanto de mortadela e uma lata de manteiga Aviação. Tens visita seu José, perguntou a mulher do Manoel. Com a voz embargada José Itaca respondeu - vamos dizer que sim. Sem mais nada dizer, senão que uma certa umidade no olhar, partiu célere. Ao chegar, abriu o portãozinho de ferro sempre engraxado, contemplou sem planos o menino, mas decidido troou. Acorde José Itaca Filho.
Atarantado Luis Silva Neto ao abrir os olhos vê o homem a sua frente, tudo em seguida, senta-se onde dormia, e com as mãos espalmadas posta onde sentava, empurrou-se para trás cerrando-se contra a parede. Muitas outras vezes fora flagrado dormindo em próprios alheios. Havia algo diverso.
Quis sair, mas José Itaca interveio.
- Acalme-se meu menino, disse José olhando-o meigamente. Luis da Silva Neto desceu das mãos e com uma delas, mas precisamente com o punho limpou as remelas. Então tentou se explicar.
- Estava com sono, dormi! Diz o menino.
José Itaca pode entender aquela naturalidade. Desde a casa de Dona Inês dormia não onde, sim quando. Quando vinha o sono, dormia. Sempre aos montes, ou no meio às suas beiradas. Nem disso era dono, lugar fixo para dormir.
Eu sei filho, eu bem que sei! Disse José Itaca, acho que tens fome.

O acepipe.


TERÇA-FEIRA, JANEIRO 16, 2007


37. O acepipe.     clique em Original para ir ao livro Luises!



A geada resistia aos primeiros raios de sol que pelas frestas dos pinheiros iluminavam as sombras de onde deveriam aparecer os fungos. Cada um escolheu seu caminho. Eu a mote de norte tangenciei o curso de um arroio de águas cristalinas, que descia rumo ao Segre, gelado e fumarento. Estaquei diante de um cogumelo. Admirado, pesquisado e por fim colhido. Com uma faca de cabo longo e lamina curta, cortei o talo acima dos esporos, regra a ser cumprida nessa micologia. Um passo a frente e toda uma família que muito reduziu o tamanho do primeiro. Mas, guardei o primeiro qual indez.
Continuei subindo por uma escarpa que dava em um grotão, que dava para mais além e fui subindo nessa busca infinita do desconhecido e quando consegui chegar ao topo um algo mais ensolarado, dei de frente com um Amanita vermelho com pintinhas brancas. Pesquisei. Alucinógeno. Psilocibina. Dei uma mordida. Achei-me sentado à beira do arroio e contávamos um ao outro o deslumbramento recíproco que sentíamos sua dele transparência indiscutível seu barulhinho ao passar o pequeno estreito formado por grandes calhaus em seu pequeno leito onde pousa o meu retrato colado em suas gneisses de fundo e ele o rio dizia de minha imobilidade, minha coisa nenhuma de alarme de nele se me ver refletir meu saber de que não sendo ele o mesmo e nem mesmo eu sendo no que me transformo sou ainda confiável sem me achar infértil por não ter peixinhos vermelhos a subir por mim meu não lhe tocar para me ter mesmo que o abuso de fulgor que lhe reflito que eu começo a pensar peixes feixes de luz e a ser eu rio eu peixes brilho o que vê e o visto sendo o sol refletido a fonte do calor que me queima e eu a banhar-me em mim beber-me...
Então você também se ausenta?
A todo pulmão aqui.
Recusas?
Qual recusa?
Que somos iguais. E que tampouco esteja inteiramente aqui, seguindo a tal de essência do ser.
Vale! Tenho momentos de fuga à inglesa, e você não é assim?
Sou. Mas penso que isso tudo faz o essencial. Sem projetar-me no futuro ainda que o pretenda e o projete.
Eu não disse que fugia rumo ao futuro.
Eu sei. É que parti do seu -fuga à inglesa- e acabei por complicar, o fato é que, se estou em você é porque eu quero estar em você.
Aqui estamos nós!
Desde Vasco da Gama!
Desde antes!
Andando em círculos!
Desde o inverno da Alexandria!
Se aqui estamos, pra onde iremos?
Que diferença faz inventarmos um dialeto?
Andar em volta de nós mesmos?
Eu quero uma festa sem fim.
Continuaremos aqui?
Vamos na busca da virgindade do mundo!
Sem sabedoria?
Só curiosidade!
Como?
Os sábios estão velhos. E nós seus legados.
Sim, mas, e o mínimo futuro?
O futuro mínimo que vira o máximo?
Nada se esgota em nós, ou fora de nós.
Então que tal a surpresa que enriquece!
Calle Luna.
La rambla.
Porta de Alcalá.
O buraco negro.
O sol.
O centro.
O cerne.
O sal.
Levanto-me e o frio corta minha carne embaixo de musgos e folhas grudadas a pele. Inês pousada sobre uma pedra a beira do arroio. Está nua sentada na pedra, um Buda assanhado que massageia os seios, agora torce a cabeleira e deixa explodir sobre eles. Tem os olhos cerrados, comanda meus movimentos, caminho para ela e sou sua presa dissimulada e ela serpente no deserto cingida, a cabeça saída deste rolo com a boca gretada na direção do sol, eu ratinho metediço corro esquivo em círculos concêntricos num acostamento curioso, ela inerte, eu cativo aproximo-me, tanto mais perto, tanto mais hesitante, mais a fortuna é aguda mais cumprirei o meu fado. Vitorioso entro na boca aberta que se fecha, sua boca engulo até o nariz, mordo sua língua, deixo minha língua ser sorvida, os dentes se tocam, as salivas se baralham, distingo a dela na minha, adocicada, ela desce sua boca pelo meu queixo, lambe o colo, eu sinto os pelos da sua vulva tépida lanosa na minha coxa, a umidade espessa vai se disseminando pelo corpo, sua no meu pé, a boca no meu, engole-o, liberta-o, aboca a glande libertada nos lábios, passa a língua, sua foi-se do meu pé, brota sobre minha boca, minha língua mais viscidez. Venha. Diz Inês. E eu vou. Oh! Inês, minha. Como Eco entro em sua gruta úmida, beijo a sua boca. Vibro harmonicamente como a corda de um arco. Tudo é umidade quente, um frêmito percorre-me, morde a minha boca. Mordo forte seu lábio puxando-o sinto um gosto de sangue então mordo mais violentamente e ela luta e com a palma da mão quer me rechaçar afastando meu focinho então cravo uma dentada e trincho o músculo de seu polegar masco sua carne, um copo se parte, uma espada entra na pedra, um véu é rasgado, relampagueia num mar tempestuoso, gozo. Desfaleço, tombo. Pleno. Durmo. Amo. A satisfação do desejo findo, ali onde já não existe o desejo, e por isso sou feliz. O amor pelo desejo que inventamos é uma sorte de parafernálias, o amor, a posse do desejado, passei a vida a ornamentar o desejo, pentear suas melenas, perfumar os seus odores, o que me impedia de voar sobre o abismo. Inês sabe disso, minto com o eu te amo, mas todo o corpo desmente. Entro por uma horta de quiabos quibebe papa de abóbora grelo de aboboreira refogado com azeite de oliveira, alho e cebola. Vou acordar. Salva-me um caruru, quiabo baba de quiabo, quiabo picado aos centos desde o dia anterior, picado miudinho, Caymi com prosa e cerveja ou água nestes tempos de cuidar do hardware quase acordo. Nina-me um cosme-e-damião. Quiabo picado, cozido afins de livrá-lo de um tanto de baba, camarão seco batido no liquidificador, ou pilado ou macerado com as mãos, castanhas de caju, do Pará e outras que encontrar picados na mesma forma que fizestes com o camarão, no mais, salsa, cebola e alho tudo picado e misturado ao quiabo, dendê de polpa e apure tudo em fogo que queima e os suores vão me acordar vem me o arroz solto ou empapado do jeito que for. Antes de acordar me salva uma boa soneca. Uma quiabada pode seduzir, no que há de baba. Frango com quiabo. Quiabo frito e arroz de alho papado. Vou acordar. Salva-me um par de tomates inteiros recheados com tomilho por um orifício feito onde o tomate se liga a planta, cozinhados no meio do arroz e dois ovos com uma bela pitada de sal sobre cada gema, fritos naquela frigideira que só você usa e que fica escondida no forno debaixo do fogão pra dona Inês não arear até virar espelho. Sarrabulho, sangue de porco e arroz ruins como um tabefe. Vou acordar. Transijo. Folha de taioba picada, tampouco, tanajura, também não. Tatu, tatupeba, teiú, tacacá, tucupi, monte de tarecos, tartufo, não isso lembra corretores, vendedores de carro, tira-gostos tépidos em vitrines prisões de moscas, moço quanto custa essa mosquinha? Mercado municipal. Pordeus! Vou acordar! Só pordeus não acordo! Ver-o-peso. Ribeira! Vou acordar! Vou acordar!.
Gasterea! Gasterea! Chamo e ela não responde. Lembra a tal história do rio que entramos não ser o mesmo do qual acordo. Desperto. Vaguei pelos Pirineus, esquecendo, amargurando, fugindo.
Luis foi preso por canibalismo, cumpriu oito anos de pena. Sem nunca ter recebido uma visita de qualquer conhecido. Tudo que tinha era um livro ensebado lido e relido ao infinito até ser deportado para Campinas, onde foi acolhido no Candido Ferreira. Depois de uma visita da anistia internacional ao presídio de Lérida

29 de out. de 2012

Queimada.


Somos uma sociedade frágil e impotente diante dos desmandos. Há semanas que estamos assando sob o sol. Culpas passadas, dizem! Se é passado ou não pouco tem importância se agora, onde vivo está literalmente dentro de uma nuvem de fumaça devido a queima da cana-de-açúcar. Em pouco tempo começarão a chegar voando as palhas queimadas, a fuligem. Me sinto dentro de um cinzeiro, tal é o cheiro. Uma ligeira dor de cabeça, pois há mais de hora não sei o que é ar puro. Moro em Bonfim. Olho para Ribeirão e parece que a fumaça a alcança. Por momentos chego a pensar que estou só nesse canto do planeta. Será que temos, como ribeirãopretanos, alguma contrapartida por conta desse descalabro? Se temos, será que vale a pena tanto sacrifício? Não amigos, não vale, não vale sequer a água que haverei de jogar no quintal amanhã pra me livrar dessa neve preta e brutal.