25 de fev. de 2014

O homem que entrou numa fotografia.




Alargou o nó da gravata, enquanto chutava os sapatos para um canto da sala ao mesmo que tempo a mão direita deixa cair da garrafa sobre a pedra de gelo o whisky ferruginoso espesso como mel. Ouvia, ao rodar o copo entre as mãos, o sino da aliança esquecida na mão esquerda. Sentou-se diante do computador e mecanicamente rodou os feeds das noticias postadas pelos amigos. Completou o copo rodou-o entre as mãos. Clicou na música tântrica do amigo iogue, cansado se deixou enlear e abstraído se fixou na foto de um outro post, duma paisagem urbana e remota, o carro claro em formas arredondadas, de para-lamas salientes e também curvos, foi ampliando sobre um transeunte que vestia um impermeatto, o homem caminhava ao seu encontro em meio à rarefeita névoa, se distraiu, olhar perdido na mulher de gabardine preta, que andava adiante. Outro gole de whisky e aterrizava suave e lentamente numa terra longínqua. Apertou o passo, em busca do fru-fru que a seda da gabardine preta fazia à frente. O homem do impermeatto cinza levantou o chapéu e abaixou a cabeça ao cruzar com a mulher. Nosso herói não pode saber se ela ignorou o aceno, só que ela seguia impávida. Torceu o pescoço para saber se o homem do impermeatto a olhava, e não viu homem nenhum, rua nenhuma, calçada nenhuma, a névoa se espessava atrás dele melhor ir mais rápido com isso creio que ela subirá pelo elevado, acelerou o passo e pôs-se lado a lado com ela, não posso olhar, não olhou, pensou na indelicadeza da atitude estava sem chapéu sem gravata sem sapatos um desconforto de sonâmbulo se avizinha que mulher é essa que estou fazendo aqui em meio a névoa só em meias então virou o rosto para vê-la e seu gato que miava roçando seus pés o despertou.  

24 de fev. de 2014

Vindicando o Whisky

.


A densidade que te dá um bom whisky é inversamente proporcional a que te dá o mau. Com um belo copo nas mãos, de preferencia bocudo e com um vidro generoso, daqueles que os dedos podem dar um apertão suave e com isso sentir a consistência do que carrega. De cara há a comunicação visual entre o conteúdo, que é o whisky, e o continente, que é você mesmo, a ponto de tragá-lo.
O âmbar do malte, que as vezes pode ser bem escuro, e que lhe concede uma consistência, que sabemos fictícia, pura literatura do espirito, mas que por momentos se espessa e se torna um bálsamo pastoso, e curativo, primeiro inundando a boca depois fazendo massagem na goela, descendo pela boca do estômago, o estômago em si, depois. O visco do líquido, entre tosco e meigo, se é que isso é possível, te subjuga com sua natureza selvagem, e te confirma a forma com que pode te furar por dentro sem que possas enfrentá-lo de todo, até o ponto que te corrige, e dita as vias pelas quais hás de te inserir nele, mais do que o contrário, ele em você, porque começa então o ritual da purificação, quer dizer, o ritual em que os sacrifícios mútuos dão os seus frutos maravilhosos. Um bom whisky, então, uma vez vencida esta conjunção enigmática, permite embelezar a solidão, a companhia, a música, a paisagem interior, um charuto ou qualquer coisa que te envolva, monumental ou falto de brilhos.
Dizem que o verão é péssima geografia para os maltes, porque o corpo não está para calores, senão que para refrescamentos com uma cerveja, ou um drinque gelado, mas a miúde havemos de combater o abatimento pelo calor sufocante com mais abatimento, num exercício de abandono consciente, como se atravessássemos o deserto sob um edredom, que de certa modo nos protege do sol.

Sem se deixar levar pelos excessos, para não nos saturarmos de realidades longínquas da realidade, o whisky de gosto amadeirado te proporciona um instante de desvelo, lucubração, de aterrizagem lenta, de repouso imerecido, no meio de um mundo que pouco a pouco passa do seu vertiginoso expressionismo a umas cores fixas e planas, de linhas firmes, que imitam a natureza. Se chegar a cravar-te na pele este quadro, então haverás encontrado um local para habitar, e a alma do malte em ti, e não haverá nenhuma opção de perda.

21 de fev. de 2014

Touro Mouro

Nunca fui comunista. Nunca vivi no comunismo, seja, viver segundo os preceitos comunistas, dentro do comunismo. Vivi e vivo e viverei no capitalismo, seja o capitalismo no capitalismo. Esquerda, sim! E se possível à esquerda da esquerda. Meu primeiro ato blackbloccista foi pichar a catedral por ocasião do aniversário do touro mouro, e gritava:
Troa na praça o tumulto! 
Altivos pincaros - testas! 
Águas de um novo dilúvio 
lavando os confins da terra. 
Touro mouro dos meus dias. 
Lenta carreta dos anos. 
Deus? Adeus. Uma corrida. 
Coração? Tambor rufando...”
Vladimir Vladimirovitch Maiakóvski, via Haroldo de Campos. Tinha o livrinho que era uma ''tridução'' como diziam com seu irmão Augusto e Décio Pignatári.
A segunda foi pichar a frase ''Abaixo a cultura burguesa'' na entrada do campus. O filósofo Hector Benoit mantinha semanalmente umas discussões políticas engajadas e lia a revista ''Contra-Corrente'' que era do grupo. Mas sempre fui independente, me deixava seduzir, mas jamais fui cooptado. Eu vinha da roça, roça, roça mesmo. Já tinha lido o Manifesto e Ideologia Alemã, e os fragmentos de Heráclito de Éfeso, quais adorava, por fragmentados... já havia tentado ler Ulisses de Joyce e a teoria da mais valia. Gostava do Trotsky, quer dizer, do seu cavanhaque que lhe afilava o rosto... e tentava imitá-lo sempre que possível, gostava dos títulos que Lenin dera a algumas de suas obras, como Was Tun? (O que fazer ?), ou Un paso adelante dos pasos atrás. O divertido é que comecei a fazer curso de alemão, para lê-los todos no original, inclusive Fenomelogie des Geistes, de Hegel, que um dia comprei, de bolso, na Alemanha, meus amigos alemães riam, posto que nem eles ''conseguiam ler'', e eram universitários, um Zanharzt (dentista), o que não quer dizer muito, mas outro era físico. Ai veio o PT, mas antes saímos a ''nuclear'', e nucleávamos por toda parte, na rodoviária, em Bonfim, na Filô... Um episódio hilário se deu por ocasião da primeira participação de um candidato do PT à prefeitura de Ribeirão Preto. Um tal senhor David Aidar, que veio até o nosso núcleo para nos falar de seus projetos e propostas, falou até em pegar armas, já naquele momento eu entendia o saco-de-gato do mundo e suas confusões e ''interpretações'' do mundo político e dos conceitos, de passagem digo que eram tão só confusões e acima de tudo confusas. Eu me apego e me apegava à esquerda por uma tal de ''emancipação'' do sujeito, e entendia o comunismo com um elo para que ela se alcançasse, evidentemente que no meu entender, neste estágio estaríamos no Anarquismo. Era para mim o modo de me livrar definitivamente de tipos como o Aidar, que abundavam e hoje transbordam, não só na política profissional, mas por toda a parte, sujeitos confusos para os quais a cadeia e a cadeira elétrica é solução para todos os males, e a camisa de força já é aconchego ou coisa dos direito-humanistas.

Penso a emancipação como a não dependência crônica de um indivíduo (capaz de produzir sua vida) frente a seus pares na sociedade e frente a ela. Um tipo de ética cujas opções não visem um fim ético para sua ação, mas sejam éticas desde que a opção se dá, dada. A vida boa, no sentido de vida ética, sendo no momento e não no futuro, como estudar para ter diploma, ter diploma para ser rico, ser rico para … mas ter prazer em estudar, em fazer escultura, em pescar, em filosofar, em tricotar, em fazer pizzas, em amar.. em.. Assim, a emancipação afinaria a moral e a moralidade, que se fundiriam num só fazer ético, numa só vida boa, sendo cada uma, uma, e salvaguardadas as diferenças, aonde o eu e a alteridade não se confundem, mas que todos parássemos frente ao sinal vermelho, sempre salvaguardando a regra, dada a possibilidade de aleijões morais. Eu não sou comunista. 

DesDeus!


Antes havia luz, não muita, a suficiente para iluminar os dias e as coisas. Era a luz de um branco fosco, que foi agarrando uns tons de pérola, nevoento, entre o cinza proletário e o cinza de risada malvada que as vezes baixa de algum lugar, de não se sabe onde, e senta no meio da gente, entre preguiça e orgulho, pronta a te abraçar. Ele não a notava, distraído como estava, a observar os objetos com a ideia que cada objeto era igual ao mundo, e o mundo igual que o objeto, sob uma naturalidade que de tão humana era quase animal.
Entretanto, anoiteceu, anoiteceu pela primeira vez, não sabia ao certo quando, em que instante ou de que maneira, mas havia vindo na calada da luz para se estabelecer lá, pelos arredores, para sempre, muda e impávida, com o gesto inconcreto e neres de cortesia. Como se a noite se soubesse escuridão e já não haveria de estar ali se demonstrando a ele. Esta primeira noite não era bem escura, não era toda escura, mais bem era fosca, um escuro fosco, que ainda se podia se ver e pensar-se nela, e se divisar no meio da própria escuridão. Reconhecê-lo nela, diria. Ainda que não distinguia de sua raiz os seus galhos, a semente de onde brotara e por onde se espalhava, e para aonde, e o local aonde por força haveria de morrer, sim, se movia como um traço grosso num quadro seco de cores, como um campo de neve com sua brancura branca e sua branca brancura a fazer espremer os olhos entre as pálpebras para sacar uma gota de mar, um mar profundo, como um espelho do mar profundo, como uma negritude quase-quase negra, como o fosco num quarto escuro, como a última alba antes da primeira alba. Assim aquela noite, chegou a ser o completo escuro, e já não podia defini-la, porque no labirinto da escuridão o labirinto se destruía e os caminhos desapareciam, os contornos se desfaziam, e o escuro já não era escuro, nem consciente de o ser, nem ele de ali viver, de viver ali abandonado e seguro, talmente um bebê voando sem pontos cardeais numa bolha de opaco liquido amniótico.
O escuro que já não era escuro, que era puro não-ser, poderia ser a ausência de tudo ou ao contrário, de todas as coisas comprimidas numa só, ele inclusive? Poderia ser a sabedoria de tudo ou, ao contrário, a ignorância definitiva, naquela em que tudo é possível e tudo pode nela recomeçar?

Lá onde estava, às foscas, tateando para se mover na devastada mente, tentando decidir a cor, a natureza, a resolução dos seus próprios pensamentos.  

Calçadas da infâmia.





A estiagem prolongada, secando o minguado rio Piracicaba. Quem viu o rio Pardo? Esquálido. O complexo Cantareira secando, com isso não deixa gota para o Atibaia fluir, desautorizando o fragmentário grego Heráclito, o rio que passou não volta mais... isso noutras bandas do estado aqui em Ribeirão...aqui a história é outra, aqui, fashion é lavar a calçada com xampu, com a água cristalina, aquífera, escorrendo pela sarjeta. A vassoura virou veículo de varrer estacionado atrás da porta. A onda é wap, mas quem não tem wap, tem esguicho, e quem não tem esguicho aperta a ponta da mangueira, e o jorro se abre em leque e vai varrendo o xampu, as fezes dos cães... Mas não é tudo, mutirões do dinheiro público capinando as calçadas estéreis, capinadas, lavadas, enxaguadas, regadas e nada produzem, nem a mera possibilidade de por elas caminhar sem ''trupicar''.