10 de jun. de 2013

Mercador veneziano.

"A patologia está em usar a vítima como brinquedo". cidão!



O mercador veneziano, de outro mercador veneziano, havia recebido em pagamento do ágio devido deste àquele, uma sorte de mercadorias vinhos, azeites, anchovas italianas, trufas em conserva, saches de funghi porcini e latas de tomates pelados; quais armazenava num quarto entre a garagem e a sala de jogos de sua mansão, na escarpa do bairro nobre. Era mercador, gourmet, negociante, agiota e corria o boato que tinha conexões com off shores e partidos políticos. Visitava sua casa por sua bela filha, mas quando me dei conta, pois pensava em dizer '' não, signore tenho verdadeiro desejo, amico, por este gallo nero, ma, e so, de origem controlada, ma claro que so, de pescoço comprido, ma...'' enquanto engasgava o não, ele lotava o porta-malas do 147 vermelho, com suas próprias mãos macias e gordas. ''Non!'' ''Non!'' ''Non se preocupe'' dizia engolindo meio ''o'' de preocupe, ''casa mia tem dinheiro que no so dove sia!'' um tanto cative, ''questo acciughe é belissimo, prende una caixa?'', ''deusdocéu 60 latas por 10 dólares cada lata...'' Matutava enquanto ele acrescia simpático ''doppo você me paga''. Bo! Sem ser efusivo, fazia eu, sem entender completamente tal interjeição, mas encaixava bem. Dois dias depois, conseguia de mim alguns cheques cujos valores somados daria para trocar o 147 por um carro zero. Todo pré-datado tem seu dia de chegar, impor sua verdade e, vencer, impossível deter o tempo, inútil sonhar com a curvatura einsteiniana e ultrapassar um futuro e viver outro, sumir para o universo paralelo toda vez que o visse, se teu credor for um mercador veneziano! Assim passamos a nos encontrar, na rua, no semáforo, ''Ciao amico'', '' o cara é onipresente'' remordia-me enquanto engolia o café quente queimando a goela no Café Regina, ''também compra no mercadón?'', ''pur troppo'', ruminara, no Pão-de-Áçucar nas horas mais idas, e por fim trocar cheques por mais cheques no seu escritório, com mais grades que Alcatraz, andava temeroso que me cortasse um dedo, dois, pesadelos entrecortados, ou toda a punheteira mão, cheguei mesmo a pensar que fora a melhor solução, comecei a ler sobre estancar o sangue. Como não conseguira vender todos os vinhos naquele inverno, resolvi levar para casa uma caixa de gallo nero, para as horas em que o vinho nos empresta caráter, e o sangue não pode ser dissimulado, e qual não foi o meu espanto ao abri-la, repleta de notas de 20 e 100 dólares.     

9 de jun. de 2013

Embotamento.




Estava lendo uns escritos de Guy de Maupassant e me deparei com esta frase:  "Elle tourne comme une mouche dans une bouteille fermée". Ele o pensamento, que gira como uma mosca dentro de uma garrafa. Nada nada mais se explica, é tão só uma metáfora. Fiquei viajando nas acrobacias que ela faz, e estão longe, faltos da razão, e se parecem, se calhar, a uma rápida sucessão de imagens num anúncio. Se o díptero pudesse parar no meio dela, garrafa, a vertigem o faria rodar a cabeça e despencaria em queda livre, por isto está condenado às constantes divagações aéreas, e se por acaso quisesse repouso haveria de buscar terra firme e trancar os olhos, ou fixar a vista nalgum ponto, à moda das obsessões alienantes. O pensamento faz o mesmo; deixado solto é uma montanha russa, suspensa na consciência, e repete e se repete, e repete os mesmos gestos a faltar pedaços, sem se dar conta, acaba criando uma geringonça parecida à elipse, como um arado a sulcar a terra sem conceber outras incisões, itinerários e incógnitas crescentes. O pensamento se tece e se destece a si mesmo sobre a velha tela, como uma Penélope traíra que não espera nenhum Odisseu. Assim a cada vez que tromba com o vidro perde o rastro e se desconcerta, acaba por se conjurar a fazer voos sempre sempre mais curtos.